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Nuno Garoupa, "Confrontação":
Nem já os americanos recordam o senador Bill Richardson, um conservador, hoje com 90 anos, que serviu no Senado da Califórnia vários mandatos entre 1966 e 1989 e nunca conseguindo ser eleito para o congresso federal. Fundou um grupo chamado Gun Owners of America (GOA) em 1975, rompendo com a National Rifle Association (NRA) por estar incomodado com os desvios de esquerdismo. E, em 1998, escreveu um livro algo desconhecido, Confrontational Politics, reeditado em 2010. Esta "obra literária" de 135 páginas seria irrelevante não fosse o "livrinho vermelho" de Steve Bannon e Jeff Sessions, os dois ideólogos da administração Trump.
Confrontational Politics abre com um diagnóstico do mundo em que vivemos - uma batalha fundamental entre os valores tradicionais (defendidos pelos conservadores) e os dogmas humanistas contemporâneos (impostos pelos progressistas). Acontece que os conservadores entram na discussão política com cortesia, civilidade, educação, ponderação e respeito pelas regras do debate. Pela sua forma de pensar e por respeito a uma tradição de elevação no espaço público, evitam o confronto direto e a retórica agressiva. Frente a um progressismo que não comunga de tais pruridos, o conservador acaba em posição defensiva. O progressista, adepto das técnicas marxistas e leninistas, inspirado na máxima "os fins justificam os meios", provoca o confronto, usa retórica abusiva e agressiva para condicionar o conservador. Tudo isto resulta numa crescente influência da agenda progressista em detrimento do pensamento conservador. A fleuma, o respeito, a preferência por um debate equilibrado e institucional são desvantagens competitivas do conservador. Consequentemente, o conservador tem de abandonar esta forma de intervenção. Tem de passar ao confronto aberto. E esse confronto tem de ser agressivo e sem compromissos ou equilíbrios. Não há acordos possíveis com o progressismo enquanto a agenda conservadora não vingar. Política já não é procurar consensos ou mínimos denominadores comuns, mas guerra aberta - embora sem prisioneiros -, gritar mais alto, até o progressismo ser varrido dos tribunais, dos meios de comunicação, do espaço público. Mas, se os progressistas são o adversário a combater, o inimigo a obliterar são os conservadores consensuais. Porque são a quinta coluna, são quem mina o pensamento conservador e colabora com o adversário, permitindo a expansão do progressismo.
Costa está todo lançado. Está inspirado. Trump deu-lhe a volta à cabeça. A Europa está a ressacar de 50 anos de promessas furadas de estado social, liberdades e garantias, de pão e paz para todos, casa, carro e férias sem restrições, e agora, que a coisa deu para o torto, os conservadores fazem a festa. Ainda não perceberam que a cenoura à frente do burro já foi charro que deu urros? É o passe infantil da Carris para o menino e para a menina, é o falseamento das prestações devidas ao FMI, e de lenga-lenga a peta maior ou menor, a Esquerda continua a basear o seu guião no mesmíssimo filme que nos conduziu a este estado de arte. A promessa ou ameaça de António Costa permanecer para uma década de governação enferma de diversos vícios democráticos. Assume a imaculada estância de verdade das suas propostas e concentra na sua figura o sucesso de um país inteiro. Apenas um crápula arrogante pode declarar deste modo despudorado ao que vem - poder fascina-o, o país logo se vê. A época do politicamente correcto acabou em definitivo. A sua confissão de peito aberto lembra regimes autoritários, ditadores que à época não dispunham do beneplácito dos media para ombrear intenções - eram a voz. Portugal prima pela excepcionalidade. Mas não será desta natureza. A Europa está a dar uma guinada forte e António Costa quer ser o cubano do continente. O último a descolonizar-se das balelas que já nos foram cantadas vezes sem conta.
