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Recentemente, Mendes Bota ficou a falar sozinho enquanto a Assembleia da República decidia prosseguir o já lendário esforço de vedar a qualquer discussão racional a questão do Acordo Ortográfico, que tem gerado fortíssimas expressões de descontentamento por parte dos mais diversos sectores da sociedade portuguesa. Permitam-me relembrar o que há pouco mais de dois anos escrevi sobre o Acordo Ortográfico:

 

Não pretendo estender-me numa análise do género da que muitos têm feito, e bem, sobre as incoerências linguísticas do próprio acordo ou os errados critérios e interesses que o norteiam, como Pedro Mexia salientou num excelente artigo publicado no Expresso de 14 de Janeiro de 2012. E não o pretendo fazer porque, antes de mais, fazê-lo é aceitar a existência do próprio acordo. É aceitar que o estado é dono da língua. É aceitar que, sem que ninguém lhe tenha conferido esse mandato, o estado se pode arrogar a possibilidade de fazer o que quer com a língua. No caso em apreço, é aceitar que o estado pode convocar um grupo de alegados iluminados e permitir-lhes redesenhar a língua de milhões de pessoas a seu bel-prazer. Escapa a estes iluminados, provavelmente herdeiros da filosofia cartesiana que incorre no racionalismo construtivista – um ignóbil produto da modernidade que inspirou totalitarismos assentes no princípio de que é possível desenhar ou redesenhar uma sociedade complexa a partir de cima, ou seja, do aparelho estatal – uma coisa tão simples quanto isto: a língua é uma das instituições humanas originada e desenvolvida espontaneamente, i.e., através da interacção de milhões de indivíduos ao longo do tempo. A língua originou-se através da natural evolução humana e é por via das interacções que se registam numa comunidade ou sociedade que se vai modificando, de forma lenta, gradual e sem coação estatal. A língua não é produto nem pode ser apropriada por um aparelho cuja fundação é posterior ao momento de origem da língua da sociedade de onde aquele emana.

 

Por outro lado, no seguimento de uma ignóbil politiquice em que Hugo Soares foi, nas palavras de Isabel Moreira, o "idiota útil" de serviço, que acabou, naturalmente, no chumbo do Tribunal Constitucional ao referendo à co-adopção por casais do mesmo sexo, eis que, ontem, a Assembleia da República, numa votação renhida e com lamentáveis episódios protagonizados por várias bancadas, chumbou o projecto do PS a este respeito.

 

Estou, confesso, um pouco farto da discussão em torno desta temática, onde abundam lugares comuns e argumentos repetidos ad nauseam por ambas as partes em contenda. Se uns não hesitam em chamar outros de homofóbicos, outros logo disparam que então o que se trata é dos direitos dos homossexuais e não do superior interesse da criança - um conceito que, com esta discussão, se gastou pelo uso e começou a prostituir-se pelo abuso. Se uns não hesitam em clamar que os adversários são intolerantes, outros logo ripostam que ser tolerante, em democracia, é saber perder, quando, na realidade, tudo isto tem muito pouco de discussão racional e a vitória agora alcançada foi-o apenas pela razão da força e não pela força da razão. O mesmo é dizer que, na próxima legislatura, em que, muito provavelmente, o parlamento terá uma maioria de esquerda, os que agora clamam vitória terão, para serem coerentes, de aceitar perder perante a mesma razão da força. 

 

Ora, a verdade é que, como Michael Seufert oportunamente salientou em 17 de Maio de 2013, em declaração de voto concernente à votação na generalidade do projecto do PS: 

 

A existência, de facto, de casais monossexuais em que um dos cônjuges tem uma criança adoptiva é uma realidade que levanta problemas reais no caso da morte desse cônjuge. Sendo assim importa encontrar uma solução legislativa. Não deve ser possível que uma família, ainda que uma que normalmente não possa ter filhos, seja desfeita porque, morrendo o pai adoptivo, a criança não tem vínculo com o cônjuge.

