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Uma questão que marca a actualidade e tem alimentado indignações e tomadas de posição um pouco por todo o lado é a proibição da utilização do burkini em França.

 

Como o discurso político nas sociedades ocidentais é, em larga medida, enformado pelas ideias de que é proibido proibir, igualdade e tolerância, não sendo também despiciendo salientar o ódio votado por muitos aos seus próprios países e à matriz cultural onde nasceram e foram socializados, temos vindo a assistir a algo que considero verdadeiramente espantoso por parte dos que criticam a decisão francesa: a comparação com freiras que utilizam os seus hábitos quando vão à praia. 

 

Ora, esta comparação, a coberto da defesa da liberdade de escolha na indumentária, pretende tratar como objectivamente igual aquilo que é desigual e que tem uma natureza simbólica muito diferente. Enquanto o burkini, como a restante indumentária muçulmana feminina, tem um carácter coercivo imposto por uma religião que não só é estranha ao Ocidente, como pretende submetê-lo ao seu jugo, o hábito é um traje cuja utilização resulta de uma escolha voluntária por parte da freira que o enverga. Enquanto a indumentária feminina muçulmana simboliza a submissão de mulheres a quem é retirada qualquer liberdade de escolha, o hábito das freiras simboliza a dedicação voluntária à religião cristã que, gostemos ou não, está na base da matriz cultural ocidental - e, saliente-se, eu sou agnóstico. Aliás, como assinala Mark Vernon em How to be an Agnostic, ser agnóstico só faz sentido no contexto do cristianismo - não será, com certeza, por mero acaso que a apostasia é crime na generalidade dos países muçulmanos, sendo, em alguns, punida com pena de morte. Adaptando um dito atribuído a Franklin D. Roosevelt, diria que "As freiras podem envergar uma indumentária religiosa, mas é a nossa indumentária religiosa." A indumentária feminina muçulmana é estranha ao Ocidente e contém em si a crítica aos valores Ocidentais que enformam os direitos humanos, os direitos da mulher e a liberdade individual. Por tudo isto, a proibição do burkini em França é uma decisão correcta e corajosa, ao passo que a permissão de utilização do hijab nos uniformes policiais no Canadá e na Escócia é mais um contributo para o suicídio cultural ocidental.

 

Não fosse a desorientação que grassa em muitas alminhas ocidentais e provavelmente não assistiríamos a esta comparação reveladora do suicídio cultural ocidental. Para quem ainda não tenha percebido, nós estamos em guerra com outra civilização, a do islão, mesmo que o não queiramos. Continuar a enterrar a cabeça na areia e fingir que somos todos iguais e que é possível a generalidade dos muçulmanos adoptar os valores ocidentais, é apenas adiar encarar o inevitável: o islamismo elegeu-nos como inimigo e temos de o enfrentar em várias frentes.

publicado às 08:54

O Islão não é uma religião de paz

por Samuel de Paiva Pires, em 23.03.16

A repetição ad nauseam de que o "Islão é uma religião de paz" não torna esta patetice numa verdade. Na realidade, nem o Islão nem o Cristianismo são pacifistas, pois estão no seu cerne as ideias de conversão, submissão e aniquilação do Outro, o que implica e implicou sempre violência, quer psicológica, quer física. Claro que para o Cristianismo o tempo das Cruzadas já lá vai e o confronto entre catolicismo e protestantismo já não tem os contornos de outrora, além de que as seitas fundamentalistas são residuais, mas para o Islão a violência continua a ser um instrumento primordial. Independentemente da crença em Deus, a religião está sujeita aos desejos e ímpetos humanos e historicamente talvez apenas o número de mortes causadas pelos totalitarismos do século XX supere o número de mortes em nome da religião.

publicado às 14:21

Das relações entre o Ocidente e o Islão

por Samuel de Paiva Pires, em 22.03.16

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 Samuel Huntington, The Clash of Civilizations:


Some Westerners, including President Bill Clinton, have argued that the West does not have problems with Islam but only with violent Islamist extremists. Fourteen hundred years of history demonstrate otherwise. The relations between Islam and Christianity, both Orthodox and Western, have often been stormy. Each has been the other's Other. The twentieth-century conflict between liberal democracy and Marxist-Leninism is only a fleeting and superficial historical phenomenon compared to the continuing and deeply conflictual relation between Islam and Christianity. At times, peaceful coexistence has prevailed; more often the relation has been one of intense rivalry and of varying degrees of hot war. Their "historical dynamics," John Esposito comments, "... often found the two communities in competition, and locked at times in deadly combat, for power, land, and souls." Across the centuries the fortunes of the two religions have risen and fallen in a sequence of momentous surges, pauses, and countersurges.

publicado às 14:43

Como reagiria a califagem?

por Nuno Castelo-Branco, em 23.08.14

Os califeiros fartam-se de publicar mapas com ameaças de conquista, englobando todas as terras que de Bassorá a Lisboa, um dia obedeceram aos sátrapas muçulmanos. 

 

O mundo ocidental é perito no encaixe e devida resposta a provocações gratuitas, às bravatas que já custaram a liquidação de alguns impérios e potências expansionistas. Nos anos trinta, os agentes do Ahnenerbe andavam à cata de suásticas e runas, palmilhando toda a Europa do Minho à Finlândia e chegando a enviar expedições às alturas dos Himalaias. Lembram-se do filme Sete Anos no Tibete? Tratava esse tema. Onde cavocassem uma suástica virada fosse para que lado fosse, aí estava um marco susceptível de validar uma reivindicação ariana.

