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Teria de ocupar o tempo doutra maneira, estava visto...
Chamou o malhado para junto de si, e logo o cãozito veio, de cauda a abanar. Confiável, o malhado!
E até que a noite começou a cair, por ali ficou, a ouvir os pássaros, a rir com as brincadeiras do malhado, a chamar as ovelhas que ameaçavam tresmalhar-se... Era nestas alturas que mais sentia a falta do livro.
A Carminda é uma daquelas mulheres minhotas que me parecem guardar nas veias um pouco do sangue da Maria da Fonte.
Tal como a minha mãe, não pôde ir além da 3ª Classe na Escola, por ser preciso o seu contributo para o débil equilíbrio da economia familiar. Depois de " servir " nuns senhores que por cá tinham uma quinta, agarrou no modo de vida da mãe: criava frangos e coelhos que depois vendia porta-a-porta. É o que ainda hoje faz, 62 anos depois de ter deixado a Primária, nunca mais tendo pegado num livro, e só usou a esferográfica para escrever o nome no BI ou noutro documento ( "- mas olhe que tenho uma letra bonita " ).
Há dias dizia-lhe da minha admiração pela facilidade com que fazia contas: nunca ela se enganou na hora de receber a justa paga pela " bicharia ".
" E sabe porquê? Porque nunca esqueci a tabuada aprendida de cor e salteado; agora, os meus netos só sabem fazer uma continha pequena na máquina. Se a esquecem em algum lado ficam logo à rasca...".
Deixe Carminda, disse-lhe eu, porque agora vai mandar nas escolas um senhor que, entre outras coisas boas, vai proibir o uso dessas máquinas nas aulas; os seus netos vão ter de aprender a tabuada.
" - Bendito senhor! disse então a Carminda; olhe que ainda há dias um deles, que já anda adiantado na escola ( oitavo ano, respondeu-me quando lho perguntei ), não me soube dizer quantos quilos tem uma arroba; ora toda a gente sabe que uma arroba é o mesmo que 15 Kg - se tem jeito!... ".
A soldado desconhecida
Josefa, 21 anos, a viver com a mãe. Estudante de Engenharia Biomédica, trabalhadora de supermercado em part-time e bombeira voluntária. Acumulava trabalhos e não cargos - e essa pode ser uma primeira explicação para a não conhecermos. Afinal, um jovem daqueles que frequentamos nas revistas de consultório, arranja forma de chamar os holofotes. Se é futebolista, pinta o cabelo de cores impossíveis; se é cantora, mostra o futebolista com quem namora; e se quer ser mesmo importante, é mandatário de juventude. Não entra é na cabeça de uma jovem dispersar-se em ninharias acumuladas: um curso no Porto, caixeirinha em Santa Maria da Feira e bombeira de Verão. Daí não a conhecermos, à Josefa. Chegava-lhe, talvez, que um colega mais experiente dissesse dela: "Ela era das poucas pessoas com que um gajo sabia que podia contar nas piores alturas." Enfim, 15 minutos de fama só se ocorresse um azar... Aconteceu: anteontem, Josefa morreu em Monte Mêda, Gondomar, cercada das chamas dos outros que foi apagar de graça. A morte de uma jovem é sempre uma coisa tão enorme para os seus que, evidentemente, nem trato aqui. Interessa-me, na Josefa, relevar o que ela nos disse: que há miúdos de 21 anos que são estudantes e trabalhadores e bombeiros, sem nós sabermos. Como é possível, nos dias comuns e não de tragédia, não ouvirmos falar das Josefas que são o sal da nossa terra?
Por FERREIRA FERNANDES, Diário de Notícias
Quando olhou a fotografia, recuou um tempo e foi buscar ao fundo da memória aquelas tardes de doce vaguear, em que, depois dos trabalhos escolares feitos, tinha todo o tempo do mundo, e nele encontrava tempo para fazer tudo de que gostava.
