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No Dia do provisório Armistício

por Nuno Castelo-Branco, em 11.11.18

 

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Acompanhado por oficiais britânicos, é o quarto militar a contar da direita para a esquerda, na segunda fila. Sempre lhe conheci aqueles bigodes à Kaiser

 

Aconteceu há um século, num tempo cada vez mais distante do qual a memória colectiva portuguesa, desde sempre bastante ténue, apenas retém aquilo que dentro de portas as lendas familiares garantem ou o que os livros dos sucessivos regimes fazem difundir como verdades. Na prática, a participação portuguesa quer-se resumida à necessidade de defender o Ultramar em várias frentes, nisto se notabilizando o soldado Milhais. Ponto final, acabou a história.


Não se duvidando minimamente do esforço e extremado sacrifício individual, a participação de Portugal na I Guerra Mundial ter-se-á devido a vários factores entre os quais surge esmagador e prepotente, o desejo de legitimização internacional da casta política que meia dúzia antes tomara o poder na Rotunda, transmitindo a nova ordem de coisas por telégrafo a todo o país, então do Minho a Timor. 

Já estabelecido em Moçambique numa data tão incerta como o seu alegado nome, José Silva, por vezes vagamente referia as suas origens na zona da Anadia e se a conversa porfiasse, diria também que a família produzia vinhos. Tudo muito enigmaticamente vago, dir-se-ia ter vindo ao mundo na segunda década do século XX, quando nascera muito antes, por altura do Ultimatum. Isto foi durante décadas um motivo para todo o tipo de elucubrações, umas mais fantásticas do que outras, mas todas tendo algumas certezas quanto à sua participação nos acontecimentos que levaram à proclamação do novo regime. 

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Participou na guerra levado na massa da mobilização geral, fosse ela oriunda da Metrópole ou nas parcelas coloniais e logo deixou Lourenço Marques integrado numa das expedições que recentemente chegara com armas e bagagens com o fito de rapidamente fazer boa figura, tomando o considerado não muito difícil alvo que era o então Tanganica germânico, território este já desde 1914 isolado de reabastecimentos e contudo nunca  completamente submetido pelas forças britânicas que se adentraram naquele vasto espaço africano. Tremenda desilusão, pois apesar de todos os esforços, o Tanganica estava muito longe de ser um cenário bélico idêntico ao europeu, tanto na amplitude do espaço como nas condições gerais que condenaram contingentes inteiros à morte por doenças, abandono em postos no mato recôndito ou a mais descabelada inépcia dos comandos militares onde o desinteresse rapidamente se seguiu às atoardas marteladas pelos agentes políticos que compunham as expedições, sendo o representante do regime, o bem resguardado e iracundo governador Álvaro de Castro o cabeça de fila que sem sair de Lourenço Marques ordenava acções completamente desfasadas da realidade no terreno. Saneados liminarmente os oficiais tidos como thalassas que conheciam a verdade acerca do que era possível ou não realizar em África, a confiança política sobrepôs-se à competência militar e em consequência o desastre foi total, absoluto, passando rapidamente os teres e haveres dos militares portugueses a abastecer regularmente o esforço de guerra alemão sob o comando do brilhante oficial que foi von Lettow-Vorbeck. 

 

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O monumento à Grande Guerra 


O bisavô recusava-se a falar da campanha propriamente dita, rosnando entre dentes todo o tipo de palavras que contradiziam as versões oficiais acerca dos acontecimentos e com isto, vindo o Armistício, para sempre se desligou da sorte do regime, continuando os seus afazeres profissionais pontilhados por esta ou aquela tomada de posição, a réstia da sua fidelidade, como a colaboração no erguer do palácio maçónico erguido na Av. 24 de Julho, então o mais imponente edifício do género existente em qualquer um dos territórios sob soberania portuguesa. Preferiu então dedicar-se totalmente às suas funções na Agrimensura da Câmara Municipal de Lourenço Marques, a ele se devendo as medições para o risco ortogonal da parte alta da capital moçambicana. Ali casaria com a minha bisavó que já nascera em Lourenço Marques na derradeira década do século XIX, em 1896.