Os califeiros afinam pelo mesmo diapasão. Agora, neste 23 de Agosto em que passam 75 anos da celebração do Pacto Germano-Soviético, imaginem qual seria a reacção dessa turbamulta de bandidos armados - vejam o video, se conseguirem -, se num dente por dente, os cristãos desatassem a reivindicar todos os antigos territórios vizinhos do Mediterrâneo e outrora pertencentes à cristandade. Para já, existe uma clara vantagem sobre o Ahnenerbe e sucessora califagem: não é necessário cavar buracos poeirentos na terreola "santa", nem peneirar ossinhos ou esgravatar em busca da inexistente "Arca da Aliança" de todas as prestidigitações. Os vestígios saltam à vista. A propósito, quanto à Hagia Sofia...

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* O ocidente não mostra. A net fervilha de imagens horrendas e só não acredita quem não quer inteirar-se do que está em causa. São estas, as bestas.

publicado às 09:00

Uma deliciosa nota de rodapé

por Samuel de Paiva Pires, em 09.02.13

George Steiner, A Ideia de Europa:

 

«A minha mulher e eu tivemos o privilégio de sermos convidados por Nadine Gordimer para a sua bela casa na Cidade do Cabo durante os maus momentos, os momentos que antecederam a libertação. Ela convidou os chefes do ANC, do Movimento de Resistência Nacional, incluindo os chefes militares, para jantar. Os carros da Polícia estavam estacionados à porta e anotavam os nomes de todos os convidados, mas não tocaram em Nadine. Estava-se completamente seguro. Anotavam simplesmente quem chegava para o jantar. Em toda a minha vida, o meu dom principal tem sido uma falta de tacto assinalável – confesso-me culpado. Assim, perguntei finalmente àqueles três grandes chefes: «Ouçam, a ocupação pelas Waffen SS foi muito má: eles eram muito bons a ocupar. Mas, de tempos a tempos, matava-se um dos sacanas. Vocês não tocaram num homem branco. Nem um. Em Joanesburgo, os números são de treze para um. Na rua, basta fechar os braços para sufocar uma pessoa branca. Nem sequer é preciso ter armas. Treze para um. Que diabo se passa?» Um dos chefes do ANC disse: «Eu posso responder. Os cristãos têm os evangelhos, vocês, judeus, têm o Talmude, o Antigo Testamento, o Mishnah, os meus camaradas comunistas a esta mesa têm Das Kapital. Nós, negros, não temos nenhum livro.»

 

Foi um momento tremendo, para mim. A herança de Atenas a Jerusalém, de que temos um livro, de que temos vários livros. Aquela foi uma resposta avassaladoramente triste e persuasiva: «Não temos nenhum livro.»

publicado às 13:52

Apocalipse

por Samuel de Paiva Pires, em 21.12.12

A crença no fim do mundo é tão velha quanto a própria civilização ocidental, embora não tenha apenas raízes ocidentais, estando presente desde sempre nas religiões, e tendo inclusivamente sido transposta para a política por via do Iluminismo que produziu versões secularizadas das religiões - as ideologias - , pelo que a política moderna, como aponta John Gray, não é senão apenas mais um capítulo da história da religião. Para quem queira compreender melhor o assunto, recomenda-se a leitura da obra de Gray A Morte da Utopia, pelo menos do primeiro capítulo, de que deixo umas breves passagens:

 

 

«A política moderna é um capítulo da história da religião. Os maiores levantamentos revolucionários que tanto moldaram a história dos últimos dois séculos foram episódios da história da fé - momentos de prolongada dissolução do cristianismo e da ascensão da moderna religião política. O mundo em que nos encontramos no início do novo milénio está cheio de detritos de projectos utópicos que, embora enquadrados em termos seculares que negavam a verdade da religião, foram, de facto, veículos de mitos religiosos.

 

O comunismo e o nazismo afirmavam que se baseavam na ciência - no caso do comunismo, na falsa ciência do materialismo histórico; no do nazismo, na salgalhada do «racismo científico». Estas afirmações eram fraudulentas mas o uso da pseudociência não travou o colapso do totalitarismo que culminou com a dissolução da URSS em Dezembro de 1991. Continuou nas teorias neoconservadoras que afirmavam que o mundo estava a convergir para um tipo único de governo e de sistema económico - a democracia universal, ou um mercado livre global. A despeito de ser apresentada com os arreios das ciências sociais, esta crença de que a humanidade estava à beira de uma nova era foi apenas a versão mais recente das crenças apocalípticas que remontam aos tempos mais antigos.

 

Jesus e os seus seguidores acreditavam que viviam num Tempo Final em que os males do mundo estavam para acabar. Doença e morte, fome, guerra e opressão, tudo deixaria de existir após uma batalha que abalaria o mundo e em que as forças do mal seriam completamente destruídas. Foi essa fé que inspirou os primeiros cristãos e, embora o Tempo Final tenha sido reinterpretado por pensadores cristãos posteriores como uma metáfora de uma mudança espiritual, a vida ocidental tem sido perseguida por visões de Apocalipse desde esses tempos recuados.

 

Durante a Idade Média, a Europa foi abalada por grandes movimentos inspirados pela crença de que a história ia acabar e nasceria um novo mundo. Esses cristãos medievais acreditavam que só Deus podia conduzir ao novo mundo, mas a fé no Tempo Final não se desvaneceu quando começou o declínio do cristianismo. Pelo contrário, enquanto o cristianismo vacilava, a esperança de um Tempo Final iminente tornou-se mais forte e mais militante. Revolucionários modernos como os jacobinos franceses e os bolcheviques russos detestavam a religião tradicional, mas a sua convicção de que os crimes e as loucuras do passado podiam ser ultrapassados numa transformação omniabrangente da vida humana foi uma reencarnação secular das crenças cristãs primitivas.  

