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Há dias especiais. Hoje foi certamente um desses dias. A razão é, verdade seja dita, assaz prosaica. Por norma, a primeira coisa que faço quando saio de casa é efectuar uma rápida vistoria pela caixa de correio, de molde a verificar se há alguma novidade postal de monta. Normalmente, essas novidades quedam-se pelas contas da água e da electricidade, contas essas, que, como os leitores muito bem sabem, são um autêntico panegírico à roubalheira legal sancionada pelo Leviatã desrepublicanizado. Porém, hoje, fui agradavelmente surpreendido quando abri a minha caixa de correio. Qual não foi a minha surpresa ao encontrar dois dvds com filmes de Aurélio Paz dos Reis. Inicialmente, julguei, e bem, vistas as circunstâncias, que houve engano. Não seria a primeira vez, nem, muito provavelmente, a última, que os nossos serviços postais cometeriam erros deste jaez. Contudo, após uma rápida análise dos dvds em causa, constatei que os mesmos tinham uma dedicatória anónima à minha pessoa. Perante este achamento, concluí que, de facto, os filmes em questão eram dirigidos a mim. Quem quer que tenha sido o autor de tamanha dádiva, aproveito, desde já, para endereçar-lhe os maiores e mais sentidos agradecimentos. Lamento, apenas, que o dito oferecimento fosse desafortunadamente anónimo. Dito isto, o que mais me agradou no referido presente foi o boníssimo facto de os filmes em questão abrangerem um cineasta que muito prezo. Para quem não sabe, Aurélio Paz dos Reis foi um dos grandes responsáveis pela implantação do cinema em Portugal, se não mesmo o maior responsável. Mais do que um pioneiro arrojado, Paz dos Reis foi um divulgador incansável da sétima arte em solo nacional. Num tempo em que a memória colectiva é constantemente ensaboada pelo olvido deliberado das referências nacionais de antanho, um presente desta magnitude teve o singelo condão de me recordar que há uma história soterrada pela insaciável espuma dos dias. A cidade do Porto é um bom exemplo desta deriva desmemoriada. Vejam, por exemplo, o desprestígio granjeado, nos últimos anos, pelos agentes culturais da cidade. Se olharem para a cena cultural da grande metrópole nortenha - com algumas excepções de vulto - verão que os Paz dos Reis de outrora são, hoje em dia, meros mequetrefes que vivem a expensas do subsídio público habilmente negociado com o poder político municipal. Não há "cultura" que sobreviva a tanto embuste. Entretanto, e como não há, qohéleteanamente falando, nada de novo debaixo do sol, vou aproveitar o ensejo fornecido pela alma caridosa que me ofereceu os santíssimos dvds, para rever, entre outros, o "Mercado do Porto" e o "Avenida da Liberdade". Boa noite, e boa sorte.
Enquanto a Espanha tem assinalado com pompa e circunstância o bicentenário do que designa como a sua Guerra da Independência, enaltecendo o seu esforço e exagerando o seu contributo para a derrota da França Napoleónica, em Portugal as comemorações do bicentenário das Invasões Francesas têm estado quase exclusivamente a cargo das Forças Armadas, e gozando de pouca ou nenhuma divulgação e visibilidade. Não faz qualquer sentido que assim seja, já que Portugal foi um dos vencedores daquela que foi, até então, a maior guerra a que o mundo assitiu, abrangendo o continente europeu e extendendo-se para além dele (campanha napoleónica do Egipto, conquista da Guiana Francesa por Portugal), tendo dado um contributo relevante para a vitória dos Aliados. E, no que toca a História, convém que Portugal saiba sempre marcar a sua posição caso contrário outros aproveitarão a oportunidade para revisionismos.
Quando, há uns anos, se deu início às comemorações dos 200 anos das Invasões Francesas, teve lugar em Lisboa um seminário internacional reunindo historiadores militares dos países envolvidos: Portugal, França, Espanha, Reino Unido e Brasil (que no momento das invasões foi elevado a reino e para onde foi transferido o governo e a capital). A perspectiva britânica era de que a Guerra Peninsular tinha sido uma vitória britânica, fruto da qualidade dos exércitos de Sua Majestade e do génio do general Arthur Wellesley (Duque de Wellington), numa campanha em que as tropas portuguesas tinham tido um papel digno mas de mero coadjuvante (as referências era feitas em tom de nota de rodapé...) Por seu turno, na perspectiva francesa, as invasões são ainda hoje referidas como as Expedições: não se tratava de invadir ninguém mas antes de combater o inimigo inglês, libertar os povos das trevas do Ancient Régime e implantar as luzes da Revolução Francesa. Não tardou muito a que tais pontos de vista tivessem resposta portuguesa e espanhola, dando a perspectiva dos invadidos. Recordo-me de ver, na pausa para café, o representante francês a "ferver" com o que tinha acabado de ouvir, vendo que a memória que dos Pirinéus para cá se guarda da ocupação francesa não é melhor do que a que os franceses guardam da ocupação nazi. Duzentos anos depois, as memórias e as feridas continuavam surpreendentemente presentes, e tinha bastado alguma arrogância e convencimento - e quiçá a ideia errada que o Português tudo perdoa, tudo aceita - para o revelar.
Duzentos e dois anos depois da derrota francesa frente ao Exército Anglo-português entrincheirado na Linhas de Torres, chegou às salas este filme português, proposto pela Câmara Municipal de Torres Vedras para comemorar o bicentenário do acontecimento que colocou a povoação do Oeste nos anais da História Militar mundial.
Mais do que uma reconstituição histórica e um filme de guerra, é sobretudo um relato sobre como a guerra (no caso, a Terceira Invasão Francesa) foi vivida por pessoas de todos os géneros, cujas vidas foram alteradas pelos acontecimentos: portugueses, ingleses, franceses ou cidadãos de outras nacionalidades que, por uma razão ou por outra, cá estavam na altura. Tudo isto tendo como pano de fundo a retirada estratégica do Exército Anglo-português e das populações para trás das Linhas de Torres Vedras, levando a cabo a política da terra queimada: uma estratégia que para muitos portugueses implicou passar fome para poder reconquistar a Liberdade e Independência. Serve para lembrar às gerações actuais o que significa para um povo passar por uma guerra e uma ocupação, no exemplo do maior suplício por que o Povo Português passou em toda a sua história.
É um filme de qualidade a todos os níveis, de que destaco a prestação do numeroso e competente elenco. Será emitido futuramente na versão de série de TV mas aconselho vivamente a vê-lo no cinema.
Estão de parabéns Paulo Branco (que produziu), Carlos Saboga (que escreveu), Raul Ruiz (que pré-produziu) e Valeria Sarmiento (que realizou). Está de parabéns o cinema português.
Site oficial do filme: http://www.linesofwellington.com/pt/linhas_wellington_home.php
Site oficial das Comemorações do Bicentenário das Linhas de Torres Vedras: http://www.linhasdetorresvedras.com/