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O que faz mal à saúde é o absurdo em que se tornou Portugal. Numa das faces da excentricidade temos o desfalecimento dos estaleiros de Viana e, como mero apontamento de surrealidade, na outra bochecha levamos a estalada do insólito caso do ladrão de pizzas. O contraste entre uma coisa e outra demonstra a loucura que tomou conta da realidade. Quando se misturam ingredientes deste calibre no juízo do cidadão, este não pode bater bem da bola. Portugal está à mercê de uma tômbola de consequências nefastas. Não sabemos o que nos vai sair na rifa amanhã. Este estado de insegurança produz vários efeitos em simultâneo - provoca paralisia dos membros da sociedade e raiva. Quando estes dois se encontram está tudo perdido. A racionalidade deixa de ser guia, e os impulsos tomam conta do espírito.
A Helena Matos fez bem em repescar esta barbaridade. Por este andar, o Ocidente entrará inevitavelmente num ocaso deprimente. A crise não é apenas económica, é, também, e em grande medida, uma crise cultural.
Começo seriamente a pensar que Portugal deseja sofrer. Quase não tenho dúvidas que Portugal tem o que merece. No rescaldo de um programa de televisão que ontem não vi, e das palavras discorridas por um senhor que não escutei, mas baseando-me na vox populi das redes sociais, posso concluir que este país está condenado. Está arrumado por não ter meios intelectuais para realizar a destrinça entre a arte de ludubriar e o valor substantivo das acções e palavras. O país parece cair que nem um patinho na sedução gasta de um vendedor de banha da cobra. Uma pessoa desprovido de nojo, das sensações que equipam os homens sensatos, uma condição simultaneamente profunda e cutânea a que chamamos consciência e que torna, os convictos caídos em si, caídos em desgraça - humildes e arrependidos. Chamemos-lhe "ser cristão", se quiserem. Nem a matriz católica do país parece servir para actos de constrição. Em vez disso temos erva daninha que cresce em redor do templo, da reserva. Apenas os indivíduos dotados de um super-ego podem atropelar sem hesitações os direitos dos outros, e julgarem-se os primeiros mesmo que já estejam derrotados. Parece que Portugal sofre de uma doença regressiva, uma especie de Alzheimer político e selectivo que oblitera o percurso negativo de um homem e que elogia a capacidade para arranhar quem quer que se lhe atravesse pelo caminho. O regresso às cavernas parece um dado adquirido - quando a população aplaude o espernear de um bicho ferido. O desempenho instantâneo e brutal tomou conta do país político. Os ganchos e os socos dados por cima e por baixo. Assistimos à potência hiper-ventilada de faladores desprovidos de ética, que demonstram os seus talentos em duelos absurdos, em concursos para ver quem consegue botar-abaixo mais vómitos, e ainda maiores indisposições. Os assistentes são como claques de mentecaptos que anulam a grande obra humana. O país requer urgentemente um movimento sem face, sem aparência, sem hábitos ou vestimentas. Os intelectuais que invocam a liberdade de expressão e a Democracia, podem também invocar outras emendas que não a quinta, para salvar o país. A esquerda caviar ou a direita esclarecida, culpadas por esta transmissão televisiva e igual número de eleições, pode sair do seu falso exílio, o paradigma de cocktails e cultura onde discutem justiça social en passant, em redor de uma mesa de politicamente correctos. E essa corja que diz que nada tem a ver com o estado em que se encontra o país, também tem um pouco do DNA do mesmo embuste. O desejo de uma vida glamour, de privilégio, de sobranceria intelectual, de Paris. O que se nos apresenta é um caso de psicose colectiva, um comportamento desviante praticado por uma larga maioria televisiva pouco interessada em política, mas muito dada a novelas. Estou raivoso, sim senhor.