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Vivo ou morto nunca mais voltou à parcela europeia, considerando Moçambique como a sua terra. Por vezes, sentado na sua varanda que dava para a Baía do Espírito Santo, deixava soltar alguns comentários acerca da Situação, sem que jamais com esta tivesse comprometido aquilo por ele julgado como o mais certo, logo acrescentando ..."enquanto forem vivos os da minha geração, Salazar pode considerar-se seguro, o que antes dele sucedeu foi terrível, inesquecível". Não gostava do que significava a 2ª república, mas resignava-se à compreensão das razões da sua já então longa vigência. 

Bisavô copy.jpegNo início da década de sessenta

 

Um dia anunciei-lhe a minha entrada na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque, já há muito estabelecida naquele palácio maçónico que ajudara a construir. A sua reacção foi típica, dizendo com um desabafo, ..."afinal o mono sempre teve alguma utilidade prática". Mais satisfeito ficaria se soubesse que ainda hoje a escola vai funcionando, realizando após o regime das promessas ocas e daquele que lhe sucedendo realizara o pretendido seguimento material, um bastante intermitente trabalho na formação de quadros. 

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 Quando se aposentou no final da década de quarenta, no terreno que como recompensa pelos seus serviços recebera da Câmara Municipal de Lourenço Marques, construiu a casa na artéria que estoicamente homenageava um conhecido vulto republicano que ali arribara num misto de recompensa e pontapé para o alto. Ainda existe, hoje ocupada por outra gente que por vezes em quentes tardes de ciclone se refrescando na mesma varanda, nem sequer sabe que o antigo proprietário imitava Homem Cristo, dizendo que habitava na Cabrito Macho. Dito isto, o bisavô levava o polegar e o indicador a pressionar as narinas, num gesto que poucos compreendiam como directamente relacionado com a imorredoura fama de um homem escassamente dado a banhos. 

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 Uma ainda relativamente recente foto da sua casa erguida na então R. Brito Camacho, Lourenço Marques


Não quis regressar à terra natal e morreu já depois da independência em 1975, em Lourenço Marques. Qual seria o seu verdadeiro nome?

publicado às 10:12

A Mima

por Nuno Castelo-Branco, em 26.10.17

 

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 Não sabia o que significava, mas a palavra agradara-lhe e decidira usá-la assim que tivesse oportunidade para tal. Naquela tarde iria com a prima Ana Maria e a sua mãe ao Scala, uma grande sala de cinema situada em plena Baixa, sítio esse onde as pessoas não apenas iam ver uma fita, como também para serem notadas. Por isso mesmo uma ida ao cinema era então algo que agora nos surge como um eco distante de um passado mais rebuscado onde algumas glórias da moda com algum imaginado requinte desfilaram.

Estavam então naqueles anos imediatos à guerra mundial e as duas miúdas, uma delas, a Mima, residente na capital e a outra, a Ana Maria, vinda do mato de Manjacaze onde o pai era administrador, apresentaram-se diante de Maria Pinto da Fonseca para uma rápida vistoria aos laçarotes antes de deixarem a casa e rumarem à Av. da República, naquela confluência com a Av. D. Luís I, sítio esse onde existiam os dois principais pontos de encontro da cidade. Um deles, o Café Continental, era vasto e vagamente apresentado numa espécie de Deco tardio, já um tanto ou quanto americanizado. Era ali que se concentravam os homens para a discussão da política - sim, em Lourenço Marques a discussão política também era coisa trivial -, as últimas notícias dos futebóis locais e metropolitanos e as intrigalhadas de uma sociedade relativamente exígua, embora o seu espaçamento territorial à primeira vista indiciasse o oposto. Praticamente quem era quem conhecia-se e em reflexo era normal um transeunte percorrer a Avenida meneando constantemente cabeça, saudando à esquerda e à direita ou tão só levando a mão ao chapéu nos dias de torreira. Era o Café Continental o centro das Laurentinas e dos pires de camarão tigre que acompanhavam cada rodada, o café fumegante ficava para fim, significava a estocada terminal na conversa. As Coca Colas serviam para mitigar o aborrecimento dos garotos impacientes pelas conversas ininteligíveis dos adultos que para ali infelizmente os arrastavam, começando ao fim de algum tempo a balançar as pernas como forma de silencioso protesto. Por vezes, um clac! relativamente audível fazia voltar algumas cabeças em direcção ao ruído e à face subitamente avermelhada do pirralho atrevido. Eram tempos em que isso se fazia em público e sem riscos de maior.