 

Comungando desta visão que, em tempos, designei por realista - numa altura em que eu confundi a co-adopção com a adopção, sendo a favor da primeira e contra a segunda -, subscrevo inteiramente o que há uns meses escrevia a Ana Rodrigues Bidarra

 

Se o princípio conservador da prudência deve informar a posição que se tenha em relação à adopção por casais do mesmo sexo, já o princípio, igualmente conservador, de que devemos olhar para a realidade e lidar com esta, não caindo em esquemas utópicos ou em idealismos que não se verificam enquanto absoluto na vida social, parece-me de elementar importância no que à coadopção diz respeito. Trocando por miúdos, gostemos ou não, queiramos ou não, conheçamos ou não casos, a realidade é a de que existem casais em que um parceiro é pai biológico e o outro não o é e pretende constituir um vínculo de filiação de modo a poder prover à criança uma maior segurança no caso de algo acontecer ao pai biológico.  

 

E mais, como também a Ana escreveu

 

Independentemente da opinião que cada um possa ter sobre que matérias são referendáveis ou não, certo é que, em primeiro lugar, efectivamente temos uma democracia representativa e, em segundo lugar, qualquer democracia liberal digna desta qualificação não referenda direitos humanos nem direitos de minorias, como é o caso das pessoas em causa num processo de coadopção.

 

Perante tudo isto, torna-se oportuno questionar como é que se pode qualificar um regime alegadamente demoliberal em que um governo e um parlamento, para além de crerem que se pode fazer evoluir a língua por decreto, fazem ouvidos moucos perante a sociedade civil que se insurge contra uma aberração que dá pelo nome de Acordo Ortográfico, e em que o mesmo parlamento deixa uma minoria desprotegida, nomeadamente crianças que vivem em famílias homoparentais e que apenas têm um vínculo legal a um dos indivíduos? 

 

Permitam-me deixar, de forma deselegante, uma pista, citando a minha própria tese de mestrado (p. 91):

 

É neste contexto que os partidos políticos se tornam meras máquinas ao serviço de interesses organizados, sem que a acção política seja guiada por princípios gerais ou ideais em relação aos quais haja um acordo substancial na sociedade. Segundo Hayek, exceptuando os partidos comunistas que defendem programaticamente uma utopia, os partidos com vocação de poder nas democracias contemporâneas têm programas políticos praticamente iguais, sendo as suas acções também muito semelhantes. A acção destes partidos é guiada para a "utilização do poder para impor alguma estrutura particular à sociedade, i.e., alguma forma de socialismo, em vez de criar as condições para que a sociedade possa evoluir gradualmente as formações melhoradas."1

 

O resultado final desta perversão é um "agregado de medidas que não só ninguém quer, como não poderia ser aprovado como um todo por qualquer mente racional porque é inerentemente contraditório."2 Acresce a isto a paradoxal descredibilização do ideal democrático em função do alargamento da aplicação do mesmo a um número crescente de áreas sociais3, a ideia de que todos os processos de decisão democrática são inerentemente bons em si mesmos e não são sujeitos a crítica, ainda que produzam resultados de que ninguém gosta4, e o já referido levantamento das restrições à acção governativa fundamentadas na eleição democrática5, levantamento que é ainda reforçado pela constante aplicação de políticas em nome da justiça social. É desta forma que chegamos a um estado de coisas em que parece que, de acordo com Hayek, "onde quer que as instituições democráticas deixaram de ser restringidas pela tradição do estado de direito, elas levaram não só a uma 'democracia totalitária' mas em devido tempo até a uma 'ditadura plebiscitária'."6



1 - F. A. Hayek, Hayek, Law, Legislation and Liberty: A new statement of the liberal principles of justice and political economy, Vol. 3: The Political Order of a Free People, Londres, Routledge, 1982, p. 14.

2 - Ibid., p. 6.

3 - André Azevedo Alves, Ordem, Liberdade e Estado: Uma Reflexão Crítica sobre a Filosofia Política em Hayek e Buchanan, Senhora da Hora, Edições Praedicare, 2006, p. 113.

4 - F. A. Hayek, Hayek, Law, Legislation and Liberty, Vol. 3: The Political Order of a Free People, op. cit., pp. 1-2.

5 - Ibid., p. 3.

6 - Ibid., p. 4.

publicado às 16:10






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