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Há uma boa dúzia de anos visitei Portugalete, Bilbau. Mas isso não vem ao caso. O que vem ao caso é a preocupante constatação de que os meus compatriotas, que agora vêm em força a Portugal, são apenas turistas. Ou seja, na maior parte dos casos envergonham-me - "Oh, wow! Isn´t that neat?" ou "Are you good?". Enfim, deixem-nos vir à vontade para deixar o pilim, mas não lhes perguntem sobre o Brexit, sobre as eleições na Áustria, sobre a Troika - eles pouco ou nada sabem. E foi essa insularidade existencial que elegeu Trump. Tenho a nacionalidade, mas sou crítico como o raio em relação ao dossiê. Não confundamos certas coisas. A "inteligência" americana existe no topo do topo da Ivy League, nos centros de investigação confortados pelas dotações milionárias de civis que escalaram com labor e suor a pirâmide da sociedade. Os americanos que me confortam são aqueles que não tornam à federação. São aqueles que têm uma epifania repentina (não são todas repentinas?) e decidem que ainda vão a tempo de cultivar vistas largas e abandonam a América com a carga pronta e metida nos contentores. Eu sei, também se pode tecer críticas ao atraso de vida em Portugal. Mas hoje não estou para aí virado. Acho que fiquei mesmo irritado quando ontem me cruzei com um compatriota relativamente vocal que envergava uma sweatshirt com o seguinte estampado: "Detroit Dog Savers". E pronto. Fico-me por aqui. Hoje há bola?
Portugal sofre de pseudo-elitismo crónico. O mito sagrado da cultura tem servido fetiches de diversa ordem, mas sobretudo para invocar poderes sobrenaturais e reclamar dinheiro dos contribuintes. Em nome de causas maiores, do bem público e do dever do Estado, um conjunto alargado de "estruturas" (termo querido da Catarina Martins) tem recebido, a fundo quase perdido, somas interessantes para tirar o povo da sua ignóbil miséria cultural. São estes agentes em missão de salvamento que resgataram Portugal profundo da tirania da estupidez e ignorância. O contínuo endeusamento de uns quantos "grandes", que consubstanciam a máxima "em terra de cegos quem tem olho é rei", é o derradeiro responsável. São esses iluminados, tocados pela magistratura do privilégio da corte de vantagem, das ligações especiais, que foram levados em ombros na luta cultural de classes levada a cabo pelas Esquerdas, ditas titulares exclusivas das artes performativas e do seu integral entendimento. No entanto, o modelo (falido, falhado) não se localiza na régua ideológica ou partidária, nada tem a ver com a Esquerda ou a Direita. É problema de fabrico. É uma patologia respeitante à matriz estatutária do país que distingue despudoradamente a superioridade cultural de uns e afasta a mediocridade avultada de outros. Confirmamos a eternização dos mesmos jogadores. São eles; políticos-poetas, escritores-aclamados, críticos-intocáveis, actores-consagrados, cantoras-diva e encenadores-inamovíveis que degeneram a possível e desejável alteração das regras, do modelo. São esses mesmos, próximos da poltrona do funcionalismo público, que não desejam grandes sacudidelas. Para eles, a cultura deve estar divorciada do mercado, porque o público nada sabe e portanto não saberia distinguir uma ópera bufa de uma simples libertação de gases. Os agentes ditos culturais não entenderam pelo menos duas coisas: a arte é sinónimo de ruptura e desequilíbrio. E os empreendimentos culturais financiam-se de um modo social, sem ser necessariamente socialista, mas intensamente escrutinado em função dos valores investidos e do retorno qualitativo e expectável das obras de arte apresentadas. Neste capítulo das artes e da cultura, da programação e dos modelos de financiamento, poucos o sabem fazer como os americanos. Ora vejam este exemplo e descubram as diferenças. Isto é apenas dinheiro dos contribuintes. Mais nada.
in Portugal Traduzido, Edições Cosmos 2008
Ambiente Mental
Para lidar com a primeira entrada do abecedário, teremos de reconhecer os diferentes significados e aspectos do conceito de ‘ambiente’. Por exemplo, efectuar uma distinção entre ambiente natural, natureza ou ecossistema, e ambiente humano. As dimensões a que nos referimos são indissociáveis, pelo que em Portugal tem sido difícil estabelecer a relação de parentesco entre o indivíduo e o ambiente. A natureza em Portugal é um filho bastardo e mal amado.
A natureza não é assumida enquanto propriedade colectiva ou património nacional, de forma activa e inquestionável. Talvez o nascimento de cada indivíduo e a consequente atribuição de nacionalidade deveria implicar a propriedade de um qualquer enésimo do território do país. Esta forma de cidadania proprietária teria um efeito psico-simbólico intenso, gerando uma espécie de auto-estima territorial.
Não reconhecer o valor do espaço de inserção geográfico, significa praticar uma forma de ‘geo-fobismo’, expulsando a terra, tornando cada indivíduo um membro voluntário de um movimento sem-terra. Talvez devido ao seu passado histórico colonial, Portugal tenha subvertido a importância do conceito de espaço vital imediato, com a excessiva disponibilidade além-mar a incutir uma nefasta atitude perdulária. Nem mesmo a Conferência de Berlim de 1884, que instituiu o princípio de ocupação efectiva dos domínios coloniais, e que retirou territórios e capacidade de projecção de poder a Portugal, terá servido para um ‘regresso’ a limites geográficos proporcionais à dimensão nacional. Poderemos legitimamente perguntar: como e quando se inicia um processo de desrespeito pela dimensão física e natural de Portugal? Não encontraremos na literatura ou na pintura a exaltação da geo-pátria? Terá sido o antigo regime um solitário proclamador do alto da montanha? Não será possível aproveitar alguns elementos edificantes em detrimento de outros com forte carga política? E será que o 25 de Abril libertou o homem para este voltar a ser um bom selvagem?
