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Agora que a poeira assentou, aqui ficam algumas considerações acerca da polémica em torno da publicação do livro Identidade e Família:
1 – Comungando a totalidade dos autores do livro da doutrina católica, destacam-se alguns deles por o seu pensamento político ser classificado pelos próprios e por terceiros como “conservador”, casos de Paulo Otero, João César das Neves, Jaime Nogueira Pinto e Gonçalo Portocarrero de Almada.
2 – Sendo certo que existem duas grandes correntes do conservadorismo - teoria política cujo berço (e local onde foi mais desenvolvida) é a Grã-Bretanha -, uma com um substrato religioso e outra de teor secular, no nosso país, o conservadorismo tem revolvido, ao longo das últimas décadas, em torno da doutrina social da Igreja Católica, da democracia cristã e de temas como o saudosismo do Estado Novo, a crítica ao 25 de Abril de 1974 e a oposição ao liberalismo e ao socialismo nas suas várias declinações, que se reflecte, por exemplo, na oposição à interrupção voluntária da gravidez, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, à co-adopção por estas e à eutanásia. Fundamentalmente, estamos em presença de um conservadorismo católico.
3 – É completamente estranho ao pensamento de vários conservadores portugueses o pensamento de autores como David Hume, Edmund Burke ou Michael Oakeshott. Sinteticamente, estes últimos dão voz a um conservadorismo que aceita a mudança contanto que seja resultante da evolução orgânica da sociedade, gradual e reformista, não revolucionária, total e ideologicamente guiada. Para esta corrente, que alguns classificam como sendo um conservadorismo liberal, a mudança deve ainda resultar de necessidades concretas e não de princípios abstractos alcançados por uma razão dedutiva e apriorística, i.e., pelo que Oakeshott, Popper ou Hayek classificaram como racionalismo dogmático ou construtivista. Por outras palavras, é uma teoria política herdeira das Revoluções Inglesa e Americana e crítica da Revolução Francesa, sendo ainda hoje o substrato ideológico do Partido Conservador do Reino Unido.
4 – Esta corrente, como explica Oakeshott, não implica necessariamente quaisquer crenças religiosas, morais ou de outros domínios “acerca do universo, do mundo em geral ou da conduta humana em geral.” O que está implícito na disposição conservadora em política são “determinadas crenças acerca da actividade governativa e dos instrumentos do governo”, que nada “têm a ver com uma lei natural ou uma ordem providencial, nada têm a ver com a moral ou a religião; é a observação da nossa actual forma de viver combinada com a crença (que do nosso ponto de vista pode ser considerada apenas como uma hipótese) que governar é uma actividade específica e limitada, nomeadamente a provisão e a custódia de regras gerais de conduta, que são entendidas não como planos para impor actividades substantivas, mas como instrumentos que permitem às pessoas prosseguir as actividades que escolham com o mínimo de frustração, e portanto sobre a qual é adequado ser conservador”.
5 – O pensamento plasmado nos artigos de alguns dos autores do mencionado livro, por seu lado, assenta em crenças religiosas e morais e visa restaurar uma determinada concepção de sociedade reminiscente do Estado Novo. Pretende repudiar regras de conduta gerais e abstractas desenvolvidas através da evolução cultural da sociedade portuguesa que têm a liberdade individual e a possibilidade de escolha no seu cerne e substituí-las por uma visão ancorada numa doutrina e crença religiosa que prescreve condutas específicas e substantivas e não é partilhada por todos os cidadãos. Tem como objectivo substituir uma perspectiva liberal e pluralista de sociedade, em que não existe uma verdade única e é deixada aos indivíduos a capacidade de prosseguirem diversas concepções de vida boa, por uma ortodoxia pública imposta pelo Estado alicerçada numa única definição do que constitui uma vida boa, reduzindo a esfera de liberdade de todos os cidadãos.
6 – A visão de sociedade patente em vários destes artigos implica, consequentemente, uma oposição a mudanças que ocorreram de forma evolucionista e gradual na sociedade portuguesa ao longo de 50 anos, tendo sido possibilitadas pelo 25 de Abril de 1974. Estamos perante um pensamento contra-revolucionário e providencialista – próximo de Joseph de Maistre e Louis de Bonald -, que se reflecte num conservadorismo autoritário que pode e deve ser definido numa única palavra: reaccionário.
7 – Este pensamento reaccionário critica o que classifica como “ideologia de género” partindo da premissa de que o que considera ser a “família natural” é a única concepção legítima de família, dela derivando o conteúdo normativo do que pretende impor autoritariamente a toda a sociedade, sendo todas as outras concepções consideradas desvios patológicos produzidos pela modernidade ou pelo pós-modernismo. Para além de não aceitarem mudanças produzidas pelo curso natural e gradual da evolução social, acreditam que a sua concepção de família é ideologicamente neutra, como se não fosse ela própria uma ideologia de género, uma visão ideológica dos papéis de género e da sexualidade. Talvez falte aos seus cultores capacidade para apreciar esta ironia.