No campo cheio de florinhas brancas e amarelas encontrava sempre o sítio ideal para se entregar à leitura, até que o cantar de um pássaro a fazia fechar o livro, para o olhar entre os ramos de uma árvore ou junto ao rio que por ali passava.
Pouco depois era uma borboleta que lhe distraía o olhar: uma daquelas borboletas muito coloridas, que nunca mais vira.
Agora a Primavera estava à porta, mas passava as tardes enfiada no escritório.
Não podia esquecer-se de mandar ampliar a fotografia: tê-la na parede, em frente, seria a forma de estar sempre entre as flores, e junto ao rio.
que andava de porta em porta a vender os tecidos que lhe enchiam a carroça. Parava o burro no largo frente à igreja, e apregoava:
- Venham ver, minhas senhoras. Lindas chitas para blusas e vestidos, e bom cotim para fazer calças para o patrão!
O mulherio acorria todo, num ambiente de festa, pois não se sabia quando é que o velhote voltava à aldeia; talvez só daí a seis meses...
E num abrir e fechar d'olhos a mercadoria desaparecia, vendo-se o fundo da carroça, agora vazia.
Despedidas feitas: - Daqui a uns tempos aqui me têm de novo, com as últimas novidades...-, e o homem dando uma palmada amigável no animal, segredava-lhe: - Vamos Gaspar, que já ganhámos o dia...
Chegada a altura do filho seguir as pisadas do pai, o velho, virou-se para o rapaz e disse-lhe: : - Não agora tu já não precisas de andar de terra em terra com a carroça. Amealhei o necessário para comprares um lugar na feira da vila, e é para lá que tu vais; onde é que já se viu filho meu andar a vender chitas pelas portas...
Fora com as duas mãos que agarrara o convinte dos amigos dos pais.
Era Junho, e estava mesmo precisada daquelas férias. Toda a tarde vagueara por entre searas verdes , mas que, pelo que lhe haviam contado os seus anfitriões, depressa se tornariam douradas. Ia neste pensar, quando pela frente lhe surgiu uma casa abandonada que logo lhe lembrou a casa da Menina dos Rouxinóis, que encantara Almeida Garrett; também ali havia uma janela, coberta de verdes trepadeiras que lhe atiçava a imaginação. Como o escritor, interrogou-se quem teria lá vivido. Mas não viu ninguém que pudesse satisfazer-lhe a curiosidade. O sol começava a pôr-se já, e achou por bem encetar o caminho de volta, mas a sua cabeça ia conjecturando segredos guardados para sempre por aquelas paredes.
Não era a primeira vez que o genro vinha de Lisboa, com a sua filha, com quem casara havia já cinco anos, passar aquele dia e noite de 31 de Dezembro à aldeia trasmontana. Mas este ano a excitação era maior, porque com eles vinha o seu neto de três anos; decerto que nunca vira neve, e tudo estava tão lindo! Estava frio, mas toda a tarde do dia anterior o seu homem estivera a rachar canhotas para alimentar a lareira durante todo o dia e toda a noite. E já verificara um sem número de vezes se nada faltava para fazer daquela passagem de ano uma noite inesquecível, que não os fizesse arrepender de terem aceitado o convite.
Havia muito já que Luís se levantara. Casados há poucos meses, era a primeira vez que passava o Natal na aldeia, lá no alto da serra.
Gostara de tudo. Tão diferente do que estava habituada: a grande lareira acesa todo o dia, os preparativos para a ceia, a alegria à mesa tão grande...; mas mais do que tudo, aquela tradição de os aldeões irem, alumiado o caminho escuro por uma lanterna, de casa em casa chamar os vizinhos para a missa do galo.
Que fosse bem agasalhada : lá fora o vento cortava. Que bebesse um cálice de vinho do Porto, para aquecer...
se divertia a pisar, bem forte, aquele tapete de folhas caídas. De mãos dadas, lembrava-se, a sensação era melhor ainda. Escutar o crepitar. Começaram aí a sulcar juntos as estradas da vida.
