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A boa vontade e a generosidade de tantos portugueses que nem sequer conhecemos é posta em causa pelas batatas podres ensacadas nas nossas sociedades. Não me refiro a comunidades (onde as forças agregadoras são superiores às de desagregação - lede Ferdinand Tönnies). Essas já deram o berro. Quando vou ao Pingo Doce ou à mercearia do bairro, lá aparece a D. Hermínia, que do alto dos seus 80 anos não ousa pedir que lhe concedam facilidades - aguenta-se na fila com a aura de estertor. Por seu turno, o Telmo que deixou o carro a trabalhar e que tem o filho doente e que perdeu as chaves e que tem a mesma mazela antiga na coxa e que não tem tempo, serve-se desta mesma ficção para defraudar as Donas Hermínias deste mundo. Mas há mais. Há o jovem arrumador que ostenta a única Cergal do mundo ainda fresquinha e que se faz ao tapete rolante da moça-caixa que se sente intimidada pela picada de toxicodependente. Mas isto não tem a ver com classes ou carteira profissional. Como se chama aquele rapaz que lançou aquela triste rede de lojas (?) chamada Amo-te Chiado ou o raio que o parta? Qualquer coisa Pedro Ramos Serranos, ou Ramos da Serra. Há um bom par de anos, a dita celebridade corta-me o caminho e apodera-se do funcionário da FNAC que me atendia justificando o impropério como um: tenho uma pergunta rápida. O problema que se nos apresenta é mais complexo e não se restringe aos idosos, aos deficientes ou grávidas. De um modo geral a procura da vantagem está enraizada na psique colectiva. Acho muito bem que sevícias financeiras sirvam para disciplinar os mais incautos. Quantas vezes não assisti ao insulto, prenho de ofensas, à grávida na fila do supermercado que leu correctamente o placard de fila prioritária? Triste sina esta que confirma o descalabro moral e que implica a mão castigadora de uma entidade alegadamente sem doutrina de fé. A ideologia política não serve de grande coisa para alavancar alibis e razões. O critério diz respeito à essência humana, à alma - à lama. Qualquer dia, quando o aperto for a sério, ninguém acredita. E borramo-nos todos.
São detalhes desta natureza que confirmam o nosso cepticismo. São pormenores destes que moem e causam dano ao conceito de sociedade que idealizamos - o aparelho não é amigo, a locomotiva pouco simpática. Eu sei que é Natal e que esta matéria cai que nem ginjas no bolo do pobre coitado, à porta do Natal dos hospitais, mas este dossiê não aterra no palácio Ratton, para de olhos chumbados, ser reprovado pelos excelentíssimos senhores juízes. Isto da roda não poder andar sobre rodas (sem aviso prévio) é um descarrilamento grosseiro. Um apeadeiro que ofende, insulta e discrimina na mesma passagem de pouco nível. Se tivessem pernas estes (não) utentes, seria para fugir a sete pés de tamanha atrocidade, do país, da vergonha que o magistério de um conselho de administração não tem. Vão dizer que não há orçamento, que a culpa é da crise, que foi a gorda alemã que estragou a estação de comboios, que a assinatura de linha é ilegível, mas a verdade é que a máquina, que supostamente puxa a carga, chocou de frente na dignidade humana, no respeito pelos valores que justificam que alguém se atire para a linha, porque o ar se está a tornar irrespirável.