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É Cavaco com o mar e Adriano Moreira com o Conceito Estratégico Nacional. Ou a muy portuguesa arte de falar sem nada dizer ou fazer. Já não há paciência para estas masturbações intelectuais de alegadas eminências pardas do regime.
Durante a elaboração de minha dissertação de mestrado apercebi-me que a ideia de um Conceito Estratégico Nacional, como a concebe Adriano Moreira, é uma impossibilidade - e até é, muito provavelmente, indesejável. Hoje, Jorge Silva Paulo, Capitão de mar e guerra (na Reserva), escreve um artigo certeiro sobre isto mesmo:
«Alguns cidadãos questionam-se sobre o que é o Conceito Estratégico Nacional (CEN) e que problema virá resolver, uma vez que se diz não existir e fazer falta. Poucos, mesmo diferenciados, falam no CEN e fazem-no em termos eruditos.
O conceito não está definido e é vago. Parece referir-se a políticas externas duradouras, o que envolve competição e conflitos (daí a natureza estratégica). Não é claro o formalismo do CEN: será uma norma vinculativa do Estado, constitucional ou legal? Um documento de intenções políticas? Uma norma cultural? A dúvida não é diletante: da resposta depende o empenho que quem valoriza o seu tempo lhe dedica, desde logo os cidadãos e os seus representantes políticos, que têm de o apreciar e validar.
Mas a questão de fundo é esta: em Portugal, tem sentido existir um CEN hoje? Creio que não. Explico. A substância de um CEN, tal como parece ser defendida pelo professor Adriano Moreira e por personalidades próximas, são as políticas duradouras, que sobrevivem a mudanças de governo. Fala--se de um CEN, e da sua estabilidade, desvalorizando alguns factos: não sei se existiu um CEN, mas se houve foi imposto ao povo, sem este ser consultado; sempre houve significativa contestação (vejam-se o "Velho do Restelo" ou as divisões em 1383, 1580, 1640 e Liberalismo); e sendo a narrativa patriótica feita pelos vencedores ninguém sabe bem que apoio mereceu do povo.
Com o mundo atual em rápida mudança, surpreenderá um CEN, ou seus derivados, duradouros. Além disso, quem defende que nos faz falta não explica como ele se compatibiliza com a natureza dinâmica de uma democracia representativa, na qual o povo é soberano. Por fim, o atributo "nacional" faria supor que os seus defensores, na ausência de consenso, abandonassem a proposta ou a revissem para alargar o apoio. O ambiente de desconfiança de muitos cidadãos face ao poder suscita o cinismo quanto aos interesses que um CEN servirá: se é nacional por que razão não é mobilizador? Ou é implícito e afinal existe?
O discurso dos defensores do CEN parece menosprezar a soberania do povo, expressa na seleção e em mudanças políticas em eleições; retirar a opção de mudanças aos eleitos fragiliza a democracia e reduz a sua representatividade, quando há um coro a clamar por mais. Parece que a ideia de um "déspota iluminado e benigno", que impõe só boas políticas à nação, ainda seduz - mas isso é um mito; as políticas de D. João II, do Marquês de Pombal ou de Salazar trouxeram relevantes benefícios - mas com tão altos custos e violando o Estado de direito democrático que duvido que fossem aprovadas pelo povo, se este se pudesse pronunciar em sufrágio livre e universal. Em ditadura é fácil fazer obras: basta haver quem as conceba e quem as implemente, pela força, se necessário. Com liberdade e democracia, a força não é opção; há que obter apoios, e para isso é preciso negociar, o que acarreta cedências; a brancura das ideias que cada grupo de interesses oferece acaba acinzentada pela difusão e acomodação das ideias alheias na execução. A liberdade e a democracia podem produzir políticas e obras incoerentes e pouco ousadas, mas só aquelas podem conseguir coesão social, inclusão e a representação coletiva do povo, ainda que cada um sinta que os resultados ficam aquém dos respetivos desejos.
Isto é, um Conceito Estratégico Nacional e os seus derivados ou são ignorados, ou tornam-se normas rígidas e contestadas, que só se mantêm pela coação, ou são vagos e estão plasmados na Constituição e na identidade nacional, para poderem acomodar as várias visões sobre a matéria, e dispensam mais formalismos.»
Quanto mais estudo Hayek, mais coloco em causa certas ideias generalizadas. Há dias afirmei que não existe tal coisa como crise de valores. Hoje, contrariando o que diz o Prof. Adriano Moreira - e que tantas vezes secundei - coloco a hipótese de que nós não precisamos de um "Conceito Estratégico Nacional", nem é possível hoje em dia ter um. Pelo menos nos moldes dirigistas que ele tem em mente. Um dia desenvolvo isto. De volta ao trabalho que a tese não se escreve sozinha.