Assistimos ao tabu do domínio da terra sobre o homem, porque, de forma deturpada, o cuspir sobre o passeio ou a queimada incendiária serão expressões da interpretação desequilibrada do sentido de poder ou liberdade, fortemente entranhado na prática quotidiana. A análise do fenómeno anti-natureza em Portugal tem de seguir um critério mais estrutural e sociológico. A modernidade, promovida pelos governos pós 25 de Abril, apoia-se em imagens de betão armado, carros velozes e roupa de marca. Ironicamente, a imagem exterior dos indivíduos alcançou uma expressão notável em detrimento da preservação do ambiente. Mesmo perseguindo um idealizado parcelamento da propriedade latifundiária, tal não serviu a salvaguarda de um sentido ecológico. Esta indiferença em relação ao ambiente reflecte um desapego pelo abstracto, na medida em que os vínculos afectivos não se estabelecem em relação a um ideal de espírito livre ou natureza selvagem. Assim, a floresta é apropriada enquanto fenómeno de massas, colectivo e irracional, mas não por uma vontade individual.
Um olhar possível sobre um processo de evolução (que obedece alternadamente a mecanismos de auge e declínio, êxito ou tragédia) pode limitar-se à aceitação do destino, sem intervenção humana praticável. Ou seja, o cidadão é um mero espectador do fenómeno natural ou, no limite, um interventor negativo. Outra leitura admissível diz respeito ao modo como a rejeição da procedência provinciana pode significar o cortar de relações afectivas com o atraso estrutural do interior não-urbano. Uma vez que os centros urbanos são habitados pelos que abandonaram as suas origens humildes e campestres à procura de melhores condições de vida, verifica-se uma tomada de consciência deturpada de modernidade, através da qual se procura dissimular a proveniência, simulando sofisticação. Os eventos que afligem a floresta não comovem porque já representam factos distantes da neo-urbanidade adquirida pelos migrados do campo.
A única forma de corrigir comportamentos eco-destrutivos parece ser através da instituição de um sistema sancionatório implacável, em simultâneo com mecanismos que reconheçam os esforços de reposição do equilíbrio ambiental. Os filhos menores devem reconhecer aos pais o esforço que estes desenvolvem para separar o lixo e respeitar os eco-pontos. A adopção de uma ‘agenda ambiental’ significa co-responsabilizar governos indivíduos, crianças e proprietários de cães que lançam os seus dejectos nos passeios.
A promoção de objectivos concretos poderá representar uma janela de oportunidades para converter adversidades em mais-valias. Por exemplo, à semelhança da recente legislação que obriga as novas construções a instalar sistemas de energia solar, a instalação de redes de cisternas ou depósitos para aproveitamento de águas das chuvas poderia representar uma primeira solução para o problema de escassez de água, que terá de ser confrontado seriamente e a breve trecho. Esta solução, não original, foi concebida e instituída pelos árabes durante a sua permanência na Ibéria. Um ‘plano tecnológico’ não significa necessariamente novidades sofisticadas, e por vezes o próprio traçado histórico oferece algumas soluções. A tecnologia comporta na sua génese uma ideia de optimização e simplificação. Uma sociedade desenvolvida garante a sua continuidade pela manutenção dos seus elementos naturais, através de um status quo que em certa medida contradiz a ideia de alteração dinâmica, mudança e progresso. Nesta acepção, o desenvolvimento corresponde à capacidade de manutenção dos factores de equilíbrio herdados do passado.
Associamos a esta noção uma outra, de historicidade natural, através da qual poderemos aceitar a evolução política que altera profundamente a configuração mental e cultural da população, mas que não afecta dramaticamente a expressão física ou geográfica do território.
A ideia de reserva natural em Portugal assemelha-se a uma wasteland, sem utilidade perceptível para as populações. A noção de qualidade de vida dos indivíduos não integra o factor natureza enquanto um elemento determinante. O ‘cidadão-tipo’ prefere eleger a propriedade de um bom carro ou casa, os fins-de-semana no Algarve do betão, ou um horário laboral flexível como elementos definidores de qualidade de vida. Parece ter-se tornado um síndrome nacional o vínculo a matérias ou factos que representem novidade, daí que a natureza ‘eternamente silenciosa’ não consiga oferecer nenhum estímulo adicional relevante.
Este quadro ainda se torna mais negro pela ausência de debate sobre a protecção ambiental, sendo que me refiro àquele desenvolvido espontaneamente pelos indivíduos, e não pelas associações de defesas do ambiente ou autoridades nacionais. Enquanto a ‘consciência de ambiente’ não se democratizar e popularizar, no espírito de cada um, não se vislumbra uma evolução favorável para a paisagem natural. Do mesmo modo que cada contribuinte tem a noção do imposto ou taxa que paga pela propriedade de uma viatura ou casa, seria conveniente integrar nessa consciência fiscal a quota devida ao ambiente.
A operacionalidade de uma ‘polícia do ambiente’, eficiente e percepcionada como tal pelas populações, constitui uma obrigação moral dos governos. Uma forma de contrariar a primitiva prática de abandono de frigoríficos ou baterias no matagal, seria instituir um sistema de registo de propriedade dos equipamentos, que delimitaria os tempos de vida útil, comprometendo os proprietários com o depósito no termo da sua utilidade. Uma espécie de banco ambiental contra a poluição.
O mais importante será socializar e politizar a questão ambiental, e que a problemática faça parte do domínio doméstico das preocupações existenciais de cada indivíduo. A lei do frigorífico, enquanto exercício exemplar, poderá servir de nota de lembrança para as transgressões ambientais, e fazendo uso de um efeito de spill-over, estaremos a contribuir para a tomada de consciência da importância do ambiente.
Outra forma de induzir o respeito pelo ambiente, poderia materializar-se na criação de um cadastro ambiental que registasse as transgressões em relação ao ambiente, perpetradas por cidadãos ou empresas. Depois, num segundo momento, a informação resultante do cadastro seria cruzada com o sistema fiscal no sentido de penalizar os prevaricadores em sede de IRS ou IRC.
