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Acabou de ser aprovada, na nossa câmara dos representantes, a proposta de referendo sobre a co-adopção e adopção por casais do mesmo sexo.
Confesso que, até há pouco, quis acreditar que isto não passava de uma brincadeira de mau gosto, mas agora o efeito perverso da intromissão da JSD no seio do Parlamento começa a sentir-se.
É de uma má-fé incrível que, quase um ano após a aprovação da proposta do PS para a coadopção por casais ou unidos de facto do mesmo sexo, com 99 votos a favor, 94 contra e 9 abstenções, se pretenda unir esta vitória (que não é apenas do PS mas sim das crianças e dos coadoptantes, que teriam um quadro jurídico adequado às suas especificidades) a uma questão que se apresenta distinta e que, ademais, já foi chumbada duas vezes pelo Parlamento, e submetê-las, como se de uma questão una se tratasse, a referendo.
Só mesmo uma pobre massa encefálica como a de Hugo Soares para propor isto.
Pior, só mesmo o PSD, impermeável ao voto de muitos dos seus deputados (veja-se a demissão de Teresa Leal Coelho, que iria votar contra a proposta e não o fez por motivos ligados não à sua convicção mas à “lealdade parlamentar”, das funções de vice-presidente da bancada), a impor uma disciplina de voto sob a batuta da JSD. Disciplina essa altamente contestada – note-se que vários dos deputados, nomeadamente, Mónica Ferro, Miguel Frasquilho, Mota Amaral, Cristóvão Norte, Paula Cardoso, Ana Oliveira, Ângela Guerra, Sérgio Azevedo e Conceição Caldeira, decidiram apresentar declarações de voto.
A conformação de um voto de forma a evitar a deslealdade parlamentar é um exercício de subversão daquilo que é a efectiva representatividade. Na realidade, o que se aprovou hoje na AR transcende quaisquer querelas ideológicas, teoremas conflituantes e métodos contrapostos. Hoje foi um dia de vergonha ao nível da representação, hoje foi um dia em que se deixaram inúmeras famílias reais, denominadas não convencionais, nas mãos de uma decisão popular, pouco esclarecida e, arrisco dizer, algo preconceituosa.
Num Estado de Direito, no plano do dever-ser, seria inconveniente e inaceitável a corrupção das normas legais que brotam dos regulamentos, dos estatutos, das leis orgânicas, enfim, de toda a panóplia de fontes legais que servem o interesse público e cujo teor é geral e abstracto. Isto vocês sabem. Eles não. Esperemos que o TC aprecie devidamente esta borga de mau gosto.
Ora, na lei orgânica do referendo é restringida a possibilidade de serem referendadas duas matérias distintas, de uma única vez. Cumpre acrescentar ainda que apenas uma destas matérias, a da coadopção, tem um processo legislativo em curso, uma vez que a relativa à adopção foi chumbada duas vezes. A proposta aprovada submete a referendo duas matérias que, não só são distintas, como não são, pela sua natureza, referendáveis. Não são, lamento. Trata-se, como diz Isabel Moreira (God forbid, estou mesmo a concordar com ela. Um dia teria de ser), de uma questão que envolve direitos fundamentais e que põe em causa uma série de instituições que zelam pelos mesmos. Não é relevante, para o caso, que o direito à coadopção seja um direito de minorias (adoptada a perspectiva dos casais homossexuais) ou respeite ao superior interesse das crianças. O que importa aqui é dar abrigo à realidade que vige acima das nossas crenças.
Hoje não se respeitaram os trabalhos que decorreram na especialidade pelos deputados do CDS, do PS, do PCP, do BE e do PSD. Hoje a AR fez tabula rasa dos trabalhos desenvolvidos no passado ano de modo a elucidar o voto dos deputados. Hoje foi olvidada a votação na generalidade que aprovou, a 17 de Maio de 2013, a possibilidade de coadopção por parte de casais do mesmo sexo. Hoje, um dia em que tanto se falou de lealdade, esta não foi observada.
O que aconteceu hoje foi uma demissão, por parte da AR, da discussão de um tema complexo que tem repercussões emocionais e práticas na vida real de muitos cidadãos.
Isto não é um exercício são de democracia, isto não é representar, isto não é nada.
Hoje foi um dia de vergonha para a democracia representativa.