Eu que tenho a Política Externa como área de estudo de eleição, oiço tanta gente falar em interesse nacional para justificar a utilização da golden share pelo Governo, e não consigo deixar de me perguntar: se não há Conceito Estratégico Nacional, qual é mesmo o interesse nacional? É isto que ninguém explica. Faz-me lembrar aqueles conceitos opacos como bem comum ou neo-liberalismo...
Acabei por aceitar um simpático convite para acompanhar um grupo de Jovens Repórteres para o Ambiente até perto de Elvas, onde foram soltar um Bufo (ele há paradoxos...) que havia sido apanhado ferido e levado para um centro de recuperação. Depois de o apadrinharem, soltaram-no dando-lhe o nome de Maria Liberdade. Pelo caminho ainda parámos em Évora onde alguns se iam preparando para os festejos da efeméride relativa ao ano de 1974. Posto isto, algumas breves notas:
1 - A democracia portuguesa está refém de donos mais ou menos desconhecidos. Acordem meus compatriotas, acordem porque a Democracia e a Liberdade não estão assim tão garantidas quanto possa parecer aos mais incautos.
2 - Ninguém no seu perfeito juízo e verdadeiramente amante da liberdade quer voltar a um regime autoritário. Mesmo que na minha análise ao período do Estado Novo eu consiga ver coisas boas e más analisadas devidamente no seu contexto histórico e tendo em consideração variáveis externas, tal como todos os que me lêem sabem, nada é mais valioso para mim do que a liberdade de expressão e, por isso mesmo, obviamente que eu seria um opositor ao Estado Novo se tivesse vivido durante esse período. Posso nunca vir a enriquecer, posso nunca vir a conseguir fazer uma carreira fulgurante, posso nunca vir a satisfazer todos aqueles que gostam de ver os outros vergar à sua mesquinha táctica discursiva através da qual em nome da liberdade e tolerância praticam precisamente o contrário destas, posso nunca conseguir espicaçar os espíritos mais dormentes, posso nunca conseguir demonstrar todas as incoerências dos donos que ameaçam a democracia portuguesa, mas nunca, mesmo nunca, me tirarão a minha liberdade de pensamento e de expressão, nem que tenha que viver na miséria ou no exílio. E essa, creio eu, é uma das conquistas mais preciosas de Abril, senão mesmo a mais preciosa e pela qual temos de agradecer não só em tempos abrileiros mas 365 dias por ano.
3 - É, portanto, necessário sabermos lidar com o nosso passado de forma distanciada, para que possamos concentrar-nos em projectar o nosso futuro. Urge relembrar que os ideais de Abril sairam em parte defraudados e que muitos jovens interpretam esses ideais à luz do estado de coisas que está à vista de todos, tal como afirmou Nuno Melo ontem na RTP N. Liberdade, Justiça, Democracia e Desenvolvimento são para mim quatro conceitos que necessitamos de requalificar em Portugal, mas de forma o mais desideologizada possível, isto é, não em oposição a outros regimes, para que a Democracia se possa solidificar definitivamente. O passado é passado, é História, serve para estudarmos e vermos por onde não devemos ir. Temos que acabar com a escravidão que nos vem sendo imputada pelos democratas do pensamento único, das maiorias absolutas, dos jobs for the boys, da corrupção e da fuga à responsabilidade. Os ideais da Abril, creio, deveriam levar-nos no sentido da responsabilidade e responsabilização de cada indivíduo no papel que desempenha na sociedade e comunidade onde se insere. Porque a liberdade não é fazermos o que nos apetece relativizando tudo para que possamos defender e praticar tudo e o seu contrário (o duplopensar, sempre o duplopensar orwelliano...). A liberdade acarreta responsabilidade perante os outros, e isso tem faltado e cerceado essa mesma liberdade.
4 - E posto tudo isto, recordando o que o Professor Adriano Moreira tem vindo a afirmar, é URGENTÍSSIMO definir um novo Conceito Estratégico Nacional que dê sentido ao país, que dê rumo à nação, que traga Sentido de Estado ao aparelho estatal e governativo, que nos permita adaptar à realidade internacional em constante mudança, uma realidade em que Portugal tem fronteiras múltiplas - uma fronteira administrativa sem grandes efeitos práticos, uma fronteira europeia, uma fronteira de segurança assegurada pela NATO, uma fronteira cultural pela CPLP - e para a qual ainda não estamos devidamente capacitados.
Acabe-se com o bota-abaixismo e com a semântica falaciosa que nos escraviza e aproveite-se o que Abril nos deu para requalificar o país e colocá-lo em bom rumo. Será pedir muito?