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O mundo ocidental vive obcecado com a ideia do superlativo, da grandeza incomparável. A manifestação de ontem foi vendida como sendo a maior na história da humanidade desde que se conhece o terrorismo. A vigília de ontem, de acordo com jornalistas que não dormiam há mais 72 horas, serviria para acabar de vez com a profunda fractura que define a sociedade francesa. E vimos a proa do cordão político da Europa dar esse espectáculo - nada devemos, nada tememos. O problema que se apresenta aos orquestradores da ordem unionista europeia prende-se com a ideia de escala. A homenagem de ontem, apresentada como cartucho maior, será certamente relativizada nos tempos que correm. O problema que essencialmente enfrentamos relaciona-se com as mensagens que se pretendem transmitir, sem que se faça a devida pausa para interpretar os seus conteúdos, assim como o seu alcance. Não sabemos ao certo quem atirou a primeira caneta ou disparou o primeiro tiro. O que sabemos é que a comunicação será sempre assimétrica. Ou seja, teremos a impressão de que a última palavra será a nossa, quando de facto a mesma se encontra em parte incerta, nas trincheiras do inimigo, porventura. Mas insistimos. Antecipamos os movimentos dos outros por descrença nas nossas palavras e nas nossas acções. E é este o mundo dialético, imprevisível, em que vivemos. Quatro milhões de pessoas quiseram enviar um recado que corre o risco de não chegar ao destinatário em conformidade com a sua intenção. Da próxima vez que algo inédito acontecer que resposta será dada? Que mega-manifestação irá superar a anterior?
Assim que Charlie Hebdo foi alvo do ataque terrorista, o chavão "liberdade de expressão" foi aclamado como salmo sagrado por um sem número de vozes que grita pelos direitos inalienáveis da prática jornalística. Desde esse momento, tenho vindo a pensar sobre o assunto e cheguei às seguintes conclusões; os meios de comunicação social e os jornalistas não são sacerdotes da independência de pensamento, e muito menos são donos da verdade. Os jornais, as revistas (mesmo as satíricas), as televisões, as rádios, assim como as editoras, pertencem todos a grupos económicos que por sua vez são controlados por governos. Deixemo-nos destas tretas, deste bullshit humanista com laivos de Esquerda esclarecida ou Direita carente, para enfrentarmos de frente os desafios que se nos apresentam. Não nos encontramos num mundo rasgado por linhas de precisão ideológica. Não. Vivemos num mundo de percepções fabricadas, alibis alimentados por agendas políticas, fundamentos resgatados de manuais com forte poder de doutrinação. A rápida ascensão de slogans, com intenso valor de mobilização, são a prova de que as nossas sociedades vivem sob os auspícios da vulnerabilidade da sua própria ignorância. Parece-me, que no contexto de falta de juízo individual, é mais fácil saltar para um comboio em andamento. O terrorismo, condenável sem resquícios de dúvida, está a servir para acomodar passageiros numa toada visceral, regrada pelas emoções e pela ausência de pensamento mais profundo. Temo que já tenhamos ido para além da estação de destino. Não me falem de liberdade de expressão assim sem mais nem menos. Falem de autorizações concedidas por conselhos de administração para publicar aquilo que convém a uns e menos a outros.
O massacre na redacção de Charlie Hebdo em França trouxe para a linha da frente a prerrogativa da liberdade de expressão, o direito que assiste indíviduos e organizações enquanto membros de pleno direito de Democracias. No entanto, há outras considerações operacionais que devem ser levadas em conta. Nesta fase de gestão da crise, a excessiva mediatização pode ser contraproducente. A cobertura em directo de emergências com estes contornos concede ainda mais tempo de antena, assim como informação logística importante, aos terroristas e seus seguidores. Ou seja, a obrigação de informar (outra conquista de regimes democráticos) é colocada ao serviço dos seus detractores. Existirá um limite para a informação que se deve partilhar com o público enquanto decorrem as operações? Poderão Democracias impôr uma censura parcial aos jornalistas no contexto da necessidade de preservar intactas algumas dimensões de salvaguarda da Segurança e Ordem internas? Os terroristas, seja qual for a sua base ideológica ou religiosa, dependem, em última instância, do efeito amplificador da sua acção, da "ajuda" dos meios de comunicação social. Não me parece líquido que o facto do público ser recipiente de um imenso manancial de informação possa ajudar à resolução da crise. Ou seja, mesmo em Democracias existirão momentos de reclusão. Assistimos, embora noutro espectro de análise, a uma modalidade de violação de segredo - policial, se quisermos. A assimetria na partilha de informação não é necessariamente negativa. Não confundamos liberdade de expressão com a obrigação de informar. Existe uma relação entre a ambas, mas para já, basta ligar a televisão e entrar no filme. E depois publicar umas considerações no Facebook.
França está, como sempre esteve, obrigada a encontrar respostas para a profunda fractura que divide a sua sociedade. O termo malaise parece-me excessivamente leve e indolor para retratar a paisagem gaulesa. No seu discurso à nação, François Hollande refere as vítimas, o jornalismo e o valor iconográfico de Charlie Hebdo, mas omite as noções de facto, aquelas que consubstanciam este desenlace. O lugar (ou não) do Islamismo na sociedade francesa, e em resultado da concepção que se venha a eleger, a sua interpretação política e social, e a acção decorrente da mesma. Numa óptica civilizacional, desprovida de paixões ideológicas ou religiosas, o que sucedeu é uma mera amostra de um universo maior de eventos que decerto irão impactar outras nações europeias. Numa primeira leitura das palavras de Hollande sentimos o seu medo, a angústia por poder ser um péssimo analista do que enfrenta. O terrorismo que tocou à porta francesa vai gerar respostas morais de ordem diversa. Por um lado os hardliners do espectro político-partidário irão avançar com a intensificação de uma ideia de controlo estatutário, de cidadania autoritária, de Estado forte, e por outro lado, assistiremos a discursos integracionistas, versados na expressão discriminatória dos banlieu, na opressão económica e social de onde saltaram alegadamente aqueles que perpetraram estes actos cobardes e vis. França, quer o assuma ou não, está sentada sobre uma bomba-relógio de proporções alarmantes. O país das liberdades fundadoras encontra-se numa valente encruzilhada, diante de uma equação difícil que exige uma resposta perfeitamente adequada. A liberdade de expressão, invocada a leste e oeste, foi apenas um veículo para outro género de bandeira. Para a clausura de espírito. Para as trevas que ensombram o nosso mundo.