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(Artigo publicado no n.º 5 do Lado Direito, jornal da Juventude Popular de Lisboa)
Solicitou-me a editora do nosso Lado Direito que redigisse um artigo em jeito de balanço do ano que se findou. Confesso que depois de ter lido, visto e ouvido tantos balanços a relembrar o ano de 2011 fiquei enfastiado. Por isto, e desde já rogo que me desculpes, Joana, em vez de procurar repetir aqui o que já todos sabem, optei por discorrer sobre aquilo que está na mente de todos desde há algum tempo a esta parte e que é definitivamente a palavra que marca o ano transacto: a crise.
Ora e porque em português nenhuma tradução do título supra me soava minimamente atraente e pomposa, apresento desde já as minhas desculpas aos caríssimos leitores por me atrever a dar um título em “estrangeiro”. Noutra língua poderia também ser Schaum der Tage, ou seja, espuma dos dias. Porque na verdade, a crise é, entre as suas várias dimensões, também e sobretudo um estado de espírito, que neste contexto da modernidade líquida (termo cunhado por Zygmunt Bauman), em que tudo é efémero e provisório, assume contornos que de uma forma generalizada roçam o cataclismo apocalíptico, coisa que tende a atrair facilmente a mente humana. Na espuma dos dias, praticamente não houve dia algum durante o ano de 2011 em que não surgissem notícias em Portugal, na Europa, nos Estados Unidos da América, a sugerir o iminente colapso da civilização ocidental. Civilização esta que ao conjunto do seu património histórico, cultural e espiritual alia ainda os mais altos níveis materiais de bem-estar e desenvolvimento humano de todo o mundo. Parecemos ter uma atracção inegável pelo apocalipse.
Acontece que apocalipse significa revelação, ou seja, não é algo necessariamente negativo, ao contrário do que o emprego habitual da palavra deixa adivinhar. Significa que, após uma revelação, após uma determinada alteração, como cantam os comunistas, “o sol brilhará para todos nós”. E não só isto se passa com a palavra apocalipse como também com aquela que está profundamente sedimentada nas mentes de milhões de pessoas e que tem conexões óbvias com o significado da primeira. Etimologicamente, crise provém do grego krísis e do latim crĭsis e significa momento de decisão, de transição. E na realidade, é essencialmente disto que se trata quando se fala em crise, especialmente quando é qualificada de sistémica. De forma simplista, uma crise tem três fases: pré-crise, escalada e resolução. E esta resolução, em sistemas complexos, faz-se por uma de duas vias ou capacidades, a homeoestase ou a homeorese. No caso da primeira, o sistema preserva-se, integrando as problemáticas com que se depara através de processos de aprendizagem simples, nunca realmente se alterando de sistema. No segundo caso, normalmente derivado da ineficácia da capacidade homeostática em responder a um problema, ocorre um processo de superação do paradigma sistémico vigente por via de um processo de aprendizagem complexa, mudando-se verdadeiramente de sistema. Neste sentido, parece-me que estamos actualmente a assistir a uma gigantesca e, de certa forma, dolorosa, reestruturação do sistema financeiro e económico internacional, com reflexos geopolíticos que se vão definindo de forma ténue.
Não é segredo para ninguém, em particular para os que têm lido os meus artigos publicados nesta coluna, que considero a mentalidade racionalista construtivista e planeamentista e o crony capitalism (promiscuidade entre actores políticos e agentes económicos) como factores largamente responsáveis pela crise que vamos vivendo. Mas apesar de tudo, e porque um conservador é um optimista moderado (como afirma Roger Scruton), se colocarmos a nossa visão do mundo em perspectiva e relativizarmos um pouco os tempos em que vivemos, não há que entrar em desespero, ainda que perante a catadupa de notícias e acontecimentos que enformam o estado de espírito generalizado vigente. Se nos desprendermos da nossa tradicional visão eurocêntrica, percepcionaremos claramente que vivemos num mundo melhor que o de há escassos 100 anos. Basta pensar, por exemplo, que nas últimas décadas, por via da globalização, milhões de pessoas saíram da pobreza extrema. Não podemos negar que existem problemas, muito pelo contrário, e um espírito crítico é algo sempre saudável e muito necessário para uma sociedade vibrante e com uma cidadania que se pretende activa e participativa. Mas, como em tudo na vida, há coisas negativas mas também positivas. A natureza humana é imperfeita, pelo que é simplesmente utópico pensar que alcançaremos alguma vez um mundo perfeito e acabado. Como escreveu Camões, “todo o mundo é composto de mudança”. Temos é que saber encará-la. Crises sempre existiram e continuarão sempre a existir na humanidade. Neste momento de transição, em que 2011 ficará definitivamente marcado pela crise e por movimentos como os Indignados, Occupy Wall Street e a Primavera Árabe, e quando em Portugal enfrentamos provavelmente um dos anos mais difíceis das últimas duas décadas, permitam-me deixar esta mensagem contra os histerismos que nos fazem temer regressar quase à Idade da Pedra.
Quanto ao nosso país, é seguir o lema britânico “Keep Calm and Carry On”, para que, como escreveu Fernando Pessoa, ainda possamos cumprir Portugal. Não será fácil, mas se há algo verdadeiramente constante na nossa História são as permanentes crises económicas, sociais e políticas em frente das quais nos soubemos reinventar. Cabe-nos, reportando-me a Portugal na Balança da Europa de Almeida Garrett, “não nos iludir com aparências, não nos cegar com facilidades. Temos estorvos grandes que remover, obstáculos imensos que superar, grandes e perplexas e quase inextricáveis dificuldades que deslindar e desembaraçar. (…) Venceremos, mas não sem trabalho. Havemos de triunfar, mas não sem sacrifício”.
Finalizo expressando o meu desejo de que tenham um óptimo ano de 2012!