 

(...)

 

Não foram só os revolucionários que sustentaram versões secularizadas das crenças religiosas. Também os humanistas liberais, que vêem o progresso como uma lenta luta gradual, o fizeram. A crença de que o mundo vai acabar e a crença no progresso gradual parecem contrárias - uma à espera da destruição do mundo, a outra à espera do seu melhoramento -, mas, no fundo, não são tão diferentes como isso. Apregoem elas a mudança parcelada ou a transformação revolucionária, as teorias do progresso não são hipóteses científicas. São mitos que respondem à necessidade humana de sentido. 

 

(...)

 

Seja onde for que esteja a acontecer, o renascimento da religião está misturado com conflitos políticos, incluindo uma luta que se intensifica por causa das reservas de recursos naturais da Terra, que estão a diminuir; mas não pode haver dúvida de que a religião é mais uma vez um poder por direito próprio. Com a morte da Utopia, a religião apocalíptica reemergiu, nua e sem adornos, como uma força na política mundial.

 

(...)

 

Na linguagem vulgar, «apocalíptico» significa um acontecimento catastrófico, mas, em termos bíblicos, deriva da palavra grega que significa revelar - um apocalipse é uma revelação em que os mistérios que estão escritos no céu são revelados no fim dos tempos, e, para o Eleito, isso não significa a catástrofe mas a salvação. Escatologia é a doutrina das últimas coisas e do fim do mundo (em grego, escathos significa «último», ou «mais distante»). Como já indiquei, inicialmente o cristianismo era um culto escatológico: Jesus e os primeiros discípulos acreditavam que o mundo estava destinado à imensa destruição, de modo que pudesse passar a existir um novo e perfeito.»

publicado às 02:25

Samuel, a premissa central do teu texto - que percebo a ser a antecedência do homem face a Deus -, da qual resulta a noção de que Deus é uma criação humana, bem como o deísmo antropomórfico que caracterizas, parece-me padecer de um problema de base, brilhantemente sumariado em Being John Malkovich. Se nós vemos o mundo pelos olhos de Malkovich, o corpo de Malkovich age de acordo com o que cada um de nós quer experimentar. A realidade de "ser John Malkovich" torna-se assim no paradoxo do relativismo absoluto: John Malkovich passa a ver e agir como cada um de nós quer.

Serve a metáfora para dizer que tudo pode ser entendido como uma construção humana, se entenderes que por ser visto pelos teus olhos, humanos, passa a ser uma realidade construída por ti. Naturalmente que foi o homem quem escreveu sobre Deus, porque a escrita é um exercício humano. Faz isso de Deus uma criação humana? Da mesma forma faria de cada mesa uma mesa diferente, consoante quem passasse pelo interior da mente de John Malkovich, e olhasse para a dita mesa. A falácia "post hoc ergo propter hoc" enviesa o conhecimento: não é por a reflexão humana sobre Deus, e a escrita do homem sobre Deus, anteceder uma epifania que admitas como válida, que essa epifania passaria a ser uma construção tua. Ou todo o conhecimento se tornaria relativo, e, como tal, nulo. O que não é o caso! 

No domínio da geometria euclidiana, o Teorema de Pitágoras é uma verdade à espera de ser descoberta, que não muda por ter sido Pitágoras a descobri-la. Fosse outro qualquer, mudasse o nome ao teorema, ele continuaria a conter uma relação indesmentível entre os comprimentos dos lados de um triângulo rectângulo, inscrito num plano.

O Teorema de Pitágoras foi verbalizado por homens. Tornar-se-ia diferente a cada um que passasse pelos olhos de John Malkovich? Não me parece, e por isso não me parece também que toda a verdade seja humana como afirmas. A Matemática é uma colecção de verdades que existem e da qual nos é dado vislumbrar pedaços da sua beleza de tempos a tempos. As verdades ainda não descobertas não são verdades inexistentes. E as existentes são idênticas para qualquer olhar que sobre elas se debruce. Mesmo o último teorema de Fermat sobreviveu séculos, apesar de não demonstrado até recentemente.

 

Se a Verdade existe então, para além do humano, o Absoluto tem também de existir. Porque a Verdade é absoluta. A nossa missão muda radicalmente. Tentamos apreender a verdade, como dizia Newton, trabalhando como anões nas costas de gigantes. Santo Agostinho separava de forma clara a matéria criada da que não o foi. Deus cria. Não é ele próprio matéria criada, e por isso antecede a matéria criada. A concepção humana de Deus pode-lhe ter conferido, em muitos cultos, rostos humanizados. Da mesma forma que estilizamos as representações de extra-terrestres a partir do nosso universo de conhecimento morfológico. Mas o Cristianismo, no que me parece ser um ponto que ilude a tua reflexão, não o faz. Jesus Cristo não é a humanização de Deus, nem a representação de Cristo pretende ser a representação de Deus. Cristo é Deus que veio ao mundo como Homem. E para interagir com os homens. Por isso, numa forma reconhecível pelos homens. Nenhum Homem, diz-nos Jesus, alguma vez viu Deus, na sua vida terrena. Quando muito, alguns tiveram a Fé para reconhecer Deus no homem Jesus Cristo.

Vale a pena recordar o episódio da sarça ardente, em que Moisés interage com Deus na montanha. Pede-lhe para o ver, para o poder apresentar ao povo que tirara do Egipto. E Deus permite-lhe apenas ver a sombra de umas costas numa pedra. Santo Agostinho, em Da Trinidade, conclui que essa sombra é a sombra das costas de Jesus, pois será essa a forma humana que Deus tomará quando vem ao nosso encontro no Novo Testamento.