8 – Para finalizar, perdoem-me a deselegância de citar um artigo da minha autoria, escrito a propósito do combate que muitas das figuras desta direita reacionária promoveram à disciplina de Educação para a Cidadania, que, infelizmente, retém actualidade:
Todavia, esta ideia não chega a ser surpreendente, porquanto boa parte da direita, naquilo que vê como um combate cultural gramsciano, acolhe uma inversão entre as matérias onde o primado da comunidade política se impõe e aquelas onde a esfera da liberdade individual deveria tomar preeminência. É uma marca característica desta direita, por um lado, recomendar a liberdade de escolha em áreas como a educação, a saúde e a segurança social com propostas de políticas públicas que serviriam essencialmente os interesses das classes sociais privilegiadas à custa do bem comum, e, por outro, defender a imposição a todos os cidadãos, pela coerção estatal, de uma visão do mundo alicerçada em larga medida na religião católica em matérias eminentemente do foro da liberdade individual e da esfera privada, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a despenalização do aborto e a eutanásia.
Por outras palavras, nuns dias são liberais que acolhem a separação entre sociedade civil e Estado e clamam contra a intromissão deste e da ideologia em domínios em que, por definição, o aparelho político tem de tomar opções políticas e ideológicas, e noutros prosseguem a herança do absolutismo para defender a imposição de uma perspectiva ideológica em matérias em que o Estado se deveria limitar a respeitar o foro privado e a liberdade individual.
Impressionam-me sempre, ainda que não me surpreendam (afinal, o fenómeno encontra-se há muito diagnosticado pela teoria política, especialmente por autores conservadores), os discursos de cartilha ideológica e/ou religiosa, como tende a ser o da oposição à eutanásia, especialmente quando procuram fundamentar a utilização da coerção estatal para diminuir a esfera de liberdade individual naquilo que tem de mais íntimo e primordial, o podermos dispor sobre a nossa própria vida e, consequentemente, sobre a nossa morte. Compreendo que seja fácil e confortável debitar argumentos a partir de uma cartilha que nos diz o que pensar e o que dizer em face de determinados assuntos, mas não posso deixar de observar que esta é uma atitude permeada por uma boa dose de preguiça intelectual - compreensível, sublinho, mas que não deixa de ser o que é.
Tendo-me debruçado recentemente sobre o tema, apercebi-me que a esmagadora maioria dos argumentos dos opositores à eutanásia remetem, mesmo que frequentemente não pareça ou não o admitam, para uma única ideia, a de que a nossa vida pertence a Deus, não a nós próprios. Não foi por acaso que líderes de várias religiões se juntaram contra a despenalização da eutanásia em Portugal. Não foi também por acaso que um padre tetraplégico tentou convencer Ramón Sampedro a não se suicidar, ignorando que o conceito de dignidade humana pode ser entendido de formas diversas e que a resposta à célebre questão com que Camus abre O Mito de Sísifo - "Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia" - pode também ser diferente consoante os indivíduos, ainda que sujeitos exactamente às mesmas situações.
Tenho muito respeito por crenças religiosas, e especialmente pela herança civilizacional judaico-cristã, mas tenho pena que muitos crentes não nutram o mesmo respeito pelos que não são crentes e pareçam ignorar que as sociedades ocidentais atravessaram o Iluminismo e têm como condição fundamental o laicismo. Querer impor a toda a sociedade um determinado entendimento religioso da ideia de dignidade da vida humana que tem como efeito impedir que um reduzido número de pessoas (são muito poucas as pessoas que pedem para morrer em face da dor e sofrimento, mesmo em países em que a eutanásia e o suicídio assistido são permitidos), em situações de dor e sofrimento prolongado e com doenças incuráveis - para mim, condições sine qua non para a admissibilidade da eutanásia e do suicídio assistido -, à luz das suas convicções e respostas à pergunta de Camus, possam morrer de forma medicamente assistida, parece-me - não há como dizê-lo de outra forma - perverso.
Ademais, importa fazer notar que os cuidados paliativos não são uma alternativa à eutanásia (como afirmou João Lobo Antunes, citado por Maria Filomena Mónica em A Morte, é "errada a ideia de que os cuidados paliativos eliminariam todas as situações em que a eutanásia pode ser necessária, uma vez que, por exemplo, no Estado do Oregon, existem óptimos cuidados paliativos, o que não impedira alguns indivíduos de terem optado pelo suicídio assistido"), e que argumentos como a origem da eutanásia na Alemanha nazi e a rampa deslizante são fracos e, no caso deste último, trata-se frequentemente de uma falácia lógica facilmente desmontável. Citando Maria Filomena Mónica: "Ao contrário de pessoas que respeito, não considero que estejamos a escorregar, por uma escada deslizante, até à barbárie. Não é forçoso que se passe da defesa do suicídio assistido para a eutanásia e desta para a injecção letal a deficientes, mas reconheço que este argumento tem força. Contudo, do ponto de vista lógico, não é sustentável. Eis como funciona: à primeira vista, parece positivo fazer-se X (independentemente do que for X); mas a acção X conduz inevitavelmente a Y e esta, por sua vez, a Z. Ora, a acção Z é tida como negativa, portanto não deveremos fazer X. Uma acção que, de início, parecia aceitável, passa assim a ser vista como deletéria. Acontece que a “inevitabilidade” da passagem de X para Z não é uma necessidade. Embora se justifiquem cautelas, não é certo que a aceitação da eutanásia, no caso de doentes que a solicitem, leve à sua aplicação a doentes que a não desejam."