Uma das grandes dificuldades que Portugal encara, prende-se com um sentido de orgulho nacional fortemente dependente da expressão física da riqueza. A intelectualidade em Portugal é rejeitada porque integra uma dimensão não materialista e porque colide com aquilo que poderemos designar por ‘expressionismo’ físico. A afirmação social pode no entanto levar a que se faça a dupla demonstração do nível cultural e o grau de riqueza, através da compra de tomos de enciclopédias com lombadas douradas que têm lugar cativo nas estantes das salas de estar, e que fazem o regalo de observadores pouco exigentes.
Uma interpretação parcial do próprio significado ou alcance da era de informação pode conduzir-nos a um juízo reducionista definido em termos de atributos logísticos ou de transporte de informação, através do qual se atribui maior importância à rapidez da entrega de mensagens ou conteúdos. Os excessos de velocidade que se registam nas estradas portuguesas e que conduzem a acidentes desnecessários, encontram analogia na forma como se transportam conteúdos na era de informação. Uma noção ecológica e cultural poderia estabelecer uma hierarquia na escala de valores de informação, o que significa que os produtores de informação devem procurar obedecer a critérios de qualidade, objectividade, veracidade e não necessariamente a rapidez. Nessa medida, um país ecológico investe no terreno fértil do conhecimento e cultura, e na educação dos seus cidadãos, que representa sempre um processo lento e geracional. A era da informação poderá tornar-se numa era de conhecimento se um plano tecnológico não for vendido como destino final, mas um elo de um processo muito maior. O esforço de prossecução de equilíbrio ambiental associa-se inequivocamente à ideia de paridade entre as dimensões intelectual e cultural, relegando para segundo plano a tecnologia e a ideia de vanguarda.
A excessiva estratificação social do país é também responsável por vários desequilíbrios estruturais e ambientais, incluindo o desnível cultural e intelectual, pela forma como as elites se apropriam dos meios de desenvolvimento à custa do progresso colectivo. Este fenómeno observável noutras sociedades, assume contornos especiais em Portugal porque o ‘povo’ não demonstra capacidade para produzir factores de contrapeso. A não partilha de conhecimentos na sociedade portuguesa constitui uma prática contra-produtiva e geneticamente comprometedora pela forma como contraria a teoria de evolução das sociedades, construída sobre a premissa da comunicação entre os diferentes segmentos ou classes da sociedade. Uma noção, porventura herdada do corporativismo, instigou uma actuação compartimentada, sem trocas ou comunicação efectiva. A experiência de um sector ou domínio dificilmente transborda para um ecossistema distinto, apenas porque subsiste uma atitude conservadora pouco aberta a códigos diferentes. Questionamos se Portugal aproveitou a experiência histórica da multiculturalidade, das línguas e costumes distintos do império colonial. E nesse contexto observamos uma forma de desequilíbrio ambiental histórico. Neste momento o quadro mental de defesa do círculo restrito de conhecimento implica desconfiar continuamente de qualquer tentativa de incursão da parte de elementos excêntricos ou imigrados. Esse quadro social de defesa de interesses específicos compromete um sentido de desenvolvimento alargado e colectivo, capaz de integrar a diferença e a mudança, o que em última análise implica o progresso da sociedade.
Na natureza, as novas espécies resultam da evolução genética forçada pelas condições adversas do meio envolvente. As sociedades, que são macróbios (grandes formas de vida), evoluem através de processos de ruptura e equilíbrio entre os diferentes agentes que as integram. Nessa medida, enquanto a prática da dialéctica entre indivíduos não ocorrer em todos os fóruns e numa sociedade aberta, a ideia, conceito ou as práticas, nunca atingirão um grau de maturação suficiente para se converterem em matéria de desenvolvimento para uma sociedade.
As ideias, ao contrário dos ideais, que nascem na intangibilidade do espírito humano, são também fruto da experiência dos outros, transcritas em obras metodologicamente organizadas e que podem ser alvo de leitura e interpretação. Apenas uma fundamentação sólida do conhecimento poderá permitir ulteriores desenvolvimentos de um ideal de progresso. Se uma sociedade não promove a inteligência e a cultura de forma sustentada estará a contribuir para o desequilíbrio ambiental, pelo défice e peso da representação de uma população inculta ou analfabeta. Ter a expectativa de que a ferramenta tecnológica poderá preceder e estimular o aumento do nível cultural da população é contrária à lógica de desenvolvimento humano, em Portugal ou qualquer outro destino.
A edição mais recente da Monocle inclui um relatório de 64 páginas dedicado a Portugal que aborda temas como o ambiente de negócios, o sector do turismo, a gastronomia, as livrarias, a indústria do vinho, entre outros. Não digam nada é aos ultra-pessimistas crónicos cá do burgo que julgam viver num país subdesenvolvido.