Não podemos, por isso, confundir antropomorfismo deísta com Cristianismo. É assumido no Cristianismo que não conhecemos o rosto de Deus, nem sabemos se o tem. Foi-nos dado, pelo Seu Amor, conhecer a Cristo, Deus que veio a nós na forma humana. Mas que não consiste na forma (se o conceito se aplica?) do próprio Deus, pois Ele não é matéria criada, nem se situa neste plano de morfologias reconhecíveis. O Deus dos Cristãos é a Trindade Santíssima: uma união perfeita de três pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) que são uma só, pois cada uma está em todas as outras e são consubstanciais. O Deus é uno e trino. Consubstancial porque todo é Amor. Só se distinguem nas relações recíprocas, mas todos um mesmo Deus.

Convirás, Samuel, que há pouco de antropomórfico, na percepção de um Deus uno e trino, pois essa é uma realidade desconhecida e mesmo misteriosa no nosso plano vivencial....

publicado às 18:31

 

Como alguns leitores terão notado, nos últimos tempos, especialmente desde que decidi assumir publicamente o meu agnosticismo, tenho-me debruçado, ainda que não tão aprofundadamente como gostaria, sobre a temática da religião, deixando por aqui excertos de autores como Scruton, Jung e Mark Vernon. Na lista de leitura constam ainda obras de Nietzsche, Kierkegaard, Feuerbach, Russell, William Rowe, Hitchens e dos mesmos Scruton, Jung e Vernon. Disto procede, como bem apontaste, Carlos, no primeiro texto em que respondias a um excerto de Vernon, que a verdade é que a minha abordagem à religião é essencialmente filosófica. Mais, eu padeço da mesma incultura religiosa de Camus, ou talvez mais apropriadamente, incultura em relação à religião católica, e é por isso que, embora a Bíblia também faça parte da minha longa lista de leitura, não sou capaz de responder nos mesmos termos simbólicos que utilizas. 

 

Ainda assim, permite-me uma breve réplica para dizer que o ponto que levantas relativamente à ausência do utilitarismo na religião católica - e não é surpreendente a crítica que fazes ao utilitarismo de Vernon, ou não tenha este sido padre da Igreja Anglicana - parece-me poder ser disputado em dois sentidos. O primeiro, é que quando se fala em Salvação somos obrigados desde logo a colocar a questão "o que é a alma?" - que recentemente Edward Feser abordou-; o segundo, é que como Hayek, também ele agnóstico, mostra em The Fatal Conceit, a religião tem, de facto, uma utilidade, mais imanente que transcendente. Distinguindo entre as práticas de comunidades primitivas e das modernas sociedades ocidentais, o autor austríaco salienta que instituições, sistemas morais e tradições evoluíram de forma a gerar e manter um número elevadíssimo de indivíduos, através de uma selecção natural competitiva mas pacífica das tradições de diversos grupos, tradições estas que muitos não entendem ou não apreciam e que até combatem, mas que são fundamentais para a sobrevivência destes grupos. Contudo, quanto ao porquê destas terem sido preservadas contra instintos e até contra o racionalismo construtivista, Hayek assinala que a religião desempenha/ou um papel fundamental (tradução minha): "Devemos parcialmente a crenças místicas e religiosas e, acredito eu, particularmente às principais crenças monoteístas, que tradições benéficas tenham sido preservadas e transmitidas pelo menos o tempo suficiente para permitir a estes grupos que as seguiam crescer e ter a oportunidade de se espalharem através da selecção natural ou cultural. Isto significa que, gostemos ou não, devemos a persistência de certas práticas, e a civilização que resultou destas, em parte ao apoio de crenças que não são verdadeiras – ou verificáveis ou testáveis – no sentido em que são as afirmações científicas, e que certamente não são o resultado de argumentação racional. Eu às vezes penso que pode ser apropriado chamar-lhes, pelo menos como gesto de apreciação, “verdades simbólicas”, visto que elas ajudaram os seus aderentes a ser “frutíferos e multiplicarem-se e reabastecerem a terra e subjugá-la” (Génesis 1:28). Mesmo aqueles entre nós, como eu próprio, que não estão preparados para aceitar a concepção antropomórfica de uma divindade pessoal, têm de admitir que a perda prematura do que consideramos como crenças não factuais, teria privado a humanidade de um poderoso apoio ao longo desenvolvimento da ordem alargada que agora gozamos, e que mesmo agora a perda dessas crenças, quer sejam falsas ou verdadeiras, criaria grandes dificuldades."1

 

Também Jung nos traz alguma luz a este respeito, quando faz a distinção entre credo e religião, que é também útil para responder ao Corcunda. Diz-nos Jung (tradução minha) que "Um credo dá expressão a uma determinada crença coletiva, ao passo que a palavra religião exprime uma relação subjectiva com certos factores metafísicos, extramundanos. Um credo é uma confissão de fé destinada principalmente ao mundo em geral e é, portanto, um assunto intramundano, enquanto o significado e o propósito da religião recaem na relação do indivíduo com Deus (cristianismo, judaísmo, islamismo) ou no caminho da salvação e libertação (budismo). A partir deste facto básico é derivada toda a ética, o que, sem a responsabilidade do indivíduo perante Deus pode ser chamado de nada mais do que moralidade convencional."2