Como é o provérbio? De Espanha nem bons ventos nem bons casamentos? E a corrupção? Se Portugal vive na sombra da economia de Espanha, então poderemos assumir que a prática de ilícitos que cobrem as manchetes dos jornais desse país, também se aplica a Portugal. Ao longo dos anos assistimos a um conjunto de operações de fachada levada a cabo por parlamentares para dar ares de um efectivo empenhamento na luta contra a corrupção. Mas parece que não passa de um artifício para ganhar tempo, para afastar aqueles que procuram agitar as águas. Se nada é mexido de um modo consequente, se nenhum político transforma esta missão na causa da sua vida, é porque há apenas uma explicação. Estão todos metidos ao barulho. E há diversos modos de praticar a modalidade. Como agente activo, como mediador, como receptador ou como arquivista que faz desaparecer as pastas. Não nos restringemos à disciplina clássica de dinheiro passado debaixo da mesa, ao pagamento a pronto a políticos. Há uma outra forma de influência e dissuasão que roça a prostituição. Refiro-me à corrupção imaterial que contagia as artes e letras, a academia e a cultura. A troca de favores entre membros de um clube de vantagens. Compensações desfasadas no tempo, que sugam o prestígio efectivo, o valor de anónimos verticais, gente desconhecida que acredita no seu esforço. Produzo estas afirmações porque não tenho telhados de vidro e já fui preterido por não reunir as condições requeridas. Prefiro o caminho do mérito ou demérito e nunca ficar a dever nada. Durmo descansado com as oportunidades geradas que se alicerçam no princípio de integridade. Não me espanta que o talento Português, desprovido de pergaminhos familiares e tios em lugares de influência, faça as malas e rume a outros destinos. Um país que normaliza a concessão de privilégios a amigos e maus pagadores, é um país que torna o futuro num inimigo, em falência certa. Um país que mata a ideia de entrevista ou torna os castings num erro permanente compromete-se por várias gerações. Mas regressemos à corrupção e ao trabalho inacabado. Em que estado se encontram todos os processos de corrupção que supostamente a Justiça Portuguesa deveria sentenciar e arrumar de uma vez por todas? Será que este país não passa de uma fase instrutória? Será que a suspeição leva a melhor sobre a condenação? Estou zangado, sim senhor. Porque observo o flagelo de uma outra espécie de corrupção. Uma corrupção que vibra na sociedade civil, mas que é designada de um modo diminutivo para parecer menos danosa - jeitinho, ajudinha, favorzinho, mãozinha, paciênciazinha -, quando na realidade é fatal para um país corroído pela cunha que fecha as portas àqueles de direito, os bons e honrados, os trabalhadores vindos da penúria ao encontro da recompensa merecida. E as desculpas que apresentam são muito fracas. O self-made man foi trucidado pela bactéria que procura atalhos para dissimular a mediocridade. Porque é disso que se trata. O reles que destrona o cidadão recto e que procura passar despercebido anos a fio, a vida toda se tiver sorte. Penso que chegou o momento para virar a casa ao avesso. O silêncio de muitos diz tanto...
Estamos sob a égide de algo ruim. Um cocktail de conseqências nefastas, de efeitos secundários que destroem a alma, uma overdose de disparates sem antídotos. Uma sopa de dislates que intoxica, que gera náuseas. A voz concedida à farsa que nunca foi falsa - uma mala de verniz e um cão de uma fila defendido pela cólera, a coleira que nos esgana. Serão estes os efeitos secundários da sombra? A futilidade levada ao extremo de um desejo suicidário canino? O dente plantado debaixo da almofada que embala os pesadelos? Uma pobre coitada equivocada pela marca global e que deseja sorte, imensa sorte. A refutação in loco da própria demência? A defesa do último bastião da inocência? Chegamos em cima da hora, montados num burro, perto do fim que anda às voltas da nora sem acalentar esperança. Os sintomas já ocuparam as cadeiras de um auditório repleto de assentos e prejuízos. São notas avulso com escritos e números, para que alguém telefone para a emergência, para nos levarem daqui para fora. Para nos levarem estendidos pela catadupa de mocadas. Uma benção lixada que nos engasga. E a imunidade levou para longe a madrinha, a fada do lar que vasculhou anos a fio no lixo. Ruminamos, mas já não sabemos vomitar.
Na sua derradeira crónica de 2011, Miguel Sousa Tavares aponta a falta de um "grande homem", de um ..."grande Presidente da República" capaz de unir o país nesta hora de desespero. Não pensando no actual residente de Belém, todos sabemos a quem se quis referir, talvez precisamente àquele que de cedência em cedência e incúria em incúria, muito contribuiu para inaugurar pomposamente, o ruinoso ciclo da política marginal que apenas respeita à conhecida camada dirigente, sobrepondo-se ao interesse geral. Por interesse geral considera-se primeiramente, a obra que nas escolas defenderia o desde há duas gerações totalmente ausente legado histórico que faz de nós portugueses e no campo das actividades humanas - a exclusiva preocupação dos controladores de águas residuais -, grita-se agora por uma acção que defenderia os campos, as actividades da orla marítima, a das fábricas hoje fechadas e que durante duzentos anos produziram vidros de excelência ou pela azáfama da rede dos estaleiros que há muito lançavam navios ao mar. Tarde demais, pois tudo se desperdiçou na cata pela obtenção de "estatuto" há décadas sonhado pelos oligarcas e que estes decidiram chamar de "Europa". Uma Europa que para eles se limitava às intermináveis vénias em conferências, dinheiros vertidos nas respectivas contas bancárias, comezainas, viagens em jets privativos, trocas de barretes honoris causa e pouco mais.