Mas agora o Nelo estava longe; que não demoraria, prometera-lhe.
Apeteceu-lhe escrever um poema para quando voltasse, mas tudo lhe parecia tão prosaico: a única rima de que se lembrava era " amores " e " flores - as flores que ele lhe prendia no cabelo... Não, a poesia estava no que sentia, não nas palavras, e isso saberia comunicar ao Nelo. Quando ele viesse; logo que ele viesse.
Ia passá-lo a casa dos avós. Lembrou a última vez que lá fora, com a Primavera a anunciar a sua chegada nas folhas verdes, pequenos rebentos ainda, do centenário carvalho plantado por um antepassado ( a avó dissera-lhe o seu nome, mas não o retivera - havia de lho perguntar... ), à sombra do qual lera aquele livro que tanto a intrigara...; tinha pertencido a esse avô longínquo, oferta de uma noiva que tivera antes de casar, e que morrera quando ambos preparavam o casamento. Não chegara, pois, a fazer parte da família, mas, depois que a avó lhe contou esta história, lido já o livro e decifrada a dedicatória, sentiu-a tão próxima...
para lugar incerto, mas velozes, era prenúncio de carga d'água, pensava a mulher vestida de negro, enquanto aconchegava a si o xaile. Toda a tarde soprara um vento que penetrava no corpo desprotegido. E parecia-lhe que se avizinhava uma trovoada daquelas a que só Santa Bárbara podia acudir.
Apressou o passo, que já sentia as primeiras gotas de chuva. Bem depressa essas gotas deram lugar a uma chuvada forte, e a mulher cobriu a cabeça com o xaile. No caminho, de terra, começavam já a formar-se poças com a chuva, que agora caía com mais força ainda
Sentiu enregelarem-se-lhe os ossos .
Já via a casa, com os dois cães muito agitados, como quem pressente que a natureza está zangada. Lembrou-se então do ramo de oliveira que guardara no último Domingo de Ramos.Em alturas assim, a mãe sempre a ele recorrera. E com o ramo na mão rezou à Santa. Lá fora, os animais ganiam.
carregado de amoras, que o sol de Agosto tinha amadurecido. Lembrou-se então de quando, com algumas amigas, ia por esses montes à procura do negro fruto que, tão saboroso que era, a fazia ficar por ali, esquecida do tempo, até se lembrar que eram horas da janta. E, depois, ainda ouvia a mãe: Nem precisas de dizer onde estiveste. Essas pernas arranhadas pelas silvas, os lábios roxos...; depois não te venhas queixar de dores na barriga, ou de que não tens fome.
Sorriu-se e não resistiu a tirar uma amora, a que se seguiu outra, e outra, e...
Parou o carro e, descalçando-se, foi em direcção ao mar, o qual se divertia naquele fazer e desfazer de ondas que vinham morrer na areia. Há tanto tempo que não enterrava nela os pés....
Uma vontade súbita de volltar à infância, e procurar as conchinhas que ficavam dessas idas e vindas da espuma branca. Um sorriso, ao lembrar-se da alegria então sentida, sempre que encontrava um beijinho de amor, raros que eram...
E foi agachada que repetiu os gestos de outrora; a mão que revolve a areia molhada, como molhado ficou o vestido, quando até ela chegou uma onda mais forte, num exame minucioso, onde não faltava a expectativa; como dantes.
só assim poderia ler o livro que lhe oferecera naquele dia de aniversário.
Depois de ter procurado nos lugares mais óbvios, em vão, decidiu-se pelo toucador - conhecia bem as distracções da avó...; talvez os tivesse guardado naquela pequena gaveta...
Não viu os óculos, mas chamou-lhe a atenção um estojo branco, com rosas cor-de-chá gravadas. Abriu-o e deparou com o leque mais bonito, mais delicado, que alguma vez vira, Em seda cor de marfim, com ramagens da mesma cor em baixo relevo. A avó tinha de contar onde, e quando, o adquirira; parecia uma peça antiga...