Atendendo à moderna morte de Deus,  quando, em A Gaia Ciência3, Nietzsche aborda o assunto, fá-lo, como Vernon salienta, contando uma história que é ilustrativa da tragédia que, para ele, foi a proclamação da morte de Deus. Diz-nos a personagem do louco (tradução minha): "Como havemos de nos consolar, os assassinos de todos os assassinos? O que era mais sagrado e mais poderoso de tudo o que o mundo já possuiu sangrou até à morte sob as nossas facas: quem vai limpar esse sangue de nós? Que água existe para nos limparmos a nós mesmos? Que festivais de desagravo, que jogos sagrados teremos de inventar? Não é a grandeza deste acto demasiado grande para nós? Não deveremos nós próprios tornar-nos deuses simplesmente para parecermos dignos dele?"3 "O homem como o novo Deus", diz-nos Vernon, "quão assustador é este pensamento."4

Nietzsche percebeu claramente o que o Corcunda salienta, tal como Jung, no que diz respeito à ausência de um critério transcendente de verdade: "Ser o aderente de um credo, portanto, não é sempre uma questão religiosa, mas mais frequentemente uma questão social e, como tal, não faz nada para dar ao indivíduo qualquer fundamento. Para suporte ele tem que depender exclusivamente da sua relação com uma autoridade que não é deste mundo. O critério aqui não é a aprovação de um credo, mas o facto psicológico de que a vida do indivíduo não é determinada exclusivamente pelo ego e as suas opiniões ou por factores sociais, mas em igual medida, se não mais, por uma autoridade transcendente. Não são princípios éticos, por mais elevados, ou credos, por mais ortodoxos, que estabelecem as bases para a liberdade e a autonomia do indivíduo, mas simples e unicamente a consciência empírica, a experiência indiscutível de uma intensa relação pessoal e recíproca entre o homem e uma autoridade extramundana que actua como um contrapeso ao "mundo" e a sua "razão."5

Dito isto, importa afirmar que um agnóstico, ou melhor, um pensador ou filósofo agnóstico (aspirante, no meu caso), não é necessariamente irreligioso. Pelo contrário,  enquanto muitos, se não mesmo a maioria dos aderentes a um credo, limitam-se a existir e não a viver, já que aceitam dogmaticamente o que a Igreja do credo lhes diga que está certo e errado, não chegando sequer a debruçarem-se sobre as grandes questões da existência humana, como a existência de Deus, um agnóstico que o seja no sentido que a palavra tomava na Época Vitoriana, ou seja, que tenha a convicção de que nada pode ser conhecido com absoluta certeza mas que se dedica à busca pelo conhecimento com a plena noção dos limites deste e da sua ignorância, não pode deixar de repudiar o fundamentalismo quer dos credos quer do ateísmo, colocando-se numa posição de dúvida que dá corpo ao seu pensamento e à sua forma de estar na vida. Aliás, a sua relação com uma entidade extramundana, exercitando a dúvida, pode inclusive ser mais rica e intensa que a de um crente, como foi o caso de Sócrates. Mais, se o agnosticismo e o ateísmo são até mais velhos que o cristianismo, como pode este clamar estar em contacto ou saber o que é a verdade? E de que verdade falamos em concreto? E por que é que esta tem que ser necessariamente um sub-produto do Divino? Ademais, se aceitarmos que foi o Homem que criou Deus - como eu tendo a aceitar -, temos que a sacralização ocorre(u) do mundano para o extramundano pelo que, em última análise, estamos sempre a aceitar verdades que têm apenas origem humana. Não creio que a modernidade tenha transformado a verdade numa percepção humana, creio que sempre o foi, e que o Iluminismo apenas veio revelá-lo - reforçando o temor em relação à antropomorfização da Vontade Divina. Neste contexto, que outra hipótese temos que não virar-nos para a imanência, mas sabendo que esta não deixa, contudo, pelo menos para mim, de ter ligação à transcendência - na tal posição de dúvida -, e que individualmente cabe-nos adoptar princípios, valores e comportamentos que nos pareçam moralmente correctos, que em última análise, até podem derivar, e em larga medida derivam, da religião - de que as ideologias são, elas próprias, os melhores exemplos, no que à conduta política diz respeito?



1 - F. A. Hayek, The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, Indianapolis,Liberty Fund, 1991, pp. 136-137.

2 - Carl Jung, The Undiscovered Self, New York, Back Bay Books, 1957, pp. 20-22.

3 - Friedrich Nietzsche, The Gay Science, New York, Vintage Books, 1974, pp. 181-182.

4 - Mark Vernon, How to be an Agnostic, Basingstoke,Palgrave Macmillan,2011, p. 8.

5 - Carl Jung, Ibid., pp. 22-23.

publicado às 01:41

Samuel, reconhecendo a valia da reflexão do Mark Vernon, não deixo de sentir perplexidade com a abordagem quase utilitarista que tem da religião. A Fé não tem um propósito em si mesmo, no sentido em que não é proclamado que "o sujeito A deve ter Fé, para poder fazer uma melhor introspecção de si". Reconheço a valia do exercício, e admiro o exame de consciência e a noção das limitações que a proposta do texto potenciam. Mas não é um caminho de validação da religião: conferir-lhe uma utilidade. Precisamente porque a verdadeira Fé não procura ter uma utilidade.

Daí o meu desconforto com o texto anterior em que se citava o mecanismo: a salvação. Pobre daquele que tem fé porque acha que assim se salva. Tem-se Fé, no meu enquadramento religioso, que sabes ser católico romano, porque se adere à Graça: Deus confere-nos a possibilidade de acreditar, e acreditamos. Não esperando nenhum tipo de recompensa por acreditar. A Salvação é a aspiração de uma comunhão eterna com o Deus que amamos: o perpétuo mergulhar da alma no Seu Amor, nas palavras de Bento XVI. E deverá decorrer de uma vida em que se caminhe na imitação da vivência da Caritas. No modelo do Bom Samaritano, que, enquanto teólogo, Joseph Ratzinger, identificou com o próprio Cristo: Deus que se fez homem para vir assistir a sua criatura caída na estrada nesta existência terrena, vergada pelos pecados e males do mundo.