Importaria, portanto, que o debate não resvalasse para este tipo de questões, que decorresse em moldes racionais e num ambiente de serenidade, o que muitos dos opositores da eutanásia se têm esforçado por combater. Que alguns destes pensem ainda em submeter uma questão destas a referendo, incorrendo na possibilidade real de a tirania da maioria obrigar, numa questão que diz respeito a direitos fundamentais (porque termos uma palavra a dizer sobre a nossa morte nas condições supra elencadas faz parte do direito à vida), a obedecer a uma normatividade com um substrato essencialmente religioso que não é partilhado por todos os cidadãos, parece-me, mais que perverso, desumano.
Espero, por isso, que os nossos representantes na Assembleia da República, além de reflectirem serenamente, tenham bem presentes as seguintes palavras de Maria Filomena Mónica: "Uma democracia laica, como é o caso de Portugal, deve respeitar os sentimentos que a fé religiosa faz brotar na alma dos crentes, mas não pode autorizar que seja ela, a fé, a ditar a formulação das leis. Os católicos têm o direito de se abster de actos que consideram pecaminosos, mas não podem impor aos outros os seus valores. Não quero obrigar ninguém a fazer o que quer que seja, mas desejo ser livre de escolher o meu fim."
Analisar um papado com tão poucos meses de duração é, por antonomásia, um exercício deveras arriscado. Com o Papa Francisco ao barulho, esse exercício torna-se ainda mais complicado pela simples razão de que o ex-cardeal de Buenos Aires é um personagem totalmente à parte do que é o comum dos homens públicos deste início de século. Aliás, se repassarmos a história conturbada dos últimos decénios deparar-nos-emos, certamente, com uma enorme dificuldade em vislumbrar personalidades que sobrepujem a pequenez tão característica destes tempos pós-moderninhos. O Papa Francisco oferece, a este título, uma ambiguidade suplementar, cuja destrinça não se afigura de todo uma tarefa fácil. Aquela que é para muitos a grande qualidade de Francisco, é, a meu ver, o seu grande defeito: refiro-me, pois claro, à overdose mediática que rodeia todos os gestos e ademanes do Papa, num grau que chega a raiar a exageração absoluta. Há quem entenda esta abertura à mundanidade como um gesto de tolerância para com as multidões ululantes dos tempos presentes. Esta opinião é defendida, sobretudo, por aqueles que desejam uma Igreja rendida às modas abastardadas de um tempo sem referências axiomáticas dignas desse nome. É certo que Francisco não fez, até ao momento, nenhuma inflexão significativa no que toca à essência medular do dogma católico, porém, esta mudança de tom e de abordagem poderá criar, a longo trecho, mudanças indesejáveis na estrutura de uma instituição tradicionalmente imune aos modismos deslumbrados dos cultores do progressismo ignaro. Neste sentido, creio vivamente que a aposta numa comunicação excessivamente "moderna" não augura nada de bom, porquanto o mediatismo exacerbado tem sempre, como reverso da medalha, a desilusão destemperada de quem genuinamente acreditou que era possível moldar a Igreja ao destrambelhamento contemporâneo. Mas seria um erro tremendo avaliar o actual papado, única e exclusivamente, sob este prisma, dado que há no Papa Francisco uma dimensão cuja relevância importa não descurar. Essa dimensão prende-se directamente com a origem jesuítica de Francisco. O jesuitismo tem aqui uma dupla manifestação, nomeadamente na atenção dada pelo Papa, nas suas comunicações públicas, aos condenados da terra, assim como ao igualitarismo, extraído do luteranismo catolicizado dos Jesuítas, presente no apostolado diário dirigido a um público fremente de renovação evangélica. O papado tem sido, neste curto espaço de tempo, positivamente marcado por esta mensagem prática, cujo fito incide, fundamentalmente, na acção e na práxis dos fiéis. Mais do que um intelectual à Bento XVI votado propositadamente à conversão da Cidade, Francisco é e será um Papa voltado para a acção e caridade diárias, vivenciadas no contacto apostólico com os fiéis. Não há, bem vistas as coisas, nada de negativo nesta opção, nem haveria, necessariamente, se a escolha tivesse incidido numa orientação intelectualmente mais contemplativa. Francisco sabe o que faz, e tem a perfeita consciência de que guia algo maior do que a própria vida. Resta ao próprio não se deixar tragar pela lógica mecanicamente pretensiosa da contemporaneidade. Alea jacta est.
Publicado aqui.