Os democratas franceses nada aprenderam com os mais recentes eventos que abanaram o sistema político norte-americano. A lição de Hillary não foi assimilada. São tantos os participantes a concurso nesse campo ideológico que Marine Le Pen deve estar a esfregar as mãos de contente. Sarkozy jafoste. E agora Fillon mignon apresenta-se com grandes desígnios que se inscrevem nessa velha escola de funcionalismo público, impostos mais ou menos baixos, e depois, como se ninguém reparasse, lá mete um referendo sobre a quota de imigrantes como se a virtude democrática das massas pudesse ser exultada de um modo honesto. Ou seja, defende o que Trump defende, mas não assina o despacho. Remete para o povo essa decisão nefasta. Sacode preventivamente a água do capote do nacionalismo residente na marselhesa. Em plena época de falências do politicamente correcto o filão de Fillon não pega. Nas cidades e nas serras, e nos banlieu, o código de sobrevivência é outro. Os franceses de pleno direito, que em tempos não o eram, são os primeiros a pôr trancas à porta, a barrar a porta a "ladrões" de empregos. E há mais. A alegada moderação de Trump apenas ajuda a consolidar a ideia de que afinal o conservadorismo não se faz equivaler a extremismos proto-fascistas. Vivemos uma época de grandes rupturas. O descarrilamento das instituições clássicas, mas também da linguagem que tarda em se refrescar para acompanhar o novo glossário de intenções políticas.
Cá estou eu a pensar para os meus bretões: que formato teria a versão portuguesa de Make America Great Again? Se os espanhóis fossem os mexicanos e tivesse havido um ataque terrorista de vulto no coração de uma grande metrópole portuguesa, que música política estaria a tocar? Sem rodeios ou sem nuances de brandos costumes da treta, este debate urge; este é o momento para estimar, para prever. Para já Portugal vive na singularidade benigna da sua escala, mas um varrimento pan-europeu de correntes conservadoras obriga os estrategas a pensar qual a configuração que o país assumiria numa intensa escalada ideológica no velho continente. Sem papas na língua, direi o seguinte (inconveniente, dirão alguns): se pisarem nos calos da comadre a padeira de Aljubarrota faz-se a Olivença num piscar de olhos. As fortificações muradas, actualmente arqueológicas, são a prova de que a matriz mural existiu. Aliás, a Europa bate os Estados Unidos 10-0 na edificação de vedações e cercas. Como me disse um velho amigo com quem me cruzei ontem no Chiado. Epá, esta malta é trumpista, mas não o admite: em vez de 73 sírios em Mangualde (?), imagina uma torrente deles a partir a loiça? Achas que os portugueses ficavam quietinhos? Pois - disse eu. Apenas sei o seguinte, que nesta fase do campeonato foi a passividade democrática americana que deixou a clivagem acentuar-se. Foram anos de paz e sopa que ignoraram as profundas fracturas económicas e sociais, e agora é tarde demais. Existe uma revolução em curso e um macróbio do governo de salvação nacional fala no aumento extraordinário de 5 ou 6 euros das pensões. Ainda não perceberam o que está a acontecer. E ainda por cima não acreditam na bruxa. Estamos feitos.
Ao redigir o enquadramento teórico da minha tese de doutoramento, em particular a secção sobre o liberalismo, corrente filosófica que constitui, segundo John Gray, uma única tradição com diversos ramos que resultam de variações e redefinições das relações entre as suas principais características (a saber, o individualismo, o igualitarismo, o universalismo e o melhorismo), e tendo ainda em consideração, de acordo com o mesmo autor, que se trata de uma tradição que possui diferentes fontes históricas, sendo tributária, por exemplo, do estoicismo e do cristianismo, procurando validação ou justificação em filosofias muito diferentes, como as teorias jusnaturalistas ou utilitaristas e revestindo-se de diferentes características consoante as diversas culturas nacionais em que pode ser encontrado, não deixo de sorrir ao recordar aqueles que tantas vezes escrevem que “para o liberalismo é X” ou “para o liberalismo é Y”, quando na verdade falam apenas e só de uma determinada variante do liberalismo, pretendendo confundir o público em geral ao fazer passar por liberalismo clássico aquilo que muitas vezes não só não é defendido pelo liberalismo clássico, como é negado ou refutado por este. Não admira que por aí se leiam ou oiçam disparates como o de que Hayek defende a dissolução do Estado. Se a política deve a sua má reputação aos homens, o liberalismo clássico talvez deva a sua aos libertários contemporâneos. O problema, para muitos destes, talvez esteja, na verdade, no facto de um liberal clássico ser, contemporaneamente, como Eric Voegelin evidencia, um conservador. As coisas são o que são, como diria alguém.