As limitações do humano face ao Criador são enquadráveis no seio da própria religião. Seria interessante, a meu ver, que Vernon reflectisse também sobre a natureza do pecado original. Que contrariamente ao senso comum, não tem uma acepção estritamente sexual: antes resulta do homem, Adão, que tentado a comer da Árvore da Sabedoria, não resistiu, porque iludido de que assim seria conhecedor das mesmas coisas que Deus. A tentação de Adão é querer substituir-se a Deus, podendo governar o mundo com o conhecimento de Deus. Vernon aponta correctamente para a percepção da humildade do homem face ao divino, mas ignora que a tradição judaico-cristã assimila desde o Génesis, essa mesma necessidade de humildade. Nas Escrituras, a condenação do homem não é pela percepção da nudez, mas pela necessidade de se substituir a Deus.

 

 

publicado às 18:50

Do sentido da Esperança e da Vivência Cristã

por Carlos Santos, em 29.05.12

A abordagem de Camus ao Mito de Sísifo é atravessada da mesma incultura religiosa que marca muitos dos existencialistas do seu tempo. Camus não inventa nada, nem coloca em Sísifo nenhuma questão nova a que o Cristianismo não tivesse já respondido, da forma mais sublime, nas Sagradas Escrituras. A questão da "falta de significado" dos padecimentos do homem no mundo é respondida precisamente por Jesus Cristo: Deus toma a forma da sua criatura eleita, o homem, e vem, como verdadeiro Homem, experimentar as agruras da condição terrena. Ensina-nos S. Tomás de Aquino que Deus cria por Amor, e por Amor vem verificar, na pele de Homem, o suplício das misérias terrenas. Enquanto verdadeiro homem, Cristo, como o Sísifo de Camus, é livre: pode recusar, nada lhe é imposto. Só que o que os Evangelhos nos mostram é que Cristo une, pela oração, a sua vontade humana à vontade divina, pois é também verdadeiro Deus. E com isso suporta todo o padecimento da sua vivência no mundo, que culmina na Paixão e na Cruz. O grito lancinante que replica o Salmo 22, mostra até que ponto o Deus compreende a condição humana! No alto da Cruz, Cristo cita o salmista, "Meu Deus, porque me abandonaste?", dando voz a todas as agruras que no mundo levam o homem a questionar-se da sua sorte. Mas cumprindo com a vontade de Deus, e ressuscitando no terceiro Dia, Cristo responde ao sentido da existência Cristã: Deus não abandonou o Homem, pois o sentido da vivência humana ultrapassa esta efémera passagem terrena.

 

publicado às 17:47

Mark Vernon, How to be an Agnostic:

 

«What is missing is meaning. A materialistic humanism finds it hard to address the questions of morality, values and spirit. Following the scientific rationalism it holds in high regard, it tends to boil it all down to a discussion of mechanism, rules and laws. This may create an illusion of understanding and a sense of purpose. But meaningless keeps rearing its head because, well, mechanisms, rules and laws are actually not very meaningful. This is why atheism felt like a poverty of spirit to me. This is why ‘Why? Is the cry of our age and we are no longer quite sure who we are. Sisyphus is our hero: forcing the boulder of his humanity to the top of a mountain, hoping to lend it the authority of a high place, only to see it roll down again. In truth, it’s absurd, as Camus realized – and only a few can honestly stomach that thought. ‘Thus wisdom wishes to appear most bright when it doth tax itself,’ says Angelo in Shakespeare’s Measure for Measure.

 

What is doubly distressing is that contemporary Christian discourse often sounds the same way too. It readily loses its humanity and resorts to the same discussion of mechanisms (being saved), rules (being good) and laws (being right). In so doing, it empties itself out.»

publicado às 13:01

O medo sem vergonha

por Nuno Castelo-Branco, em 10.01.11

Estranho. O até agora maior país africano, está a viver o momento da fragmentação e nem uma palavra encontramos em jornais como o Público*, Expresso ou Diário de Notícias. Duzentos mil assassinados cristãos, dois milhões de refugiados em países vizinhos. Nada, nem sequer uma manifestação de repúdio, por mais elementar que seja, de uma realidade longínqua e que os europeus não querem conhecer. Se compararmos o caso desta região e do Darfur com aquele outro bem próximo de nós, o do Kosovo, a situação torna-se ainda mais evidente.

 

As razões para tal silêncio, são ostensivas. O Ocidente vive coagido pelo preconceito imposto por uma pretensa vanguarda intelectual da esquerda colaboracionista e já submetida a todas as exigências de um "multiculturalismo" cada vez mais monoreligioso. O Ocidente está aterrado pelo claro falhanço dos ciclónicos "Ventos da História" que liquidaram a África e que hoje obrigam a um referendo justiceiro e libertador do sul do Sudão. Em Portugal, a situação de estrabismo é ainda mais notória, existindo uma permanente censura a tudo que possa colocar em causa, os idos de 1974-75 e as camarilhas do poder.

 

O Ocidente tem medo, pois os Estados da U.E. escancararam as suas portas, prodigamente apascentando os cavalos de Tróia que agora tão temidos são. O Ocidente tem medo de Ahmadinedjad, tem medo do genocida Bashir, de Bin Laden, de Assad, do Hamas, das tâmaras, dos sagrados cameleiros virgens do Alá e das barbaças do imã de Finsbury Park. O Ocidente receia o choque petrolífero de uma bomba, mesmo que seja de carnaval. Em suma, tem medo e este abjecto pavor, consiste sobretudo, numa rejeição daquilo que somos.