Dados que fazem pensar:
Uruguai - carga fiscal de 18,1% do PIB; gasto público de 32,5% do PIB; dívida pública de 55% do PIB; a duração média da constituição de uma sociedade comercial é de 7 dias.
Chile - carga fiscal de 17,3% do PIB; gasto pública de 23,3% do PIB; dívida pública de 10% do PIB; a duração média da constituição de uma sociedade comercial é de 8 dias.
Portugal - carga fiscal de 31,3 do PIB; gasto público de 48,9% do PIB, dívida pública de 120% do PIB; a duração média da constituição de uma sociedade comercial é de 5 dias, com um pequeno senão: os passos subsequentes continuam a emperrar o procedimento.
Nota: sem retirar razão ao discurso do Pedro Arroja, a comparação acima mencionada ajuda a perceber que nem sempre o que luz corresponde à verdadeira realidade dos factos. Há similitudes culturais que ajudam, de feito, a compreender o porquê de estarmos neste maremoto económico e social, porém, seria bem mais avisado não extrair daí premissas tão simplistas. Ver aqui e aqui.
Retirado daqui
Vejo que andar de metro e autocarro está a ser alçado à categoria de virtude, por o novo Papa utilizar estes meios de transporte para se deslocar, em vez da limusina a que teria direito enquanto arcebispo de Buenos Aires. Descubro, assim, que estou em linha com esta nova virtude papal - ainda que seja agnóstico. Aguarda-se, claro, que os crentes que a exaltam, mas ainda não a praticam, sigam as pisadas de Francisco I.
Não tenho por norma dissentir das postas dos meus ilustres confrades, aliás, concordo geralmente com tudo o que os escribas deste blog escrevem. Contudo, e como há sempre uma primeira vez para tudo, desta feita sou obrigado a discordar em parte do longo comentário da Regina da Cruz a propósito da Mensagem de Ano Novo, de Sua Santidade Bento XVI. Subscrevo a opinião da Regina no tocante ao erro que Bento XVI cometeu ao afirmar que o "capitalismo desregulado" é o grande responsável pela crise económica e financeira do último lustro. Erro esse, justificado pela observância imprescritível da doutrina social da igreja que não é propriamente um receituário ou uma súmula de prescrições liberais. Como podem depreender do que venho escrevendo neste blog e noutros fóruns não considero o capitalismo como o grande responsável pela crise. Sou, à semelhança da Regina, um apreciador inveterado das virtudes do capitalismo. Gosto do frémito da liberdade induzido pela criatividade que só um regime de mercado e livre concorrência consegue gerar. Liberdade e criatividade devidamente temperadas pela ética, como muito bem sublinhou a Regina. O busílis do argumento desfiado pela caríssima colega prende-se não com a apologia do capitalismo, que acompanho e suporto, mas sim com o breve libelo contra o Papa e a Igreja. A Igreja, não obstante os erros, desvios e imperfeições que qualquer instituição naturalmente possui - e, aqui, mais uma vez sigo a opinião da Regina - é uma das derradeiras formas de vida inteligente que existem neste mundo pós-moderninho. Mais, se há alguém que tem apelado à renovação espiritual do homem, esse alguém tem sido Bento XVI. Com os vitupérios do costume provindos dos artesãos do politicamente correcto. Portanto, quando a Regina fala em reabilitação dos valores humanos fundamentais deveria olhar, em primeiríssimo lugar, para a Igreja, por uma razão bastante singela: em tudo o que diga respeito à vida humana, a Igreja está e estará sempre na primeira linha de defesa do justo e do direito. Ontem, hoje e amanhã. A raiz do catolicismo bebe, justamente, nesta predisposição para a dádiva.
A Igreja não tem uma história impoluta? É um facto indesmentível. A Igreja deixou em vários momentos de viver a palavra de Cristo? Sim, é verdade. A Igreja favoreceu, em muitas circunstâncias, os grandes deste mundo? Infelizmente, sim. Tudo isso é verdade, porém, o que atrás foi dito não ajuda, de todo, a explicar o porquê de, ainda hoje, muitas pessoas devotarem à autoridade papal um respeito invejável. A relevância da Igreja mostra-se no dia-a-dia, nos magistérios da palavra e da acção, com o Homem como pano de fundo. As "palavras vazias" e os "rituais anacrónicos" são a razão de ser da Igreja. Sem eles nada faria sentido. Com eles a comunidade de fiéis alarga e fortalece os seus horizontes. O Governo da Igreja, tão criticado por alguns, é a prova de que a conjugação entre autoridade e liberdade é uma possibilidade bem real, testada ao longo de dois mil anos. Não são muitas, se não mesmo nenhumas, as formas políticas que podem gabar-se de combinar hierarquia com autonomia, justapondo autoridade pessoal com descentralização. O Governo da Igreja, considerado amiúde como uma antigualha bárbara, é um resguardo imprescindível em tempos de niilismo político e cultural. Bento XVI soube interpretar, como poucos, a impessoalidade do mundo contemporâneo, chamando a atenção para o relativismo que acomete todos os recantos da vida social. Impessoalidade que não brota apenas da falta de ética que perpassa os mecanismos económicos. A origem desta maleita é bem mais funda, grave e periculosa. É por isso que, por mais que eu possa discordar desta ou daquela afirmação do Santo Padre, nada me levará a dizer que a Igreja pouco ou nada faz pelo bem-estar espiritual do Homem. Faz e muito, sobretudo junto dos que mais precisam, assim como, dos que anelam por um futuro melhor. Talvez o tom seja demasiado apologético, mas a verdade é que nunca como hoje a Igreja foi tão necessária. O filisteísmo relativista só será combatido com autoridade e auctoritas. Bento XVI encarna na perfeição estes dois predicados.
