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Aproveito a deixa de Fernando Melro dos Santos para confirmar que os portugueses nunca estiveram tão preocupados com os eventos que assolam a Europa contemporânea. É surpreendente que ainda arranjem tempo para marchas populares, romarias a Évora, privatizações, calvários da bola e atribulações decorrentes de aparições de Jesus em clubes alheios. A Grécia já rachou e em breve sentiremos o impacto dessa falha na União Europeia e de um modo que transcende a normalidade, anormalidade. O que vale é que o crédito ao consumo em Portugal já está ganhar proporções épicas. Isso há-de salvar o país de catástrofe certa. Podemos também dormir aliviados sabendo que a eurodeputada Elisa Ferreira sabe interpelar o presidente do Banco Central Europeu para lhe colocar uma pergunta lúdica, infantil: "Senhor Mário Draghi, pode garantir que não haverá contágio se a Grécia abandonar o Euro?". Isto foi há coisa de três horas. Estamos defendidos, como podem ver.
Acho péssimo o jogo das comparações. Portugal não é a Grécia. Portugal não é a Irlanda. Portugal não é isto. Portugal não é aquilo. Nem os silogismos servem a causa (argumento formado de três proposições; a maior, a menor (premissas) e a conclusão deduzida da maior, por intermédio da menor). Portugal é igual a si e já basta. Este género de notícia eterniza a ideia de que Portugal deve usar a régua dos outros para medir a sua envergadura, a sua virilidade. E depois subsiste uma outra dimensão corrosiva. Assim que se transmite a ideia de que Portugal passou a ser um país de aforristas, os cidadãos, embalados pelo prémio de desempenho, começam a dar largas à imaginação. Já podemos observar as campanhas hedonistas apresentadas nos escaparates mediáticos. Ele é férias na praia dominicana. Ele é festa temática no verão que se aproxima. Ele é campeonato do mundo de futebol. E, assim, sem se dar conta, a boa notícia da poupança morde a própria cauda, come-se. É uma armadilha.
É um lugar comum afirmar que é bom ver tanta gente na rua. Que ruas apinhadas é sinónimo de felicidade e de esperança. Quem ontem deambulasse pela Baixa lisboeta veria com os seus próprios olhos o caudal de pessoas que inundava os passeios. Foram ver as montras e as decorações de Natal para afogar as mágoas. Foram ver com os próprios olhos o enfeite luminoso para não perder pitada do entusiasmo natalício. Os políticos e os defensores dos direitos afectivos do homem dirão que faz bem à sociedade e ao país encontrar os concidadãos na rua, mas eu tenho uma visão mais cínica, pessimista. Os transeuntes da quadra natalícia transbordam os passeios, mas não passam de window shoppers. Sonham com o dia em que poderão entrar nas lojas e levar sem pestanejar a máquina fotográfica para captar com precisão os melhores momentos - a ascensão e a queda da sua condição dependente do estatuto social, o seu semblante espiritualmente descaído e culturalmente deplorável. As pessoas nada melhor têm para fazer do que desejar a materialidade que parece ter escapado por entre os dedos, por entre a censura da austeridade e os devaneios do neo-liberalismo. E não é apenas na grande superficie ou na loja de bairro onde esta lógica impera. Nos outros locais de culto, do LX Factory ao Mercado de Campo de Ourique, a humanidade também se faz ver nessa triste constrição da sociedade de consumo. Uns dirão que a malha forjada em forma de cachecol é artesanal e por isso produto de uma Esquerda esclarecida pela lã. Outros afirmarão que o televisor LED, embora construído por trabalhadores oprimidos na República Popular da China, estará a contribuir para o crescimento económico e social daquele país, a fazer crescer a média classe a um ritmo nunca antes visto. Ou seja, o Natal serve para todos os embrulhos ideológicos e conceptuais. Permite a oferta de todo o género de justificações e não parece ser arma de arremesso do espectro político na sua integridade total. Neste caso, bizarro e paradoxal, a concordância é plena. O redentor para todos os males chama-se Jesus - mas não passa de um menino.