Antes que me atirem dardos; a seguinte manifestação de opinião nada tem a ver com a qualidade ou a substância da missão da companhia teatral a Cornucópia. Tem mais a ver com Marcelo e algumas dúvidas existenciais. O Presidente da República Portuguesa tem de decidir se quer ser um mero agente da sociedade civil ou se um digno titular do cargo público que ocupa. Não pode misturar as peças. Não pode confundir os distintos teatros de operações. E não pode vestir qualquer farda a seu bel prazer. Por mais afectos que nutra pelo seu amigo Luís Miguel Cintra, Marcelo simplesmente não pode fazer uso de prerrogativas institucionais disfarçadas de informalidade e convívio para alavancar soluções que dizem respeito ao putativo ministério da cultura. Mas há mais. Se vai a uma tem de ir todas. Tem de ir às companhias teatrais de norte a sul do país, que com igual empenho e devoção, quantas vezes pro bono, servem a mesmíssima causa e que também se encontram em situação precária, senão terminal. Eu sei que o estatuto de Deus conta muito em Portugal. Que Luís Miguel Cintra é um monstro da cultura e que deve ser protegido custe o que custar. Nada de mais errado. O princípio que parece estar a ser posto em prática põe em causa algumas nuances ideológicas. A saber; que o dinheiro da maioria dos contribuintes deva servir causas parcelares, por vezes despropositadas intelectualmente ou culturalmente, de certos agentes, porque a cultura não é "mensurável" em termos de investimento ou retorno financeiro. O que está ser chorado não é muito diferente da missa do salvamento de bancos privados, a título de exemplo, e sem adiantar mais em analogias. Do lado das cornucópias do país também há críticas a realizar. Os encenadores e directores de companhia não podem assumir cargos de gestão. Não é essa a sua missão. Devem concentrar-se naquilo que sabem fazer. Ou seja, no fogo-cruzado de razões e lamentações que já vai no ar, convém realizar a destrinça entre o efémero e o essencial. Portugal não detém uma visão sustentável e de longo prazo no que diz respeito às artes e letras, e os sucessivos governos ainda estão contaminados com a ideia doutrinamente carregada de que o Estado deve, "a fundo perdido", subvencionar as artes e os devaneios intelectuais que o pobre do cidadão comum mal consegue assimilar. Assim não se educa um povo, e confirmamos assim, que existe aqui alguma perversão. Uma certa intenção tácita em manter o fosso entre as Óperas e os festivais onde deambulam meritoriamente, e dentro do seu género, espécies como Tony Carreira e afins. A discussão é longa e relevante, mas na maior parte das vezes infrutífera. Hoje Cornucópia, amanhã a Barraca. Abana tudo, no fim.
Não é forçoso ler Leszek Kolakowski, e a sua obra-prima Modernity on Endless Trial (The University of Chicago Press, 1990), para descortinar as implicações suicidárias da nossa civilização e o falso mito de universalismo cultural. A praga de festivais que parece ter assolado Portugal faz parte da enganosa premissa de que é possível reclamar uma quota de misticismo existencial, derramar uma boa parte dos problemas de consciência e seguir alegre e contente. O Festival Boom, vendido como templo sagrado da neutralidade materialista, é tudo menos isso. Obedece a um plano comercial, segue um modelo de negócio e concede ganhos aos promotores. Tudo o resto são balelas de um mundo justamente repartido, flashes de um Woodstock fora do seu prazo de validade e promessas de nirvana fast-food. Gilles Lipovetzky e Jean Serroy denunciam no seu livro Capitalismo Estético na Era da Globalização (Editions Gallimard, 2013) a febre da hibridização, a conveniência comercial de uma hydra que combina alegados vestígios de grandeza cultural e democraticidade. Os três ou quatro dias de festival servem contudo um propósito peregrino. Nesses dias de embriaguez, o espírito humano, dizem eles, liberta-se das manchas de culpa, da pressão diária do desligamento das causas maiores e evita-se deste modo o entorpecimento insensível. A passagem por ritos de vazio concede aos participantes uma espécie de certidão, uma prova de vida de que é possível "encontrar o eu" no acampamento, na fila para o "novo" Reiki-electrónico, no repasto à base de pasta do Tibete - a cura filosófica. E persistem ainda outras considerações de ordem mercantil. Na Wall Street dos festivais os ratings parecem contar. Sabemos que o Festival Boom é melhor do que o Festival Bum, sabemos que o Andanças era quase ecológico até aquele fatídico dia rodoviário. Enfim, os organizadores querem e não querem. Querem ser pequenos e familiares, mas o piquenique saiu fora de mão - apareceram 30 mil almas. Mas eu iria mais longe para purgar os diabos que andam à solta. Para arrumar de vez com os dilemas conceptuais; eu proponho um Syrian Boy Festival enquanto durar a situação naquele país. Ou então, façam-se à festa e depois regressem às vidinhas da treta. De qualquer modo estamos condenados. O mundo está cheio de vendedores de grandiosas intenções. Mostrem-me os números. Qual a margem? Quero ver os lucros? E já agora, a tenda de massagens "chinatsu" passa facturas? No entanto, nada disto parece importar. Estes eventos servem sobretudo a fraca intelectualidade que parece ser a norma da nossa civilização. Convém entorpecer a geração que deveria ter algo a dizer em relação ao destino das nossas civilizações. Em vez disso curam a ressaca e regressam a casa. Não vejo luz ao fundo do túnel. É outra coisa.
Não são apenas os lideres deste país que jogam contra o seu país. São os próprios jogadores. São os homens e mulheres das artes e letras. São os banqueiros. São os comentadores. São os jornalistas. São os empresários. São os taxistas. São os académicos. São os construtores civis. São os poetas. São os professores. São os funcionários públicos. E provavelmente são alguns bloggers. Existe sempre, em cada uma destas categorias ou classe profissional, um melhor do mundo, um campeão. Sim, jogo à defesa. Naturalmente. Para cada frase ou pensamento que tenha, espero que haja melhores - melhores frases e melhores bloggers. Mas não é apenas em categorias perfeitamente definidas que o bicho do "melhor do mundo" corrói. Na própria matriz social quotidiana de Portugal existe há séculos um certo menosprezo compatriota, doméstico. Não é fácil encontrar quem caminhe ao nosso lado enquanto "igual" com as "mesmas" chances de se superar a si mesmo. São sempre melhores. Ou uma lástima. O síndrome da Islândia já vem de longe. Existe uma tendência intensamente contraproducente para Portugal ser o seu pior inimigo. Mas desta vez nem Marcelo nem Costa ajudaram. Em Paris assinaram por baixo desse complexo de inferioridade. Repito, não existem melhores nem piores do mundo. Existe vontade, determinação, humildade e 300.000 habitantes. Ou existe presunção, descontracção, sobranceria e 10 milhões de cidadãos. Portugal resiste a interpretar o mundo do modo como este merece ser interpretado. Não existem povos eleitos. Nem aqui, nem na China, nem nos EUA e de certeza que na Islândia não. E não interessa quem são os nossos pais.
Inaugurou ontem a exposição de fotografia de Isabel Santiago Henriques. A não perder.
Abraça-me Chiado!