A blogosfera, no meio do muito esterco que a traga, tem preciosidades que um bom leitor jamais desdenhará. Deu-se o feliz acaso de ter deparado, com o devido aconselhamento do seu autor (Rui Albuquerque), com um blogue bastante interessante, que dispõe de um inesgotável manancial de informação acerca do liberalismo de origem francesa. Refiro-me ao blogue, "Revolução Francesa". Um blogue sobre as vicissitudes e contingências do percurso histórico de uma doutrina afogada, as mais das vezes, na incompreensão letal dos eternos perseguidores da liberdade. Uma leitura pelas muitas postas que o Rui Albuquerque publicou ajudará a perceber o que eu quis dizer neste pequeno texto. Há, em Portugal, um defeito congénito que infecta até o liberalismo mais purista. A luta pela hegemonia nas ideias que, vista assim de chofre até parece uma coisa gramsciana, exige a pré-compreensão de que a cultura política e intelectual portuguesa está incrustada até ao tutano por um snobismo elitista tipicamente francês. Estado, centralismo, Estado, centralismo. Não saísmo disto. A resposta de um liberalismo autêntico, apegado às suas raízes e, se quiserem, ecuménico, aberto e laico, terá de partir destes pressupostos de origem e de facto. Não se muda nada sem se entender que o liberalismo anglo-saxónico, com as suas idiossincrasias próprias, não é directamente transplantável para a nossa realidade. Reitero o que disse anteriormente, o empenho da intelligentsia liberal nacional deve e só pode estar no aprofundamento do diálogo entre as diversas tradições da família liberal, que, no fundo, bebem na mesma origem. O Pedro Arroja, que já tem bastante andança nestas matérias, acerta quando afirma que, num país como o nosso, com uma cultura de matriz católica, o liberalismo não pode prescindir do catolicismo. Não pode nem deve, acrescentaria eu. A hegemonia jacobino-socializante só se combate com um verdadeiro ecumenismo liberal-católico, que una e não divida. Que projecte e realize.
Há alturas, não muito raras, em que o equilíbrio moderador do catolicismo, a doutrina do Homem, cativa-me bem mais do que qualquer outro apelo ideológico. O debate em torno da sociedade que queremos é, também, o debate de tradições teóricas conflituantes. Em Portugal raramente conseguimos fazer a junção dos opostos. E quando o fizemos, falhámos. A conjugação do personalismo católico com o individualismo de matriz liberal é um desafio que continua, ainda hoje, por responder. O futuro do campo da não-esquerda passa por aqui.
Samuel, a premissa central do teu texto - que percebo a ser a antecedência do homem face a Deus -, da qual resulta a noção de que Deus é uma criação humana, bem como o deísmo antropomórfico que caracterizas, parece-me padecer de um problema de base, brilhantemente sumariado em Being John Malkovich. Se nós vemos o mundo pelos olhos de Malkovich, o corpo de Malkovich age de acordo com o que cada um de nós quer experimentar. A realidade de "ser John Malkovich" torna-se assim no paradoxo do relativismo absoluto: John Malkovich passa a ver e agir como cada um de nós quer.
Serve a metáfora para dizer que tudo pode ser entendido como uma construção humana, se entenderes que por ser visto pelos teus olhos, humanos, passa a ser uma realidade construída por ti. Naturalmente que foi o homem quem escreveu sobre Deus, porque a escrita é um exercício humano. Faz isso de Deus uma criação humana? Da mesma forma faria de cada mesa uma mesa diferente, consoante quem passasse pelo interior da mente de John Malkovich, e olhasse para a dita mesa. A falácia "post hoc ergo propter hoc" enviesa o conhecimento: não é por a reflexão humana sobre Deus, e a escrita do homem sobre Deus, anteceder uma epifania que admitas como válida, que essa epifania passaria a ser uma construção tua. Ou todo o conhecimento se tornaria relativo, e, como tal, nulo. O que não é o caso!
No domínio da geometria euclidiana, o Teorema de Pitágoras é uma verdade à espera de ser descoberta, que não muda por ter sido Pitágoras a descobri-la. Fosse outro qualquer, mudasse o nome ao teorema, ele continuaria a conter uma relação indesmentível entre os comprimentos dos lados de um triângulo rectângulo, inscrito num plano.