Miguel Sousa Tavares poderá ter ficado momentaneamente envergonhado por aquilo a que além raia se assiste. Em Espanha, igualmente desesperada por uma crise que inevitavelmente se fará sentir e poderá ainda mais ser agravada pelo pulsar dos egoísmos regionalistas à mercê de aventureiros, agiganta-se uma figura que em si encarna o devir de dezenas de milhões. Trata-se de muito mais do que um homem, neste caso um conhecido mortal pouco dado a intelectualismos e que nem de longe cultiva os interesses de preservação identitária de um povo - isso nem sequer pode ele fazer no seu Reino - como em Portugal o Duque de Bragança há muito nos habituou. Mais que para esse homem, é para a Coroa - a entidade de vagos contornos, mas que no momento essencial a todos sintetiza numa vontade - para quem ansiosamente olham os deputados reponsáveis para o bem e para o mal, por tudo aquilo em que a Espanha se tornou. Enquanto nas Cortes muitos se sentam na "certeza de um republicanismo" com a irritante tendência para no momento exacto se evaporar numa estrondosa aclamação daquele que os pode livrar da ira dos "indignados" eleitores, em S. Bento impera o silêncio próprio dos sepulcros.
Cavaco Silva proferiu o discurso que se esperava e que encerra todos os temores dum sistema procurando tornear o óbvio, ou seja, a sua mais que perfeita caducidade sem remédio. Um bom discurso, há que dizê-lo, mas sem aquele pormenor essencial capaz de o tornar num momento de união neste tempo de todos os perigos. Falta a este sucedâneo de Regente, a legitimidade da independência e sem dúvida, a pertença ao elo essencial daquela corrente que em cada anel desfia as décadas que se multiplicaram em séculos. Por isso mesmo não invoca um nome, uma data, um exemplo do levantar nacional noutros sombrios tempos que ameaçaram a nossa independência. Simplesmente jamais o poderá fazer, sob pena de totalmente renegar aquela instituição por ele próprio encarnada. Contudo, se tivesse ousado, todos o teriam entendido.
A oligarquia da República encontra-se aterrada pela perspectiva das consequências que a sua obra poderá implicar. Como pode o Presidente do regime exigir - como, a quem, com que meios? - o crescimento económico, quando ele próprio foi um impiedoso agente da demolição de sectores sempre vitais para a sobrevivência de qualquer comunidade organizada em Estado? Como pode exigir a coesão, num momento em que ele próprio surge como uma parte interessada no bastante desacreditado jogo político? Tudo falhou, precisamente se começarmos pela miríade de institutos de fachada aparentemente generosa e em sintonia com um certo tempo, mas que mais não significaram senão um programa ideológico que confirma a usura dos bens comuns, em prol de uma ínfima minoria de guindados aos pequenos, médios e grandes poderes bem instalados a torto e a direito. Apela às "instituições civis (?) e religiosas" pelo pronto socorro, nelas reconhecendo uma superioridade que no Estado e nos seus agentes não pode encontrar.
Este bom discurso que não terá consequências ou impacto de maior, apenas confirma aquilo que todos suspeitam e abertamente já referem sem qualquer perigo de severa punição: eles sentem-se perdidos e têm razão para tal incómodo. Não perceberam que há que ousar, ir cada vez mais longe, cortar ou pelo menos afrouxar as amarras que se a alguns serviram de corda alçante, à maioria transformou em prisioneira na sua própria terra. O Presidente do regime continua a insistir na esfumada miragem da Europa, quando há poucos dias verificámos sem qualquer surpresa, na existência de muito mundo a redescobrir para além do da Ponta de Sagres ou do rio Niémen.
De facto, a Europa é demasiadamente pequena, eles já não existem e há que disso mesmo avisá-los.
Uma ideia a desenvolver, que me tem vindo a ocorrer ultimamente: Não existe tal coisa como crise de valores. Só indivíduos que recorrem a teorias morais racionalistas-construtivistas, que não compreendem a evolução natural das ordens espontâneas e que crêem que tudo tem que ter justificação racional podem achar que existe uma crise de valores. Não por acaso, ninguém diz quais valores. Logo aí começaria a discórdia.
Moderador/entrevistador (M/E): Qual é que acha que é o principal problema dos nossos tempos?
Paineleiro/comentadeiro (P/C): A crise de valores.
(M/E): Que valores?
(P/C): Os valores de uma sociedade justa, igualitária e fraterna.
(M/E): E o que provocou essa crise?
(P/C): O neo-liberalismo e o capitalismo selvagem.
(M/E): Mas como é que resolvemos essa crise?
(P/C): Através de uma mudança de mentalidades.
(M/E): Mas precisamos de mudar para o quê?
(P/C): Para um novo paradigma económico, político e social.
(M/E): E como é que vamos conseguir chegar a esse novo paradigma?
(P/C): Através de uma mudança de mentalidades.
(M/E): Mas mudar em relação ao quê?
(P/C): Ao neo-liberalismo e ao capitalismo selvagem.
(M/E): E mudar em direcção ao quê?
(P/C): A uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna.
(M/E): Mas porque é que precisamos de mudar?
(P/C): Porque há uma crise de valores.
E aí por diante, é fazer as combinações que se quiser. Panem et circenses para pseudo-intelectuais, tautologia style.