Poderemos afirmar, sem grandes reservas, que o Chiado é um dos filhos primogénitos da cidade de Lisboa. A capital, embora repartida por bairros distintos, nutre um carinho especial pela atmosfera pessoana deste enclave traquina. É aqui que o lado jocoso cruza a ambição lírica. É aqui que um certo abandono demonstra a fugacidade da vida. E porventura será neste domínio que deambulam os melhores enquadramentos cénicos, as melhores propostas de enredo natural. E Isabel Santiago Henriques pressente esse código, e assume a missão de voyeur, discreta mas incisiva, e célere na captação do que foi ou do que poderia ter sido. Ao longo deste diaporama de histórias inacabadas, somos alimentados com indícios suficientes para imaginar o resto, aquilo que extravasa a fotografia e invade outras artes de representação, pose e desilusão. As imagens coladas numa dispersão intencional não devem ser lidas como uma proposta linear, encadeada pela razão que procura uma coerência amestrada. Santiago Henriques opera na clandestinidade da imagem estática, sem martirizar por completo o conceito de beleza que domina o espírito contemporâneo. Vivemos uma época de feixes rápidos, alternâncias de vidas, suplentes dispostos a trocar a camisola pela identidade alheia. Aqui, neste ensaio, registamos a contradição dessa limpeza estética. Os actores que se apresentam tecem movimentos e esboçam emoções avulso. A sua captura, e a sua elevação à pequena eternidade da impressão fotográfica, confirmam a escala humana de Santiago Henriques. Não houve ampliações desmedidas nem altercações de estilos. Os quadros que se apresentam são idóneos. Respeitam-se nesse quotidiano que se nos passa à frente todos os dias, e à noitinha quando elas também acontecem em sonhos ou devaneios de loucura, elucubração. Como o motociclista amadurecido distraído pela derme da pequena que esbarra nesse táxi malparado que não vimos também. Como o trio de haterónimos que desconhece as dores de articulações de Pessoa. Como o gingão que trabalha a altas horas da noite para apaziguar o bronze. Tudo isto e muito menos – a panóplia de frames descartados pela selecção, a sucessão de imagens que se alternam. Abraça-me Chiado é envolvente, promissora - a dama que insinua e diz que chega sempre a horas.
Bio
Isabel Santiago Henriques nasceu em Aveiro em 1960. Cresceu rodeada de máquinas fotográficas e de filmar do seu pai, envolta por dezenas de álbuns e bobines de filmes que a mãe meticulosamente organizava, um hobby que mais tarde viria a levar a sério. Estudou no Liceu de Aveiro, mais tarde numa Escola privada e na Universidade de Lausanne. Trabalhou nas empresas comerciais fundadas pelo seu pai durante mais de 20 anos. Em 2010, já a residir em Lisboa, inscreveu-se num curso de fotografia e fotojornalismo dirigido por Luiz Carvalho que levou a cabo entusiasticamente durante 3 anos. Nunca mais largou a fotografia, e ficou a trabalhar com Luiz Carvalho como assistente de realização no programa Fotografia Total da TVI24 ao longo de 4 anos. Assume Luiz de Carvalho como o seu Mestre, a inspiração, a fonte inesgotável de conhecimento e aprendizagem – e um grande amigo. Isabel Santiago Henriques vai mais longe: devo-lhe tudo o que sei sobre fotografia. Apaixonada por política, fotografa os mais diversos eventos do CDS. Tem 3 filhos, o Diogo o André e o Tiago.
„A fotografia que mais me absorve é a street photography"
São sumamente divertidos os subterfúgios e "reconstruções da história" que os responsáveis por alguns sectores sempre arranjam para florear um dado acontecimento. Vem isto a propósito do centenário do Museu Nacional Grão-Vasco e das declarações hoje proferidas à RTP pelo seu diligente director.
Muito política e artisticamente foi dizendo que se trata de um museu da república, com um suspiro afirmando através de truque oratório, ser na sua prática totalidade constituído por bens flagrantemente roubados à igreja logo após a coisa de 1910, ou seja, algo a juntar-se aos milhares de livros antigos despedaçados, rasgados de norte a sul de Portugal e que serviram para embrulhar castanhas, enquanto outros ardiam em autos-da-fé em ruas, praças e vielas deste país. Claro que outros foram parar a colecções privadas e vão de vez em quando miraculosamente reaparecendo em leilões da especialidade para venda a bom preço.
Isto é transversal a todo o património, tal como o grotesco e ainda recente caso do ceptro fúnebre de D. Pedro IV, hoje no Palácio da Ajuda, é demonstrativo deste tipo de mazela nacional.
Roubados foram os conventos - numa antecipação daquilo que em 1975 aconteceria na Embaixada de Espanha, muitos houve que se locupletaram escandalosamente com o saque -, despedaçadas e atiradas às fornalhas foram para sempre perdidas incontáveis obras sacras em talha, ao mesmo tempo que eram em plena rua sovados padres, esfaceladas ficaram as suas vestes talares, publicamente rapados foram os seus crânios, tal como 25, 34 ou 35 anos depois se veriam em cenas de pré e pós guerra mundial.
Nada de novo, entre umas resmas de Mirós, este país é mesmo um antro de gente de cultura exemplar.
Estamos de acordo em relação ao seguinte: o mundo é plano (Thomas L. Friedman tem razão), mas como poderemos estabelecer um critério de defesa da identidade cultural de um país, quando a mesma é uma amálgama de influências e estilos? Para acabar com esta incursão de "comida rápida" teríamos de ser coerentes e excomungar outros vícios. A saber: essa nefasta praga de festivais de rock; as calças de ganga rasgadas pelas nalgas; as tatuagens e piercings de umbigo; as passadeiras vermelhas de uns globos de ouro (versão manhosa do red carpet de Hollywood); os bonés de hip-hop e os cumprimentos ritualizados que envolvem encosto de punhos e "tá-se bem"; revistas tipo Vanity Fair, mas chamadas de Cristina e afins ou os surfistas e toda a sua parafernália de moda e estilo. Enfim, o lápis vermelho não é seguramente o baton da Catarina Portas. Quando a senhora empresária decidir internacionalizar a sua "vida portuguesa" para uma rua confinante à Times Square em Nova Iorque, o que dirão os porto-riquenhos que já tomaram conta do bairro italiano? Pasta medicinal Couto?