O Teorema de Pitágoras foi verbalizado por homens. Tornar-se-ia diferente a cada um que passasse pelos olhos de John Malkovich? Não me parece, e por isso não me parece também que toda a verdade seja humana como afirmas. A Matemática é uma colecção de verdades que existem e da qual nos é dado vislumbrar pedaços da sua beleza de tempos a tempos. As verdades ainda não descobertas não são verdades inexistentes. E as existentes são idênticas para qualquer olhar que sobre elas se debruce. Mesmo o último teorema de Fermat sobreviveu séculos, apesar de não demonstrado até recentemente.
Se a Verdade existe então, para além do humano, o Absoluto tem também de existir. Porque a Verdade é absoluta. A nossa missão muda radicalmente. Tentamos apreender a verdade, como dizia Newton, trabalhando como anões nas costas de gigantes. Santo Agostinho separava de forma clara a matéria criada da que não o foi. Deus cria. Não é ele próprio matéria criada, e por isso antecede a matéria criada. A concepção humana de Deus pode-lhe ter conferido, em muitos cultos, rostos humanizados. Da mesma forma que estilizamos as representações de extra-terrestres a partir do nosso universo de conhecimento morfológico. Mas o Cristianismo, no que me parece ser um ponto que ilude a tua reflexão, não o faz. Jesus Cristo não é a humanização de Deus, nem a representação de Cristo pretende ser a representação de Deus. Cristo é Deus que veio ao mundo como Homem. E para interagir com os homens. Por isso, numa forma reconhecível pelos homens. Nenhum Homem, diz-nos Jesus, alguma vez viu Deus, na sua vida terrena. Quando muito, alguns tiveram a Fé para reconhecer Deus no homem Jesus Cristo.
Vale a pena recordar o episódio da sarça ardente, em que Moisés interage com Deus na montanha. Pede-lhe para o ver, para o poder apresentar ao povo que tirara do Egipto. E Deus permite-lhe apenas ver a sombra de umas costas numa pedra. Santo Agostinho, em Da Trinidade, conclui que essa sombra é a sombra das costas de Jesus, pois será essa a forma humana que Deus tomará quando vem ao nosso encontro no Novo Testamento.
Não podemos, por isso, confundir antropomorfismo deísta com Cristianismo. É assumido no Cristianismo que não conhecemos o rosto de Deus, nem sabemos se o tem. Foi-nos dado, pelo Seu Amor, conhecer a Cristo, Deus que veio a nós na forma humana. Mas que não consiste na forma (se o conceito se aplica?) do próprio Deus, pois Ele não é matéria criada, nem se situa neste plano de morfologias reconhecíveis. O Deus dos Cristãos é a Trindade Santíssima: uma união perfeita de três pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) que são uma só, pois cada uma está em todas as outras e são consubstanciais. O Deus é uno e trino. Consubstancial porque todo é Amor. Só se distinguem nas relações recíprocas, mas todos um mesmo Deus.
Convirás, Samuel, que há pouco de antropomórfico, na percepção de um Deus uno e trino, pois essa é uma realidade desconhecida e mesmo misteriosa no nosso plano vivencial....
Samuel, reconhecendo a valia da reflexão do Mark Vernon, não deixo de sentir perplexidade com a abordagem quase utilitarista que tem da religião. A Fé não tem um propósito em si mesmo, no sentido em que não é proclamado que "o sujeito A deve ter Fé, para poder fazer uma melhor introspecção de si". Reconheço a valia do exercício, e admiro o exame de consciência e a noção das limitações que a proposta do texto potenciam. Mas não é um caminho de validação da religião: conferir-lhe uma utilidade. Precisamente porque a verdadeira Fé não procura ter uma utilidade.
Daí o meu desconforto com o texto anterior em que se citava o mecanismo: a salvação. Pobre daquele que tem fé porque acha que assim se salva. Tem-se Fé, no meu enquadramento religioso, que sabes ser católico romano, porque se adere à Graça: Deus confere-nos a possibilidade de acreditar, e acreditamos. Não esperando nenhum tipo de recompensa por acreditar. A Salvação é a aspiração de uma comunhão eterna com o Deus que amamos: o perpétuo mergulhar da alma no Seu Amor, nas palavras de Bento XVI. E deverá decorrer de uma vida em que se caminhe na imitação da vivência da Caritas. No modelo do Bom Samaritano, que, enquanto teólogo, Joseph Ratzinger, identificou com o próprio Cristo: Deus que se fez homem para vir assistir a sua criatura caída na estrada nesta existência terrena, vergada pelos pecados e males do mundo.
As limitações do humano face ao Criador são enquadráveis no seio da própria religião. Seria interessante, a meu ver, que Vernon reflectisse também sobre a natureza do pecado original. Que contrariamente ao senso comum, não tem uma acepção estritamente sexual: antes resulta do homem, Adão, que tentado a comer da Árvore da Sabedoria, não resistiu, porque iludido de que assim seria conhecedor das mesmas coisas que Deus. A tentação de Adão é querer substituir-se a Deus, podendo governar o mundo com o conhecimento de Deus. Vernon aponta correctamente para a percepção da humildade do homem face ao divino, mas ignora que a tradição judaico-cristã assimila desde o Génesis, essa mesma necessidade de humildade. Nas Escrituras, a condenação do homem não é pela percepção da nudez, mas pela necessidade de se substituir a Deus.