 

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Mesmo diante do Continental existia outro recinto de comes e bebes, mas não era um Café que replicasse na concorrência o vasto espaço fronteiro, tratava-se de um salão de chá, algo que de imediato produzia na cabeça dos visitantes uma sensação de diferença e cerimonial. Ali se serviam chás, fumegantes torradas e toda a bolaria portuguesa, alguma dela tropicalizada e mais ao gosto local. Era o o Salão de Chá Scala, sobretudo querido pelas senhoras e pela filharada gulosa e melhor comportada. Olhava-se de soslaio ou descaradamente para as peças têxteis elaboradas pela modista Lauentina Borges ou tão só adquiridas numa das imensas lojas de trapos da cidade e exibidas na mesa vizinha, como infalivelmente  se comentava a próxima chegada de uma vedeta metropolitana, trocavam-se umas tantas receitas ou a ida a uma exposição no Núcleo de Arte onde fulano ou sicrana iria mostrar o que sabia ou não sabia fazer. 

Mesmo contígua ao salão de chá, existia e ainda existe fechada numa cápsula do tempo o grande cinema da Baixa, o magnífico Scala onde um dia, ainda garoto, vi actuar gente como Marcel Marceau e Gilbert Bécaud. A estes juntaram-se muitos outros cujos nomes fui esquecendo, desde os nacionais como a Florbela Queiroz, Simone ou o Duo Ouro Negro, até internacionais que aproveitavam a tournée na África do Sul para fazerem uma perninha na então bastante cosmopolita capital de Moçambique.  

A prima Mima estava ansiosa, pois lera a palavra num daquelas romances para adultos, palavra essa muito sonora, estranha e  enigmática que faria todo o sentido exibir como um troféu de caça grossa. A sua preguiça chegara para mantê-la longe da estante onde repousava o dicionário que rapidamente poderia esclarecê-la.

O filme ia correndo e o intervalo, com toda a injustiça  nunca mais chegava. Terminada a primeira parte do filme que obrigava à mudança da bobine, as pessoas normalmente saíam  e iam trocando impressões acerca da estória ou tão só aproveitavam a pausa para fumar, beber e comer qualquer coisa na sala de chá convenientemente bem próxima.

Finalmente, chegou o momento tão esperado e a Mima rapidamente se levantou, apontou o dedo à mãe e gritou:

- Levanta-te, mulher adúltera!

Dúzias de pares de olhos fuzilaram a estarrecida tia Maria.

publicado às 07:46

Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais nº 2

por Nuno Castelo-Branco, em 03.06.17

1.2.-Patrimonio-Palacio-Sotto-Mayor-Carlos-Valadas

Lembro-se como se hoje tivesse sido. 

Num dia daquele já bastante distante ano de 1975, o meu pai* disse-me para ir com ele ao Palácio Sottomayor, onde, pelo que se sabia, existia alguma boa vontade para com as pessoas que forçadamente tinham vindo para a até então - e ainda o era em Timor - Metrópole. No Rossio corria o boato que garantia um staff  composto por gente alheia às foices, martelos, estrelas e patinhas de galinha (MDP/CDE). Assim constava e por regra parece que assim acontecia. A minha companhia talvez servisse como um arremedo de chantagem moral.