Paulo Tunhas, Portugal no país da Cultura:
Estas delirantes pretensões dos nossos locais apóstolos da arte e cultores do espírito não mereceriam qualquer atenção neste mundo feito de muita loucura, não fossem elas revelarem um fenómeno assaz singular: a total incapacidade da gente da auto-designada Cultura de pensar com o mínimo de isenção – quer dizer: com o mínimo de pertinência – a coisa política.
Sobre os alegados representantes da cultura - especialmente aqueles para quem a cultura "é o apoio do Estado" - que apoiam António Costa, relembro um post do Maradona:
"Todo o merdas que em Portugal culturaliza para viver só é habitado por motivos estratósféricos, quase assistencialistas para com Portugal e os portugueses (...)
As pessoas da cultura parecem estar isentas do imposto social que é o pudor, o decoro e a vergonha; mas se o não têm, ou se por elitismo (em cujo valor e importância, adiante-se, acredito, e defendo) não acham possível ser hipócrita ao ponto de os simular e exteriorizar, porque é que, ao menos, não estão calados, caralhos ma'fodam? Porque é que não deixam ser quem ambiciona poder consumir cultura em Portugal a mover-se para extrair do Estado os recursos que alimentem o que consideram essencial para si? Que sejam discretos, ao menos, é impossível? Que se defendam, inclusivamente, que nos defendam, mas sem nos esfregar nas trombas a auto-importância que se atribuem. Será pedir muito?"
Portugal é um imenso mar de listas VIP. A expressão Very Important Person é apenas uma outra forma de tráfico de influências, corrupção, se quiserem. Em todos os sectores da sociedade portuguesa existe uma lista VIP. Nas artes e letras, na moda Lisboa e arredores, na banca, na academia e porventura na Autoridade Tributária. E o problema que aflige a nação é que a grande maioria dos seus cidadãos deseja fazer parte da guest list. O mérito que está associado ao VIP vai, deste modo, directamente da sarjeta para o esgoto. Em quase todas as instituições que povoam este país, as práticas são ditadas pelo estabelecimento de um aparelho forte - um conjunto de insiders aprovados em sede de troca de favores e privilégios. Os VIPs tornam-se assim associados importantes para os quadros de poder vigentes. E é isto que está em causa na revisão comportamental a que o país está obrigado. Mas encaramos um grande problema. Ser VIP é fashion. É outro modo de dizer ao compatriota que se é melhor, que se tem um contacto privilegiado. É outra maneira de dar ares de estatuto social, de dinheiro, de património. É ainda um modo de dissimular a profunda ignorância que vinca as faces daqueles que não se interessam pela intelectualidade ou pela cultura, cujos pais honrados até nem sabiam ler nem escrever. Esta síndrome de Vipismo contamina o país há décadas, senão séculos. O macróbio de Castelo Branco, encarcerado em Évora, pode, se desejarmos, corporizar a expressão máxima desse mal. É um VIP ao quadrado, bestial.
Não sei quem é Rui Mourão, nem quais os seus dotes artísticos. Apenas posso basear-me nos factos que ele e os seus colaboradores apresentam neste triste espectáculo (veja o clip). Estes meninos não passam de crianças com uma ideia muito ténue de como se organiza a actividade cultural num país civilizado. O protesto infantil que levaram à "cena" no Museu do Chiado envergonha toda uma classe de criadores. É isto o melhor que conseguem? São estes os putativos agentes e representantes da cultura em Portugal? Estes protagonistas cheios de gás, nem sequer são capazes de desenvolver um conceito em forma de protesto, quanto mais pensar a cultura de uma nação. Poderiam ter aproveitado a residência de Otto Muehl no Algarve para aprender algumas técnicas do movimento Accionista. Esta malta demonstra que tem uma ideia muito deformada em relação às artes e à cultura. Querem mamar e estão equivocados: pensam que existe uma grande vaca para ser ordenhada a seu bel prazer. No fundo, estes "ostracizados" pelo regime do dinheiro e subsídios, desejam ser o mesmo que os bancos e instituições financeiras da praça, ou seja, receber guito para salvarem o seu coiro. A cultura e as artes, tal e qual como o cultivo da batata, obedece a uma mesma lógica de mercado. Se o produto não é de qualidade (por exemplo, está podre) o consumidor não compra e não alimenta a sua actividade, não cresce e compromete a sua mera existência. Em que planeta vivem estes artivistas? Rui Mourão exige mais dinheiro? De quem? Dos contribuintes menos intelectuais e culturais, como os serralheiros e enfermeiras de turno? Será que estes manifestantes são especiais de corrida e merecem tratamento diferenciado? Porquê? Porque irão tirar da ignorância profunda e das sombras o resto da população? Meus amigos, o que isto é? A vida boémia e festejaleira nada tem a ver com a disciplina, o rigor, o método, o saber, o critério, a exigência, a profundidade conceptual que estão associados ao acto criativo e ao seu sucesso. Já chega. Tiveram tempo e dinheiro em abundância nos últimos quarenta anos para experiências falhadas. Tiveram todas as liberdades criativas do mundo para se fazer aos palcos e salas de exposição e vender soluções ganhadoras. E não foi isso que fizeram, não foi isso que aconteceu, não foi isso que conseguiram. E tenho muita pena. Mas não é assim que funciona. Para caminhar usam-se os pés e não se agitam os braços.