A abordagem de Camus ao Mito de Sísifo é atravessada da mesma incultura religiosa que marca muitos dos existencialistas do seu tempo. Camus não inventa nada, nem coloca em Sísifo nenhuma questão nova a que o Cristianismo não tivesse já respondido, da forma mais sublime, nas Sagradas Escrituras. A questão da "falta de significado" dos padecimentos do homem no mundo é respondida precisamente por Jesus Cristo: Deus toma a forma da sua criatura eleita, o homem, e vem, como verdadeiro Homem, experimentar as agruras da condição terrena. Ensina-nos S. Tomás de Aquino que Deus cria por Amor, e por Amor vem verificar, na pele de Homem, o suplício das misérias terrenas. Enquanto verdadeiro homem, Cristo, como o Sísifo de Camus, é livre: pode recusar, nada lhe é imposto. Só que o que os Evangelhos nos mostram é que Cristo une, pela oração, a sua vontade humana à vontade divina, pois é também verdadeiro Deus. E com isso suporta todo o padecimento da sua vivência no mundo, que culmina na Paixão e na Cruz. O grito lancinante que replica o Salmo 22, mostra até que ponto o Deus compreende a condição humana! No alto da Cruz, Cristo cita o salmista, "Meu Deus, porque me abandonaste?", dando voz a todas as agruras que no mundo levam o homem a questionar-se da sua sorte. Mas cumprindo com a vontade de Deus, e ressuscitando no terceiro Dia, Cristo responde ao sentido da existência Cristã: Deus não abandonou o Homem, pois o sentido da vivência humana ultrapassa esta efémera passagem terrena.
(Henrique VIII, imagem tirada daqui)
Não tenho sequer um centésimo do arcabouço intelectual do Corcunda, que conheço pessoalmente e que respeito pela coerência, inteligência e pela simpatia que o caracteriza. Faltam-me leituras, muitas leituras, e estudo, muitas horas de estudo, para almejar sequer colocar a discussão no complexo patamar a que já nos habituaste (e saúdo o facto de teres voltado a escrever, julgo que após umas merecidas férias, aproveitando para confessar que estou honrado por ter sido em referência a uma discussão que envolveu a minha pessoa) que, em minha opinião, só encontra paralelo na blogosfera lusa na pena digital do Professor Maltez e do Miguel Castelo-Branco.
Considero que o diálogo e a crítica são das mais saudáveis e nobres actividades humanas. Não posso, no entanto, deixar passar em branco extrapolações que não fiz. Na realidade, concordo totalmente com os segundo e terceiro parágrafos do teu post. Como mera curiosidade, diga-se de passagem que só não fui baptizado protestante porque o Bispo de Londres anuiu ao pedido dos meus pais para que o padre de Bolungarvik me baptizasse em casa, segundo o rito católico. Se o facto de ter nascido em um país protestante (Islândia) de alguma forma condicionou a minha forma de estar, é uma incógnita. Mas sem dúvida que o liberalismo e a própria democracia liberal estão intimamente ligados ao protestantismo, e os meus pontos de vista talvez estejam mais próximos deste, no que à teoria política diz respeito.
Comecemos pelo que afirmação do Corcunda de que "ao contrário do que supõe o Samuel, ao liberalismo nada pode ser imputado no sentido de separação da esfera política e religiosa". Eu não suponho nada disso. Até o liberalismo de inspiração francesa é mais religioso que o catolicismo, e o marxismo é tão ou mais milenarista e apocalíptico do que o cristianismo. Ambos lemos a Morte da Utopia do Gray, sabemos do que falamos, e o Corcunda muito mais do que eu, portanto esta confusão não tem sentido algum. Eu apenas disse que "simplesmente encaro a religião como um assunto que apenas diz respeito à vida privada de cada indivíduo e, como liberal que sou, encaro a Igreja como um grupo social como outro qualquer, com total direito a exprimir as suas opiniões". E como decerto sabes, o protestantismo, tendo a liberdade individual como máxima, permite que cada qual encontre o seu caminho para Deus da forma que preferir, daí resultando a intensa proliferação de Igrejas protestantes extremamente diversificadas. Já agora, se isto é bom ou mau, não me compete a mim julgar. Importa no entanto notar que, pela negativa, os países protestantes se vêem a braços com a proliferação de outras religiões que se pautam pela intolerância e ameaçam a liberdade individual. O protestantismo é naturalmente caracterizado pela descentralização (uma característica das democracias liberais dignas desse nome), por oposição ao catolicismo de inspiração centralizadora - mais uma vez, não estou a criticar negativamente, até porque se assim não fosse talvez a independência Portuguesa garantida por D. Afonso Henriques não tivesse sido possível - obviamente foi o beneplácito papal que a sacralizou - e até talvez a aventura portuguesa dos Descobrimentos não tivesse tido o sucesso que teve - não nos esqueçamos da missão civilizadora imbuída do carácter apostólico.
