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Hoje apetecia-me escrever um post redux, galvanizado pela recém-largada bojarda de Atenas que diz que diz que diz não à Troika, mas sem recalcitrar além da razoabilidade nos pormenores sangrentos daquilo para que estão guardadas duas gerações de portuguesitos amorfizados.
Façamos a coisa a três tempos - passado, presente e futuro.
No passado, há meros vinte anos, o essencial à subsistência de qualquer lar era produzido em Portugal, e por isso acessível a grande parte das famílias.
Enquanto petiz, os extremos dos meus dias eram passados testemunhando o desenrolar de vidas activas - pessoas a quem, directa ou indirectamente, era dado produzir e participar no circuito de distribuição daquilo que era produzido. E havia lugar para todos, ou pelo menos para os melhores. Era um mix de selecção natural, empreendedorismo, comunidade e família. Respirava-se no quotidiano, com saúde mental, e a venda de antidepressivos e ansiolíticos encontrava-se em mínimos históricos.
Também nesse mesmo passado, o acessório era devidamente enquadrado como tal, e qualquer das gerações então coexistentes sabia como coadunar o seu modo de vida no âmbito do imediato com as aspirações a médio e longo prazo.
As pessoas faziam o que tinham de fazer por si mesmas, sem que para tal fosse imperativa a consignação de quaisquer estipêndios financeiros, autorizações e certificados, ou autocolantes coloridos por parte do Estado. Não consta que houvesse mais ou piores acidentes de trabalho, ou que grassasse a peste bubónica entre os veraneantes na Caparica. Um homem era um homem, uma mulher uma mulher, um aluno aprendia, e a cor da pele de um assaltante (que deixava de ser jovem com a mesma idade dos restantes cidadãos), era legível nos jornais, até mesmo no Público.
Depois foi dito aos portuguesitos, tendo por base a permutação do essencial pelo acessório, que as inúmeras e suculentas prebendas materiais disponíveis nos outros países, os sérios e trabalhadores onde a lucidez e a previdência imperavam, podiam ser suas bastando para tal que ingressassem, de mãos dadas em concupiscência com a classe política (à qual poderiam até pertencer, senhores!, pertencer como os marqueses de antanho) num lento e inexorável suicídio a longuíssimo termo.
Dando ao desbarato os valores, princípios, orientações, instintos e ofícios - afinal, a súmula da Tradição - que fizera de Portugal um país funcional, assim se quis o provincianismo sob uma capa cosmopolita, a boçalidade coberta a casquinha dourada, o chico-espertismo nepótico e tentacular que a tudo e todos emaranhou - dos antros degenerescentes de deseducação neurótica e ignara, aos veros corredores da morte que são hoje os hospitais, da incapacidade policial ao apurado esbulho fiscal - no deslumbramento pago por trinta óbulos da nova moeda comunitária.
Da lama mais vil fizeram-se doutores e engenheiros, e até nulidades impróprias para servir à mesa no Ruanda se viram catapultados para a cúpula da cópula sedeada em Bruxelas. Fim do primeiro acto.
O presente, no nosso país, é como a mole protoplásmica do caldo primevo onde a vida deu os primeiros passos. Vive-se de cabeça bem afogada na turfa mais densa que for possível achar, e foge-se do espelho, a pavor, como se o embate com o próprio reflexo invocasse o ónus vesicante de trinta e nove anos de votos vendidos a troco de migalhas.
É-se crianço anafado em ambiente hermético e isento de traumas (as árvores não que arranham, os professores não que ralham, as notícias não que cansam a cabecinha), como se todo o mundo até à vetustez da meia-idade fosse uma extensão do ventre materno, e a sociedade o líquido amniótico que expia os recalcamentos dos paizinhos, ébrios do conforto a crédito e da homogeneização pelo denominador mais baixo.
A mediocridade dita o cair do pano ao término do penúltimo acto.
E vai ser um futuro simples, resta dizê-lo. A impossibilidade de esmifrar mais sem que suceda algo realmente grave, a saída do euro, ou o Anticristo de Alcochete - cedo ou tarde o recibo cai na mesa com juros e correcção monetária, para quem ainda se lembra do que isto significa.
Vai ser bonito de se ver, agradável, macio, pitoresco, e um regalo para os justos (Mat 5:6) quando o acessório, da noite para o dia, novamente custar dez vezes mais do que hoje, pois que nada cá é produzido e sim tudo importado, usado, descartado e readquirido como se não vivêssemos sob um sistema mais diáfano e frágil que as asas de um beija-flor; e o essencial, com a mesma celeridade, desaparecer das prateleiras, pois que está na natureza do lusitano, uma vez ameaçado, rapar como um sevandija faminto toda a esperança do seu semelhante, só porque sim.
As súcias de instalados dentro e à sombra do Estado, ao debandar perante a quebra da urdidura, deixarão entrever por entre as costuras esgaçadas a real dimensão da Besta que sufrágio após sufrágio cada um de vós, pequenos Judas, ajudou a amamentar, mesmo aqueles cuja "única" culpa é a da complacência para com o estupro das gerações que já se foram, e das que virão.
É todo um novo campeonato: esqueçam o terrorismo de Estado, em Portugal tivemos o terrorismo de Eleitorado. Acaba-se a guita, acaba-se o móbil, reverte-se ao estado de energia mínima. Eu assim por alto atiro para os níveis de vida que tínhamos em 1982, 1983. Por alto.
Estou em crer que o posfácio desta peça há-de entrar para os anais da História, um marco Histórico, como é moda ser propalado pelo aparelho de propaganda que Soares montou, Sócrates aprimorou, e os imberbes de hoje aproveitam.
Acta est Fabula.