 

Com esta gente a comandar a Europa, o Ocidente morrerá. De medo.

 

* Adenda: o Público acabou por decidir noticiar. Tardou, mas aqui está a notícia, acompanhada por um resumo da situação.

publicado às 09:08

2011

por Nuno Castelo-Branco, em 01.01.11

O primeiro texto importante para 2011, no Blasfémias:

 

"É como se entendêssemos que todos os cristãos devem carregar um novo “fardo do homem branco”, sendo obrigados a penar, pelos cinco continentes, os pecados da colonização e, por isso, sendo sempre culpados de todos os males mesmo quando estão inocentes"…

publicado às 17:43

Cristãos preparam-se para fugir

por Nuno Castelo-Branco, em 10.11.10

A imagem é brutal, mas verdadeira e convenientemente impublicável por isso mesmo, aqui está

 

São estas, as notícias que passam despercebidas nos telejornais e nos "centros  intelectuais" mainstream, mais conhecidos por cafés. Os cristãos não ameaçam, nem colocam bombas. Os cristãos não imaginam raptar seja quem for, cortando-lhe o pescoço para agradar a Deus. Assim, os auto-proclamados e medrosos porteiros da nossa cidadela, evitam mencioná-los, alheando-se de qualquer crime que seja infligido a quem não perfilhe da grotesca  e retrógrada superstição que impera além-Mediterrâneo. Podem ser espancados, roubados expulsos ou mortos, mas das bandas dos devoradores de Delikatessen, nem uma palavra se escutará. Que sejam chacinados, mas não façam ondas. O Papa será sempre  o alvo primordial e qualquer estorieta acerca de um padre amancebado, será coisa mais comentável que qualquer lapidação de "mulher devassa", enforcamento gay numa praça de Teerão, ou lei vexatória imposta pelos imãs londrinos. As excisões executadas com uma paternal Gillette ou pelo prestável doutor de serviço, talvez lhes dêem um momento de sanidade mental - existe uma estimativa de 130.000.000 de mulheres mutiladas -, mas é prurido que depressa se esquece. Isso fica para as outras e assim, "há que respeitar a sua cultura" e de preferência, permitir que na Europa se institua a lei específica para cada um. Tal como reclamam os cavalheiros da foto mais abaixo.

 

Estes descerebrados "intelectuais" são idiotas profissionais, ficando-se placidamente pelo coçar das suas lêndeas ideológicas em qualquer vernissage que propicie mais uma flute de champanhe à conta.

 

Os cristãos do Iraque estão sob o fogo cerrado e isto, num momento em que estes ataques começam a generalizar-se em todo o "mundo muçulmano", de Marrocos à Indonésia. Aquela gente julga viver nos tempos de Saladino e em conformidade, há que dar-lhes resposta. Aqui na Europa, pela firmeza da Lei e e implacável resolução na sua aplicação.

publicado às 17:00

Ainda a ideologia, a política e a religião

por Samuel de Paiva Pires, em 01.09.09

 

(Henrique VIII, imagem tirada daqui)

 

Não tenho sequer um centésimo do arcabouço intelectual do Corcunda, que conheço pessoalmente e que respeito pela coerência, inteligência e pela simpatia que o caracteriza. Faltam-me leituras, muitas leituras, e estudo, muitas horas de estudo, para almejar sequer colocar a discussão no complexo patamar a que já nos habituaste (e saúdo o facto de teres voltado a escrever, julgo que após umas merecidas férias, aproveitando para confessar que estou honrado por ter sido em referência a uma discussão que envolveu a minha pessoa) que, em minha opinião, só encontra paralelo na blogosfera lusa na pena digital do Professor Maltez e do Miguel Castelo-Branco.

 

Considero que o diálogo e a crítica são das mais saudáveis e nobres actividades humanas. Não posso, no entanto, deixar passar em branco extrapolações que não fiz. Na realidade, concordo totalmente com os segundo e terceiro parágrafos do teu post. Como mera curiosidade, diga-se de passagem que só não fui baptizado protestante porque o Bispo de Londres anuiu ao pedido dos meus pais para que o padre de Bolungarvik me baptizasse em casa, segundo o rito católico. Se o facto de ter nascido em um país protestante (Islândia) de alguma forma condicionou a minha forma de estar, é uma incógnita. Mas sem dúvida que o liberalismo e a própria democracia liberal estão intimamente ligados ao protestantismo, e os meus pontos de vista talvez estejam mais próximos deste, no que à teoria política diz respeito.

 

Comecemos pelo que afirmação do Corcunda de que "ao contrário do que supõe o Samuel, ao liberalismo nada pode ser imputado no sentido de separação da esfera política e religiosa". Eu não suponho nada disso. Até o liberalismo de inspiração francesa é mais religioso que o catolicismo, e o marxismo é tão ou mais milenarista e apocalíptico do que o cristianismo. Ambos lemos a Morte da Utopia do Gray, sabemos do que falamos, e o Corcunda muito mais do que eu,  portanto esta confusão não tem sentido algum. Eu apenas disse que "simplesmente encaro a religião como um assunto que apenas diz respeito à vida privada de cada indivíduo e, como liberal que sou, encaro a Igreja como um grupo social como outro qualquer, com total direito a exprimir as suas opiniões". E como decerto sabes, o protestantismo, tendo a liberdade individual como máxima, permite que cada qual encontre o seu caminho para Deus da forma que preferir, daí resultando a intensa proliferação de Igrejas protestantes extremamente diversificadas. Já agora, se isto é bom ou mau, não me compete a mim julgar. Importa no entanto notar que, pela negativa, os países protestantes se vêem a braços com a proliferação de outras religiões que se pautam pela intolerância e ameaçam a liberdade individual. O protestantismo é naturalmente caracterizado pela descentralização (uma característica das democracias liberais dignas desse nome), por oposição ao catolicismo de inspiração centralizadora - mais uma vez, não estou a criticar negativamente, até porque se assim não fosse talvez a independência Portuguesa garantida por D. Afonso Henriques não tivesse sido possível - obviamente foi o beneplácito papal que a sacralizou - e até talvez a aventura portuguesa dos Descobrimentos não tivesse tido o sucesso que teve - não nos esqueçamos da missão civilizadora imbuída do carácter apostólico.

