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Uma notícia à atenção de Isabel Jonet e dos adiantados mentais que acham que os pais enviam as crianças para as escolas com fome propositadamente e que defendem o empobrecimento estrutural dos portugueses enquanto o estado se mantém na mesma. Isto só dá vontade de chorar de raiva.
Leitura complementar: O mito do viver acima das possibilidades; Marx a rir; Duas petições; Pobreza intelectual; Vamos brincar à caridadezinha; A indecorosa leveza da ideologia da caridadezinha.
Isabel Jonet, hoje, no Correio da Manhã (daqui):
Vamos por partes:
1 - Se se diz que algo é inexplicável, não se pode partir logo a seguir para uma tentativa de explicação, ainda que parcial. Contudo, fechemos os olhos a este erro e procedamos.
2 - À semelhança das afirmações de há umas semanas, Isabel Jonet volta a insistir no ónus da responsabilização do lado dos indivíduos, descurando o estado e as consequências nefastas que as políticas de asfixia fiscal e empobrecimento estrutural dos portugueses têm. Eu não tenho a certeza, mas suspeito que a causa desta narrativa pode estar numa aprovação ou indiferença de Isabel Jonet quanto a estas políticas. Afinal, quantos mais forem empurrados para fora do Estado Social, quantos mais pobres houver, maior a sua relevância e influência.
3 - Ao mesmo tempo que se dedica a ajudar os portugueses através do Banco Alimentar, Isabel Jonet parece gostar de os acicatar, deixando a descoberto a sua manifesta falta de contacto com a realidade. Se no programa na SIC, Manuela Ferreira Leite ainda a tentou trazer de volta à realidade - a esmagadora maioria dos portugueses já fez ajustamentos brutais que, nas palavras de uma outra tia da nossa praça, neste caso pseudo-escritora, representam um grave downsizing de lifestyle -, desta feita não parece ter havido alguém que lhe chamasse a atenção para a gravíssima insensibilidade revelada.
4 - Que insensibilidade é esta? A que lhe permite, com uma desfaçatez indecorosa, colocar como causa principal da chegada de crianças à escola com fome a falta de responsabilidade dos pais. Repare-se, mesmo passando por cima do erro referido no ponto 1, se se tenta dar uma explicação parcial a um dado fenómeno, tender-se-á a dar relevância ao que cremos ser a explicação com maior potencial explicativo ou significância. Isabel Jonet não salienta aquela que é a explicação principal que o senso comum e que qualquer comum português lhe poderão dar: porque não têm dinheiro!
5 - Não estou, com isto, a dizer que não existem pais que descuram a alimentação dos filhos. Mas sejamos francos, tratar-se-á de uma minoria residual, que não pode ser colocada sequer em pé de igualdade, quanto mais acima, com a generalidade das famílias que, infelizmente, dadas as políticas referidas no ponto 2, já mal se conseguem alimentar.
6 - Isabel Jonet deveria resumir-se a fazer aquilo que sabe fazer, deixando-se de intervenções públicas que se revelam cada vez mais desastradas. Mas se quer insistir nestas, permita-me que lhe recomende que contrate alguns assistentes: um que lhe ensine lógica elementar, outro que a prepare em termos de comunicação e outro que a faça contactar a sério com a realidade portuguesa.
7 - O primeiro que me vier dizer que o facto de ter desenvolvido a obra meritória que é o Banco Alimentar obsta a qualquer crítica a Isabel Jonet, vai directamente recambiado com uma recomendação para regressar à escola primária, a ver se aprende a pensar. E quanto aos que tentarem defender o indefensável, enfim, afundem-se nessa impossibilidade e façam como Pacheco Pereira recomendou, «Experimentem passear a vossa riqueza, a vossa indiferença diante deles, sem polícias, sem barreiras de metal, e dizer "aguentam, aguentam!" aos "piegas".»
Leitura complementar: O mito do viver acima das possibilidades; Marx a rir; Duas petições; Pobreza intelectual; Vamos brincar à caridadezinha.
Já não sei onde foi que li alguém que, citando a Bíblia, expunha um pensamento que subscrevo na íntegra: a caridade não é para se exibir, é para se fazer. E acrescento, com a caridade não se faz política, apesar de muitos insistirem em ir por aí. Mas gosto de ver várias pessoas satisfeitas consigo próprias por andarem a brincar à caridadezinha. Presumo que será pedir muito que se calem? Ou perguntar se não entendem como é ostensivo e ofensivo para muitos portugueses esse exibicionismo de um sentimento de satisfação por ajudarem os outros? Como escreveu Camus, «Um homem é um homem mais pelas coisas que cala do que pelas que diz». E este exibicionismo é revelador quanto baste do pensamento de muitos. Pelo meio, muitos destes continuam a clamar pela destruição do Estado Social per se, sem qualificar aquilo a que se referem quando falam em Estado Social, esquecendo-se das raízes liberais e anti-socialistas do Estado Social. É que muitos adeptos da caridadezinha são também os que andam há décadas a aproveitar a "caridade" do Estado Social degenerado em Estado Socialista. Que façam bom proveito enquanto podem.