Aquele belo edifício servia então como entreposto de roupas destinadas aos retornados. Os grandes salões dourados num brilho fanado já tinham vivido melhores dias e estavam atulhados com arranha-tectos de caixas contendo roupas. Mal se vendo em toda a sua sumptuosidade, essa grandeza de outrora, décadas mais tarde miraculosamente escaparia a uma fortuita decisão de demolição com o fim de ali se erguer um daqueles mamarrachos de betão que nas cercanias a CML permitiu brotar como cogumelos venenosos. 


Estava-se em plena pródiga época de cunhas que noutros regimes foram denominadas de empenhos. O meu pai conseguira esgueirar-se entre as apertadas malhas dos controleiros da Intersindical, ou  seja, do bastante impertinente PC e satélites de serviço e mediante um amigo de pseudónimo Valente Cunha, lá conseguira o lugar de professor de História no Liceu D. Manuel I, em Alcochete. Diariamente deslocava-se no 43 até às imediações do Terreiro do Paço, onde iniciava a sua odisseia de várias horas entre idas Tejo acima e regressos tardios ao parque de campismo de Monsanto. Obteve já nem sei através de quem, mais uma muito empenhada cunha que talvez propiciasse o contorno das regras impostas pelo governo da troika PS/PPD/PC + MFA de Vasco Gonçalves, normas essas que de uma eficaz penada eximiram o Estado da contabilização de muitos milhares de pessoas que num ápice deixaram de entrar nas contas do ábaco do desastre e mais importante ainda, nas ajudas a conceder. Já tínhamos ido ao IARN que então funcionava para as bandas do Museu de Arte Antiga e ali foi-nos friamente esclarecido que ..."pela Lei o senhor e a sua família, chegando a 31 de Agosto de 1974, não podem solicitar ajuda".


Chegados ao Palácio Sottomayor, tivemos o supremo azar de sermos recebido por uma bastante iracunda activista com a patinha de galinha à lapela, numa época em que era de bom tom separar as águas, fosse no machimbombo (autocarro verde da Carris), no eléctrico ou metropolitano. Usava-se o símbolo do partido bem visível no casaco, vestido ou camisa, como se se tratasse de um precioso broche de pedrarias cuidadosa e requintadamente lapidadas por aquele Leitão que durante tanto tempo bem servira a Coroa. Os apressadamente aggiornados ou preocupados por serem ainda mais visíveis, preferiam o grande autocolante e tal como como acontecia com os banhos e cuecas, dele faziam a muda semanalmente, dependendo da data da próxima manif ou greve aprazada. Olhava-se de soslaio para o lado e no caso do efémero vizinho de viagem cumprir grosso modo o politicamente correcto da época, até se metiam ambos em simpática cavaqueira. O pior é se aquele com quem era forçado a empernar ostentava algo que lhe fosse desagradável, um daqueles inimigos de classe, mesmo que este usasse umas calças esfarrapadas. Logo os olhos chispavam de ódio e os mais afoitos deixavam cair uma ou outra provocação que prontamente tinha resposta. 

- Então digam lá "ó quéque" vêm? (ó quéque? Huuuuuuum, soava a falso e isso confirmou-se uns tempos depois**)

- Bom, nós estamos a viver no parque de campismo de Monsanto...

Interrompendo abruptamente,

- Ouça lá, nós instalámos toda esta gente em pensões e hotéis (gesto circular, abrangendo toda a sala), não amandámos (sic) ninguém aboletar-se em campismos! (voz em crescendo de decibéis)

- Eu sei, mas tenho cá um primo que nos emprestou uma roulotte...

- Olhe, sorte a vossa e azar do seu primo que a receberá de volta toda escangalhada, se é que alguma vez a terá! (risota)

- Minha senhora, vim aqui para obter roupas de inverno para os meus filhos. 

- Então dê-m'aí a senha e diga lá em que data chegou para eu apontar aqui no livro de entregas! Despache-se!, não vê que tenho mais que fazer? (voz bem audível para todos os que ali também estavam à espera da esmola)

- Chegámos a Lisboa no dia 31 de Agosto de 1974...