Enquanto assim pensava, viu os óculos em cima da cadeira. Agarrou neles e desceu, sem esquecer o estojo do leque.
Na sala, no andar térreo, estava a família toda reunida. Dirigiu-se à avó, a quem entregou os óculos, e, sentando-se aos seus pés, pediu-lhe lhes contasse a história daquele leque, desconhecido de todos os netos.
Que memórias me trazes, minha neta! Este leque deu-mo o teu avô quando fomos em lua -de- mel a Paris.
Uma tarde, passávamos nós numa pequena rua perto da Ópera, quando parámos frente a um antiquário. Encantei-me com este leque, mas nada disse, porque devia ser uma peça cara. Fomos para o hotel, que era quase hora de jantar. Lá chegados, o avô disse-me para subir, que não demoraria : ia só comprar o jornal da tarde...
Com efeito, passado algum tempo chegava com o jornal. Foi só o tempo de mudar de roupa, e descemos para jantar.
Quando voltámos ao quarto, aguardava-me a maior das surpresas - em cima da cama estava o leque, aberto, ao lado deste estojo... .O avô tinha reparado no meu deslumbramento e fora comprá-lo, com o pretexto do jornal...; é quase como se ele estivesse entre nós, neste dia que nunca esquecia...
nem por isso se impediu de confessar à árvore, que sempre a ouvira em silêncio, quase um ombro onde podia chorar as mágoas, a causa da tristeza que a afligia. Estava, ao fazê-lo, ciente de que quando o vento viesse abanar as folhas, estas não conseguiriam esconder-lhe o que lhes segredara; que quando este fosse agitar as águas do rio, também este ficaria a saber do seu estado de espírito, e que quando as andorinhas nele fossem beber, partilhariam do seu segredo.
Mas até se sentia menos só, porque sabia de antemão que o ombro a que se confiara se multiplicaria por muitos, todos eles confiáveis...
assinalava estar-se na estação associada ao calor, mas o Verão comprazia-se naquele esconde-esconde que trazia as pessoas irritadiças, muito por culpa do vento metediço e obstinado.
Aquela era a primeira noite em que o luar, de tão sedutor, a levava através da planície, quase alentejana, onde os pirilampos abriam grandes clareiras luminosas. O cheiro a alecrim...
Rodopiava ao som da melodia majestática que vinha não sabia donde, até cair de cansaço, mas feliz, na erva em que balançavam gotas de orvalho.
A música continuava dentro dela, e deixou-se ali ficar, a olhar o céu estrelado. Que horas eram, não queria saber. Era fim-de-semana dum Verão há muito desejado...
Mas então acontecera aquela tragédia. Esperar que o tempo aliviasse a dor...
Agora, três anos depois, dissera à mãe: ia ser pescador; o tio arranjara-lhe um lugar no seu barco...
Cheia de receios, a viúva do Tónio Mestre acatava a vontade do filho. Fazer o quê? rezar para que tudo corresse bem...
Chegada a madrugada da primeira largada, as mulheres, como sempre, acompanhavam os seus homens à praia, e dentre elas destacava-se o vulto negro da mãe, que tratava, sabe-se lá a que custos, de mostrar um semblante calmo e encorajador.
Enquanto o barco se afastava ergueu os olhos ao céu, numa preçe - Que volte cedo, e bem! - para logo os fixar de novo no mar, onde só se via já, ao longe, um pequenino ponto,como que a suplicar-lhe se mantivesse calmo, como calmo estava agora...
e, enchendo-se de coragem, aproximaram-se, dizendo-lhe que o seu homem não voltava, que o mar o guardara para sempre. Olhou-as, com um olhar alucinado, e chamou-as de loucas; que tinha de pôr-se bonita porque o barco devia estar a chegar, e a areia, onde passara a noite à espera, colara-se-lhe ao corpo - não queria que ele a visse assim...