Estive recentemente em Castelo Branco. Cidade do interior sobre a qual tinha vaga e longínqua impressão não muito distante da Guarda onde a presidência da república foi já por duas vezes comemorar o dia de Portugal. Fui e gostei. A mesma luz raiana das cidades da estremadura o vagaroso tempo dolente estimulado pelo clima agreste e serenado por alamadas frondosas. À parte uns arremedos progressistas, fruto da mentalidade «autarquista» que nos anos 1980-90 semeou o país de mamarrachos, rotundas e vielas asfaltadas, Castelo Branco parece uma cidade congelada na década de 1970. Dir-se-ia que à primavera marcelista não houve verão quente da urbanização. E assim, dolente como o calor que se fazia sentir, percorri as ruas de uma cidade repartida entre o traçado medieval e a expressão de um vago progresso estado novista.
Mas o que realmente me chamou a atenção em Castelo Branco, para além do facto de ser a pátria do grande Amado Lusitano, foi um par de estruturas ligadas à arte. Nâo me refiro ao recém inaugurado Centro de Cultura Contemporânea (a designação é feliz, pois farta já a denominação museu) que se impõe mais como objecto do que como edifício. De resto, este tipo de empreendimento ganharia muto mais em assumir-se como obra de arte e menos como repositório da mesma. Note-se que nem cheguei a entrar naquela inusitada estrutura por lhe não encontrar a porta de acesso. Foi melhor assim. O que primeiro me chamou a atenção foi realmente o Museu Cargaleiro.
Oculto no velho traçado medievo o conjunto de espaços ocupados pelo museu acaba por impor-se como um dos locais a não perder na cidade. Sempre me fascinou a obra de Cargaleiro pela capacidade de criar a partir da cultura portuguesa, um género artístico legível fora das nossas portas. Desde sempre me deliciei com as estações de metro de Lisboa, onde a cor, palavras e as figuras de Manuel Cargaleiro entretêm na monotonia e no ramram da viagem mecânica.
Fui a Castelo Branco, sem pensar em Cargaleiro e isso perturbou-me à medida que percorria as salas do museu. Como é possível que nós portugueses, acorramos a Amsterdão, Paris, Madrid e Londres para apreciarmos grandes nomes internacionais e não sejamos capazes de propositadamente vencermos a interioridade nacional para procurarmos a obra de Cargaleiro? Aliás, como é possível que o Museu Nacional de Arte Antiga ceda à pressão de alugar parte do protagonismo do Prado num tempo em que uma viagem low cost Porto-Madrid ou Lisboa-Madrid custa menos que um bilhete de comboio e uma entrada na exposição e que, como museu nacional, não se preocupe em promover ou descobrir novos ou velhos talentos da arte portuguesa?
Esta distância entre o que temos e o quanto dependemos dos outros não é uma questão de orçamentos de estado, empréstimos externos ou servilismo partidário. É hábito.
E quando se fala na necessidade de criar riqueza, geralmente esquece-se que estamos a matar a galinha dos ovos de ouro: a criatividade. Não é por acaso que criar e criatividade têm a mesma raíz. Continuamos a recursar a capacidade de nos renovamos criativamente com o que temos, como o fizeram e fazem António Nobre, Forjaz Sampaio, António Variações, Carlos Paião, Agostinho da Silva, Paula Rêgo, João César Monteiro, João Botelho e outros tantos a quem o destino (fado) português rejeitou no imediato.
Renovar-se e recriar-se não é o mesmo que pintar galos de barcelos com os tons do arco-íris ou fazer esculturas com tachos de alumínio ou rendas de croché - isso não é recriação, nem talento, tão-só e apenas laivos de imaginação e oportunismo.
Reinventar a cultura portuguesa, para o que de resto já contribui em parte da nossa geração modernista é, em primeiro lugar, entendê-la, depois absorvê-la e finalmente apresentá-la numa leitura universal que nunca pode ser a-histórica. O nosso presente é o nosso passado e é impossível fugir-lhe.
Quando aprendermos a gostar de nós, pode ser que o novo Brasil ou esteja em Castelo Branco. Sem grandes discursos ou comendas. Infelizmente para isso não é só regime que precisa de mudar, são os homens que o gerem.
P.S. Terão reparado com certeza que tendo referido um par de estruturas, apenas me referi a uma, o Museu Cargaleiro. A outra é o belíssimo jardim do Paço Episcopal, sinal de tempos em que Portugal não tinha interior, nem litoral. Apenas centros culturais de gente com bom gosto e visão.
De Afonso Henriques a Zeca Afonso, e independentemente de preferências ideológicas, o caminho da liberdade de expressão em Portugal não foi certeiro. Nesse trilho de opiniões, juízos de valor e preconceitos, muitos regimes de censura barraram as vozes que desejavam fazer ruir o atavismo em nome de uma nova ordem, desconhecida, mas certamente melhor. No entanto, as cancelas que colocaram sobre as vias nem sempre foram políticas. Muitas das vezes foram culturais. Barreiras interpostas por agentes culturais, auto-proclamados superiores, e que supostamente iriam agir em nome do interesse colectivo, da sociedade. A explosão democrática de 1974 libertou os discursos enclausurados, mas, quase simultaneamente, consagrou a expressão de práticas corporativas. Em quarenta anos de direitos, deveres, liberdades e garantias, os libertados apropriaram-se dos vícios e defeitos endémicos daqueles que quiseram derrubar. A inexistência de lobbies perfeitamente estabelecidos levou a que um sem número de confrarias das artes e letras, ciências e práticas empíricas florescesse na sombra do consentâneo, para promover os interesses e defender os privilégios dos seus "associados". A revolução, perspectivada a esta distância, e com a devida parcimónia ideológica-partidária, serviu para dar a volta completa e chegar ao estado semi-consciente do presente marasmo. Na grande algazarra da desorientação, responsabilidade e culpas por atribuir, Portugal pode se orgulhar da conquista do megafone com o 25 de Abril. Qualquer indivíduo ou colectividade, pode, como mais ou menor jactância, levar ao rubro da sua oralidade a reclamação ou a discordância. Qualquer mensagem ou pseudo-mensagem pode ser veículada. Nesse processo de derrame mental, a profundidade de pensamento, a