Virando-se para trás e rindo desbragadamente em direcção às colaboradoras que estavam a tomar notas:

- Olha-m'estes, por 24 horas não têm direito à ponta de um corno! Da'donde (sic) é que você desencantou esta senha? (gritos)

Tendo tentado e não conseguindo o que queria, o meu pai desatou num para mim até então desconhecido embrulho oral, um hilariante mas refinado atoalhado revisteiro de escárnio e maldizer, profusamente entrapado com o mais barroco calão que existia à época na Alfama. Recuso-me terminantemente a publicá-lo.

No meio do gargalhar geral daqueles subitamente encantados vencidos da vida que, alguns deles resignadamente humilhados e de chancas rotas mas percebendo o alcance dos tortuosos ditos vagamente camilianos, também aguardavam a sua vez de ordálio, a patinha de galinha quedou-se muda de espanto.

Estrondeou uma prolongada erupção de risos krakatoanos e antes que chegasse o Copcon pertencente ao famoso tolo, dali saímos lestamente sem olhar para trás. O pior é que o visado galináceo de broche esmaltado não terá compreendido a maior porção do alcance do improvisado número digno do que  melhor se concebia na Comédie Française, ficando apenas plenamente ciente da ínfima parte reservada ao léxico da Alfama pré-airbnb. Tanto pior.


- Gostaste? Esquece o que ouviste e vamos para casa. 

Era este o Portugal de outros tempos. Não me esquecerei nem quero ou tenho sequer o direito de olvidar este e outros episódios até ao último dos meus dias, tenham lá a santa paciência. Esquecer é uma condenação certa à repetição e pelo que se ouve no telejornal, isto é precisamente o que está a suceder, martelando-se tintim por tintim, aquilo que os pais deles disseram e pior ainda, fizeram naquela época. 

Já transformado o Palácio Sottomayor na propriedade de uma entidade bancária (?) e numa parte daquele grandioso espaço funcionando uma Embaixada de um país contíguo da Venezuela, ali não pode o governo instalar qualquer renovado IARN, Algo deve ser disposto urgentemente e sobretudo recheado com pessoal mais simpático e preferencialmente sem sucedâneas  patinhas de galinha à lapela.

Uma sugestão? Falem com a Isabel Jonet, pessoa mais do que apta para este tipo de já históricas maçadas e imprevistos há muito avisados. 

 

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 Gostei tanto do episódio que uns anos depois, passando numa banca de propaganda do PC que durante anos existiu no Rossio, comprei à irmã gémea do Brezhnev - se não era, parecia - esta bela patinha de galinha que ainda conservo na minha tralha referente ao PREC. Tenho mais exemplares, muitos mais. 


* Ao longo da sua vida na antiga Metrópole, o meu pai jamais votou em qualquer partido da direita.  
Enquanto o Arq. Ribeiro Telles presidiu ao Directório do PPM foi um eleitor fiel, considerando-o como o único partido com um projecto interessante e com garantias de propiciar um futuro melhor e mais equilibrado, embora sem megalomanias para este país. Dizia mesmo que era a única organização revolucionária portuguesa, olhando de soslaio e com um certo desprezo para os demais que se alavancavam, segundo ele abusiva e pateticamente, a essa duvidosa condição. A partir dos anos 80 insistia uma e mais uma e outra vez no voto PS num agora é que é, naquela bem conhecida e inexplicável fórmula de "PS à PS", uma espécie de dito do recorte "Benfica à Benfica". Nunca nos conseguiu dizer o que isso significava e ficou sempre uma genérica impressão familiar de simpatia pela sigla. Para além do CNC, nunca se inscreveu em entidade alguma.