Quanto à "própria ideia de que a comunidade política não se deve submeter a uma concepção de Bem (que o Samuel parece aceitar como axioma, vindo sabe-se lá de onde)", é muito fácil. É que o Corcunda ou o Afonso Miguel, como os integralistas e certos direitistas, pugnam por uma completa submissão da política à religião católica e à concepção de Bem Comum que dessa advém. Isto é tão rousseauniano quanto utilitarista (Helvétius, Bentham), e está tão presente nas ideologias nazi como comunista. Schumpeter ou Berlin demonstraram magistralmente que não há qualquer Bem Comum ou Vontade Geral. Eu não sou colectivista ou totalitarista e, como tal, não posso tolerar um sistema que por englobar toda a sociedade nas suas concepções se torna intolerante. Quem é que tem mais legitimidade para definir qual a concepção de Bem que me satisfaz? Eu ou os outros? Lamento, para mim continuará a ser a minha pessoa. Portanto se esta "é uma ideia política luterana e que seria impossível em qualquer contexto religioso não-protestante", ainda bem que vivemos numa democracia liberal e que mesmo pensando assim tenho a liberdade de continuar a ser um católico, pouco praticante, confesso, mas que encara a Igreja como um actor social como qualquer outro - e se me quiserem chamar de herege, estejam à vontade, mas parece-me que a Igreja Católica é, hoje em dia, mais tolerante do que muitos daqueles que mais dizem defendê-la e que por se tornarem dogmáticos e intolerantes à crítica, acabam por prejudicar a imagem desta. Bom, mas não vale a pena ir tão longe, é que não é só hoje em dia. A tolerância que o Corcunda diz que os liberais tornaram em religião de Estado, é mais premente no catolicismo do que no protestantismo, ou não tivesse Gil Vicente caracterizado magnificamente essa Nobre personagem que pecava mas que a Igreja perdoava a troco de dinheiro. Aliás, em que país protestante é que José Sócrates ainda estaria no poder depois de ter mentido acerca da licenciatura? Nenhum. O protestantismo, porque contratualista, não admite desvios ao que se contrata. Quem sou eu para o dizer, mas talvez o conceito de tolerância seja um pouco mais multidimensional e menos linear do que o que o Corcunda parece pensar.
Quanto ao último parágrafo do teu post é que me parece que acaba por fazer cair pela base a construção dos dois anteriores. Logo a começar, eu apenas afirmei que não gosto de misturar religião com política (porque discussões do género estão condenadas à partida a não levar a lado algum e a acirrar ódios irracionais na maior parte das pessoas), e se digo que a Igreja é um actor social como qualquer outro e, por isso, com direito a exprimir as suas opiniões, obviamente derivadas do elemento religioso que dá consistência à sua existência e acção, naturalmente que a Igreja tem influência na política. Isto parece-me lógico, mas talvez não me tenha exprimido bem.
Mas o que me parece mais curioso e caricato é esta extrapolação "Afirmar que se é tradicionalista “anglo-saxónico” e que se prefere um Estado laico é o mesmo que um comunista que adora a economia de mercado". No meu post, refiro-me ao método continental e afrancesado da revolução, por oposição ao método tradicionalista anglo-saxónico de incorporação das revoluções e da continuidade, ideia eminentemente conservadora, sobre a qual Ortega y Gasset discorreu, e era a isto que me referia.
Posto isto, o Corcunda conclui dizendo que (peço desculpa pela repetição, apenas para enquadrar) "Afirmar que se é tradicionalista “anglo-saxónico” e que se prefere um Estado laico é o mesmo que um comunista que adora a economia de mercado. Haveria alguma possibilidade de haver conservadorismo britânico num Estado Laico? Essa é que não passa mesmo pela cabeça de ninguém…". E com esta extrapolação é que fico confuso. Ora se "A própria ideia de que a comunidade política não se deve submeter a uma concepção de Bem (que o Samuel parece aceitar como axioma, vindo sabe-se lá de onde) é uma ideia política luterana e que seria impossível em qualquer contexto religioso não-protestante", significa que, logicamente, eu estarei mais próximo do protestantismo (e do ponto de vista da teoria política não me parece que hajam dúvidas, depois do que acima expus) e do conservadorismo anglo-saxónico. Invertendo a questão, parece-me então que talvez não passe mesmo pela cabeça de ninguém que se possa ser conservador e tradicionalista anglo-saxónico e em simultâneo acerrimamente católico. Como há dias escreveu o Afonso Miguel em relação à minha pessoa, ou não é assim e não era nada disto que o Corcunda queria dizer? É provável...
Ou afinal o protestantismo e o catolicismo são mais idênticos do que se possa pensar? Ou eu não percebo nada disto? Também é provável, portanto, desculpem lá qualquer erro ou incoerência.
(P.S. - Agradeço à Cristina por se ter ocupado das nomeações e prémios nos últimos dias. E agora, se me permitem, vou voltar para a minha tese sobre a política externa portuguesa).