fundamentação e a reflexão séria, foram comprometidas. À emissão ruidosa segue-se a resposta visceral, pequena. O discursante, embalado pela razão, não necessita de poleiros determinados institucionalmente. Aproveita o local e a hora que quiser para reagir como bem entende. Observámos ao longo destes últimos anos que as manifestações tomaram as ruas, inundaram os blogues e as redes sociais, mas não foram capazes de contagiar o derradeiro bastião da transformação - os orgãos políticos e de soberania da república portuguesa, que não têm grande interesse em alterar o seu comportamento. Ao mesmo tempo, convenhamos, os "grandes pensadores" de Portugal estiveram ausentes do país. Desligaram os motores e deixaram andar as carruagens até chegarmos ao destino em que nos encontramos. Os titulares de cargos públicos, criteriosamente colocados nessa posição pelo povo português, não quiseram interpretar convenientemente os sinais urgentes que emanam da sociedade. O governo, a oposição, a presidência da república e os tribunais constitucionais, fazem uso, para garantir o status quo, de um conjunto de regras tácitas de equilíbrio relativo, de permanência. Nenhuma das partes envolvidas desarma por completo, nenhum dos agentes quebra as suas convicções, porque sabe, que qualquer que seja o resultado, permanecerão sobre o tabuleiro da conveniência, dos interesses económicos e financeiros, da alternância entre as mesmas opções políticas onde não impera o pensamento, a grande filosofia das sociedades. Portugal está enleado numa discussão de trânsito, em tira-teimas à novela mexicana, em mexericos de ocasião e, perde, para seu mal, uma perspectiva de futuro que seja abrangente, válida e sustentável. De Fernando Tordo a Alexandra Lucas Coelho, o espectador deixou-se distrair pelas figuras de estilo e pelas bofetadas mediáticas, em vez de se concentrar no fundamental, naquilo que trará benefícios ao país, aos milhares de desempregados que estão a leste destas moelas deploráveis. Os paladinos da inteligência querem lá saber da arraia miúda. Esses privilegiados pela coluna de opinião e pela obra didáctica, podem ostentar as cicatrizes da ofensa ao seu bom nome, mas tudo isso não passa de narcisismo, de importância excessiva atribuída às causas erradas, ao seu umbigo, enquanto Portugal passa mal. E assim Portugal não passa de um fado - um triste fardo.
Esta história dos ajustes directos, das contratações de artistas no panorama cultural nacional, faz parte da mesma patologia de prevaricação e promiscuidade que minou o sector da banca e a política. Deixemo-nos de ilusões. O tráfico de influências, os favores prestados enquanto divisa para futuras transacções, faz tanto parte da política como das artes e letras. A novela do Tordo deve servir para abrir a caixa de Pandora. Uma vez que o país está obrigado a pôr tudo em pratos limpos, uma auditoria total e irredutível é o que o cidadão português deve exigir. O contribuinte que anos a fio contribuiu para as extravagâncias decididas por autarcas, presidentes de institutos e ministros da cultura merece saber toda a verdade. O dinheiro dos contribuintes foi gerido de um modo equilibrado ou não? Houve favorecimentos? E foram prestadas contas? Os mesmos doutos e iluminados que agora se queixam do atraso cultural do país, acabam por morder a sua própria cauda. Ao declararem o seu estatuto de alegada elite confirmam que foram incapazes de servir a massa amorfa e inculta. Foram incompetentes na sua missão de partilha de cultura. Ou seja, o círculo iluminado de intelectuais é a cidade e o resto é paisagem. Que se avance com uma auditoria das contas da cultura nos últimos quarenta anos. Seria simpático saber que critérios intelectuais ou culturais foram usados. Que artistas beneficiaram do encosto de ombros ideológicos ou partidários. Parece pairar em Portugal uma certa noção de que os criadores artísticos devem ser poupadas porque é tudo tão subjectivo, é tudo tão volátil e relativo - é arte. Como se fossem intocáveis. Passemos então de Tordos a Represas, de Instituto Camões a Planos Nacionais de Leitura, de fundações disto e aquilo, de grémios a teatros, de criadores a marionetas, e, em nome da transparência, que afinal uma Democracia exige, façamos as contas dos dinheiros gastos e tiremos as devidas ilações. Não vejo razão para que o sector das artes e letras beneficie de um estatuto de imunidade ou impunidade. Já se sente no ar algum desconforto dos principais agentes culturais deste país. Começam a ripostar, a se tornar hostis à luz de um conceito de averiguação que lentamente começa a emergir e a implicá-los. Se é tudo tão límpido quanto aparentam, então que se apresentem sem medo - quem não deve não teme. Não é assim?
A cultura de direita em Portugal:
"Contudo, esse «vencidismo» já se começa a projectar em alguns jovens intelectuais de direita que, sendo novos, envelheceram rápida e interiormente, devido a Portugal, o «da vidinha» de O’Neill, o Portugal «questão que tenho comigo mesmo». São muito mais cosmopolitas do que a geração precedente (já nem encomendam livros na Amazon, lêem-nos directamente no Kindle), falam e escrevem à vontade em inglês, a língua franca universal, têm redes de sociabilidades à escala mundial, tiveram experiências de estudo mais ou menos prolongadas na Europa «civilizada» ou nos Estados Unidos. Mas, à semelhança de todos os intelectuais do passado, é uma fatalidade serem incapazes de se libertarem de Portugal, feira cabisbaixa, mesmo quando se fixam no estrangeiro. Assim, como o horizonte que olham é sempre o da pátria, pátria onde não se revêem mas de que não escapam, o seu destino será idêntico, ou pior, do que o da geração precedente. É que esta última ainda tinha empregos seguros no Estado e, agora, pensões de reforma, talvez não tão seguras. Agora, a pulsão da raiva geracional será muito forte. Portanto, é provável que estes jovens tenham a mesma sorte de um Miguel Esteves Cardoso ou de um Paulo Portas. Na melhor das hipóteses, vão acabar a escrever colunas em jornais ou irão tornar-se ministros de Estado. Entre um e outro destino, não sabemos qual será o melhor – ou o pior."