** Confirmou-se uns tempos mais tarde, em 1980, quando com um grupinho de amigos fui lanchar ao Vá-Vá. Reconhecia-a de imediato e sentando-me numa mesa bem próxima, ouvi-a discorrer sem populeirices forçadas. Era uma burgesa dos arrabaldes perpendiculares da Av. de Roma, precisamente daquela casta mazinha e disposta a todo o tipo de camaleonismos, dependendo estes de cada momento. A propósito, já não ostentava a patinha de galinha









publicado às 09:00

The Delagoa Bay World

por Nuno Castelo-Branco, em 03.02.17

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 Os meus mais calorosos agradecimentos ao António Botelho de Melo, alguém que infelizmente não tive a oportunidade de ter conhecido em Lourenço Marques. Aqui fica uma sugestão para uma visita ao seu maravilhoso blog. 

publicado às 14:30

Hora de reparação moral

por Nuno Castelo-Branco, em 09.01.17

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Findou o período de espera, foram desaparecendo os imaginados obstáculos à urgente e imprescindível reparação moral que o país merece. Merece-o pela sua história secular e merece-o pelo necessário cumprimento de todas as cartas humanitárias a que o Estado internacionalmente se comprometeu.

Existe um muito relevante sector da sociedade que em silêncio tem assistido ao desfiar de décadas e visto morrer os seus entes queridos. Subitamente, em alguns momentos que todos compreenderão, assomam fúrias, faz-se a catarse contra quem, para o bem e para o mal, julgou poder assumir as responsabilidades pela liquidação de um património que não era apenas material, mas sobretudo, de uma certa consciência nacional que não se compraz com passageiras ventanias ditadas pelos apetites vindos de fora e julgados como perfeitamente utilizáveis para o desfasado refazer identitário de um povo visceralmente orgulhoso em toda a sua reconhecida humildade e que se se encontra hoje espalhado por todos os continentes. Essa reparação moral é absolutamente devida a brancos, a negros e mestiços de vários cruzamentos, a indianos e chineses, a índios, a cristãos, muçulmanos, hindus, animistas e outros. 

Muitos há que viram as suas famílias destroçadas e dispersas como folhas secas de outono. Os mais aventurados não conheceram ou assistiram à morte dos seus ceifados por catanas ou balas, por ébrios autos-da-fé avivados pelo combustível que faz mover praticamente todos os motores e interesses planetários. 

Portugal recebeu os frutos de uma colossal limpeza étnica e não consta ter o mundo dado conta disso. Num ruidoso silêncio chegaram e logo permaneceram relativamente expectantes de qualquer coisa que inicialmente até poderia ter sido uma forma de compensação pelo abrupto roubo, confisco ou destruição daquilo que para a imensa maioria eram parcas posses obtidas através do trabalho quotidiano. Poucos eram exploradores e mais escassos ainda eram os nomes ligados a grandes empresas que a passagem de testemunho do regime deposto provisoriamente alijou da preponderância económica e financeira, logo, da política da condução do Estado. 

Um ainda menor número retornou à terra que os viu nascer, a outrora Metrópole. Tal como em África e na Ásia, foram desde sempre leais a uma pátria ingrata e palidamente indiferente aos tormentos provocados de forma deliberada. Deliberada, pois a realização de um golpe de Estado que oportunamente foi baptizado como revolução, pressupunha a aceitação daquele sempre difícil dia seguinte, o da gestão de uma situação na qual todos colaboraram enquanto lhes foi conveniente.

Salvaram-se os que vieram, embora em boa parte reduzidos à mais confrangedora miséria material. Amontoaram-se naquele ..."demos-lhes tudo, até ficaram em hotéis de cinco estrelas, até no Ritz!" ou em roulottes emprestadas, acampados em tendas, patinhando décadas no lodaçal do Jamor, em pensões mais ou menos suspeitas, em casas degradadas. Quando puderam alimentar-se, comeram massa com massa, arroz com arroz, feijão quando havia e de vez em quando peixe, carne de frango e generosas rações de combate oferecidas pelo Real Exército da Suécia. Aturaram em silêncio todo o tipo de despautérios vindos de quem se julgava por cima. Mal vestidos e cabisbaixos, foram alvo da chacota geral, eram os tinhosos, tinhosos porque tinham isto e tinham aquilo e tudo perderam. 