É bom que os portugueses se começem a habituar. Acho muito bem que apareçam políticos "excêntricos" para abalar as mentes conservadoras dos partidos e daqueles que julgam que detêm o exclusivo das prerrogativas democráticas. Não julguem por um instante que Marinho Pinto preenche as minhas medidas, mas defendo o princípio de que, todo e qualquer cidadão, "desreferenciado e sem cartão de sócio", se possa fazer ao piso da política. A falsa alternativa de mudança será voltar a apostar nos mesmos cavalos de corrida, gastos e cheios de vícios.
Como tantas outras instituições deste país desgovernado, a Cinemateca também faz parte da idiossincrasia nacional de falências e reis na barriga. A instituição que se encontra com a corda no pescoço tem a obrigação de analisar os fundamentos da sua demise. Muitas das razões que explicam a aflição destes poisos de intelectualidade são endémicas, fazem parte da casa, dos seus modos e do costume enraízado na cultura portuguesa que determina que estas instituições devem ser dirigidas por pensadores e letrados que não percebem patavina de gestão das artes, e que por essa razão se fecham em copas. Vem a propósito este post porque em 2007 estabeleci uma ligação fugaz e infrutífera com a Cinemateca e pude confirmar a sua fraca receptividade a parcerias e novas abordagens. Na qualidade de membro da direcção da Sociedade Hípica Portuguesa, entrei em contacto com Bénard da Costa no sentido de se organizar um ciclo (ia dizer festival, mas eles não gostam do termo, faz lembrar feira) dedicado ao tema "o cavalo e o cinema". Na minha proposta enviada por e-mail concedia toda a superioridade à pessoa de João Bénard da Costa. Seria a Cinemateca a única instituição capaz de definir um conceito profundo alusivo a essa relação especial entre o cinema e o equino. Aliás, o cinema - a captação do movimento -, quase que nasce com o cavalo. Desde a infância do cinema o cavalo tem sido uma constante na malha de narrativas, dramas e comédias. Francis Ford Coppola produziu esse filme estético que serve de referência ao simbolismo clássico vertido para os tempos modernos, para uma nova linguagem - "o Cavalo Negro". Enfim, poderia discorrer sobre outros diaporamos que envolvem Bucéfalo, Alexandre o Grande, My Friend Flicka ou o lendário Secretariat, mas penso que já perceberam a riqueza da minha proposta temática. Refiro-me também a épicos literários que antecedem em muitos casos o próprio advento do cinema, e, nessa medida, o projecto seria uma síntese de distintas disciplinas. O ciclo de cinema que propunha aconteceria nos campos do Jockey Clube, no Campo Grande, ao ar livre com o amparo de um anfiteatro, uma bela bancada a lembrar a Belle Époque. Os filmes seriam sempre antecedidos por uma curta exposição sobre as implicações estéticas ou culturais do visionamento, e seguidos por um período de debate aberto ao público. O casamento entre as duas modalidades não poderia ser mais perfeito. A Sociedade Hípica Portuguesa também tem a sua história de glória e lendas (medalhas olímpicas entre outras) e conta com mais de 100 anos de existência, e foi sempre receptiva a tantas iniciativas excêntricas. No entanto, e apesar do meu entusiasmo, a resposta não tardou em chegar. Bénard da Costa foi categórico:"não cedemos material a terceiros". Para meu espanto, sempre o havia tido como um homem de cultura, capaz de se aventurar em novos ângulos de apreciação de um mesmo espólio de natureza eminentemente dinâmica. Mas não foi esse o caso. A resposta foi intencionalmente concebida para afastar, de uma vez e por todas, quaisquer incursões que pudessem colidir com a missão conservadora da Cinemateca, ou melhor, a sua mentalidade conservadora. Este episódio, sem grande utilidade, serve apenas para demonstrar que uma nova atitude (cultura) deve ser desenvolvida para tirar as elites do atavismo que as define, da sobranceria que não serve o interesse cultural nacional. Tenho imensa pena que não se tenha feito lumiere na cabeça do então director da casa magnânima do cinema. Perdemos todos; os leigos, o cinema e os cavalos.