 

Quanto à "própria ideia de que a comunidade política não se deve submeter a uma concepção de Bem (que o Samuel parece aceitar como axioma, vindo sabe-se lá de onde)", é muito fácil. É que o Corcunda ou o Afonso Miguel, como os integralistas e certos direitistas, pugnam por uma completa submissão da política à religião católica e à concepção de Bem Comum que dessa advém. Isto é tão rousseauniano quanto utilitarista (Helvétius, Bentham), e está tão presente nas ideologias nazi como comunista. Schumpeter ou Berlin demonstraram magistralmente que não há qualquer Bem Comum ou Vontade Geral. Eu não sou colectivista ou totalitarista e, como tal, não posso tolerar um sistema que por englobar toda a sociedade nas suas concepções se torna intolerante. Quem é que tem mais legitimidade para definir qual a concepção de Bem que me satisfaz? Eu ou os outros? Lamento, para mim continuará a ser a minha pessoa. Portanto se esta "é uma ideia política luterana e que seria impossível em qualquer contexto religioso não-protestante", ainda bem que vivemos numa democracia liberal e que mesmo pensando assim tenho a liberdade de continuar a ser um católico, pouco praticante, confesso, mas que encara a Igreja como um actor social como qualquer outro - e se me quiserem chamar de herege, estejam à vontade, mas parece-me que a Igreja Católica é, hoje em dia, mais tolerante do que muitos daqueles que mais dizem defendê-la e que por se tornarem dogmáticos e intolerantes à crítica, acabam por prejudicar a imagem desta. Bom, mas não vale a pena ir tão longe, é que não é só hoje em dia. A tolerância que o Corcunda diz que os liberais tornaram em religião de Estado, é mais premente no catolicismo do que no protestantismo, ou não tivesse Gil Vicente caracterizado magnificamente essa Nobre personagem que pecava mas que a Igreja perdoava a troco de dinheiro. Aliás, em que país protestante é que José Sócrates ainda estaria no poder depois de ter mentido acerca da licenciatura? Nenhum. O protestantismo, porque contratualista, não admite desvios ao que se contrata. Quem sou eu para o dizer, mas talvez o conceito de tolerância seja um pouco mais multidimensional e menos linear do que o que o Corcunda parece pensar.

 

Quanto ao último parágrafo do teu post é que me parece que acaba por fazer cair pela base a construção dos dois anteriores. Logo a começar, eu apenas afirmei que não gosto de misturar religião com política (porque discussões do género estão condenadas à partida a não levar a lado algum e a acirrar ódios irracionais na maior parte das pessoas), e se digo que a Igreja é um actor social como qualquer outro e, por isso, com direito a exprimir as suas opiniões, obviamente derivadas do elemento religioso que dá consistência à sua existência e acção, naturalmente que a Igreja tem influência na política. Isto parece-me lógico, mas talvez não me tenha exprimido bem.

 

Mas o que me parece mais curioso e caricato é esta extrapolação "Afirmar que se é tradicionalista “anglo-saxónico” e que se prefere um Estado laico é o mesmo que um comunista que adora a economia de mercado". No meu post, refiro-me ao método continental e afrancesado da revolução, por oposição ao método tradicionalista anglo-saxónico de incorporação das revoluções e da continuidade, ideia eminentemente conservadora, sobre a qual Ortega y Gasset discorreu, e era a isto que me referia.

 

Posto isto, o Corcunda conclui dizendo que (peço desculpa pela repetição, apenas para enquadrar) "Afirmar que se é tradicionalista “anglo-saxónico” e que se prefere um Estado laico é o mesmo que um comunista que adora a economia de mercado. Haveria alguma possibilidade de haver conservadorismo britânico num Estado Laico? Essa é que não passa mesmo pela cabeça de ninguém…". E com esta extrapolação é que fico confuso. Ora se "A própria ideia de que a comunidade política não se deve submeter a uma concepção de Bem (que o Samuel parece aceitar como axioma, vindo sabe-se lá de onde) é uma ideia política luterana e que seria impossível em qualquer contexto religioso não-protestante", significa que, logicamente, eu estarei mais próximo do protestantismo (e do ponto de vista da teoria política não me parece que hajam dúvidas, depois do que acima expus) e do conservadorismo anglo-saxónico. Invertendo a questão, parece-me então que talvez não passe mesmo pela cabeça de ninguém que se possa ser conservador e tradicionalista anglo-saxónico e em simultâneo acerrimamente católico. Como há dias escreveu o Afonso Miguel em relação à minha pessoa, ou não é assim e não era nada disto que o Corcunda queria dizer? É provável...

 

Ou afinal o protestantismo e o catolicismo são mais idênticos do que se possa pensar? Ou eu não percebo nada disto? Também é provável, portanto, desculpem lá qualquer erro ou incoerência.

 

(P.S. - Agradeço à Cristina por se ter ocupado das nomeações e prémios nos últimos dias. E agora, se me permitem, vou voltar para a minha tese sobre a política externa portuguesa).

publicado às 20:58






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