Se falarmos no plano das ideias, num plano meramente abstracto, o meu conservadorismo impede-me de aceitar o que hoje foi aprovado no Parlamento, pelo que me parece salutar indicar um importante artigo de Abel Matos Santos onde é possível encontrar vários argumentos precisamente neste sentido - e que me fazem até suspeitar que a co-adopção por homossexuais será, talvez daqui a umas décadas, anulada. Por outro lado, o meu realismo leva-me a compreender a opção de Michael Seufert: o que é facto é que já existem crianças adoptadas por um único cônjuge homossexual e que vivem com outra pessoa homossexual, "o que levanta problemas reais no caso da morte desse cônjuge."
Porque na prática a teoria é outra, o que é nem sempre é conforme ao que deve ser, mas entre as posições tomadas nas redes sociais por várias pessoas, com conservadores a lamentarem o sucedido - e bem, particularmente no plano valorativo - e progressistas armados em iluminados muy evoluídos, como se soubessem alguma coisa sobre o conceito de evolução - ou perceberiam como este se confunde em larga medida com o de tradição e não se compadece com putativas revoluções de jaez racionalista -, prefiro o centro excêntrico patente no parágrafo anterior, ainda que obviamente penda para a posição conservadora e considere a progressista de uma infantilidade e ignorância patéticas que só podiam ter sido concebidas numa sociedade pós-moderna refém do politicamente correcto e do relativismo.
Talvez valha a pena lembrar que o estado de coisas a que chegámos resulta da combinação da emergência do conceito de justiça social com o positivismo legalista que, como Hayek e Oakeshott assinalaram, produziu a política da barganha baseada nas reivindicações em relação a direitos. Segundo John Gray, a acepção oakeshottiana da "política como uma conversação, em que a colisão de opiniões é moderada e acomodada, em que o que é procurado não é a verdade mas a paz, foi quase totalmente perdida, e suplantada por um paradigma legalista em que todas as reivindicações políticas e conflitos são modeladas no jargão dos direitos. Neste contexto, não só o discurso político civilizado se encontra virtualmente extinto, como as instituições legais para o qual é transplantado estão corrompidas. Os tribunais tornam-se arenas para reivindicações políticas e interesses, cada uma das quais desordenada e resistente ao compromisso, e a vida política noutros locais torna-se pouco mais que barganha e troca de favores."1 Nas democracias modernas, o estado de direito, ou seja, a lei enquanto princípio geral e abstracto, deixou de ser um limite à acção governativa, que passou a ser explorada pelos grupos de interesses, que assim puderam prosseguir os seus objectivos particulares à custa de terceiros, muitas vezes prejudicando a sociedade como um todo, mesmo que os indivíduos não o percebam ou até apoiem estes grupos de interesses, simplesmente porque estes recorrem à camuflagem dos seus intentos sob a capa da justiça social. Desta forma, a modernidade gerou um enquadramento que é altamente destrutivo das tradições intelectuais e morais europeias, que através do racionalismo construtivista e do relativismo produz morais inviáveis, ou seja, sistemas de pensamento moral incapazes de sustentar qualquer ordem social estável, que através de teorizações sociológicas contemporâneas e da corrupção da arquitectura e das artes (como Roger Scruton e Gray demonstram) criam um clima cultural que é profundamente hostil à tradição e também à sua própria existência. Confrontamo-nos, assim, com uma cultura que tem ódio à sua própria identidade, tornando-se, em larga medida, efémera e provisória.2
O mesmo é dizer que é mais do que preocupante assistir à tomada de decisões que parecem acelerar a dissolução das nações europeias, não só culturalmente mas também biologicamente. Como costumam dizer os conservadores, as coisas são o que são.
1 - John Gray, "Oakeshott as Liberal", in John Gray, Gray’s Anatomy, Londres, Penguin Books, 2009, p. 80.
2 - John Gray, "Hayek as a Conservative", in John Gray, Gray’s Anatomy, op. cit., p. 131.