Este país muito beneficiou com estes refugiados nacionais que o coloriram de norte a sul, inventaram profissões até então desconhecidas ou deixadas ao acaso. Não vieram para impor o que fosse, organizar atentados, guerrilha urbana ou exigir o impossível. Foram o sangue novo e vital de um organismo enfraquecido pela secular imobilidade social, pelo preconceito, estreiteza de horizontes, pela sacra má-língua e denúncia quadrilheira. 

Chegou a hora da imprescindível e incontornável reparação.

Exige-se que o Parlamento - à semelhança daquilo que ainda não há muito fez em relação aos judeus e cristãos-novos  que significaram afinal a grande maioria que jamais abandonou o país -, os três ramos das Forças Armadas que abandonaram muitas dezenas de milhar de seus camaradas de armas às mãos dos até há pouco inimigos, o governo e o próprio Chefe do Estado, apresentem em solene sessão um formal acto de reparação moral e a apresentação das devidas desculpas a todos aqueles, mesmo o que há muito se encontram no Além, foram ignominiosamente sacrificados à indiferença do oportunismo dos senhores que têm partilhado como casta, o poder.


É o mínimo. Não se pede a devolução de machambas, de uma imensidão de prédios, quintas, casas, fábricas, entrepostos, bancas de comércio e toda uma infindável quantidade de actividades que conformavam não apenas as vidas dos que tiveram a sorte de escapar para outros pontos do globo, mas também para aqueles que para sempre ficaram abandonados à miséria e prepotência que os noticiários batem com o ruído de tambores de guerra.

Exige-se, isso sim, aquele simples e muito mais difícil desculpem

Sem isso, nada feito, será impossível tapar com uma pesada pedra o imenso buraco de desfaçatez legislativa impossível de esconder, os actos de extorsão quando não de roubo descarado, ainda mais agravados por terem sido perpetrados por quem devia ter antes de tudo defendido os civis. É este o funeral que agora interessa e finalmente libertará as consciências de toda e qualquer reserva mental. Não se trata de vingança sobre a história consumada, mas sim de justiça moral. Será o regime finalmente capaz de tal grandeza?

Testemos então a sinceridade de quem comanda, vejamos então quem é quem. 

publicado às 18:25

Um Anuário para a História

por Nuno Castelo-Branco, em 04.12.16

 

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Costumo percorrer com os olhos a vastíssima biblioteca do meu pai e é possível encontrar o que pretenda, por mais estranhos possam ser os temas. Em soma às muitas centenas de volumes que vieram de África, juntam-se milhares de outros adquiridos na Europa, surgindo como surpresa, o seu apego por obras que julgaríamos completamente afastadas da procura de um homem que antes de tudo se interessou pela grande e pequena História e respectivo anedotário relativamente picaresco, bem como pela literatura e aquela gastronomia que indelevelmente marca o ritmo da passagem dos séculos. 

Este espesso volume faz parte da história que um dia será contada e não acredito existirem muitos sobreviventes da ampla tiragem um dia feita pela Casa Bayly estabelecida em Lourenço Marques. Esta empresa tinha angariadores de assinaturas que garantiam a presença do nome de uma multidão de entidades e como seria previsível, não está completo. Falta uma miríade de empresas que pelos mais diversos motivos não quiseram pagar para aqui aparecerem, mas estas 1800 páginas são uma boa súmula daquilo que foi o Moçambique do início da década de setenta. Se a tudo isto ainda somarmos as anónimas iniciativas que abriam lojinhas-cantina mato fora, ainda teremos um quadro bastante impreciso daquilo que existiu. 

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Torna-se esmagadora uma pesquisa, mesmo que sumária e na diagonal. São tantas as empresas, são tão diversos os sectores de actividade, são de tal modo completos os serviços públicos presentes no então Estado de Moçambique que dir-se-ia estarmos a tratar de um país perfeitamente estruturado e capaz de de auto-governo e não de uma dependência política e ultramarina de uma nação europeia. 

Na agricultura e na pecuária, nas pescas, em praticamente todos os sectores da indústria e serviços, no comércio, turismo, assistência sanitária e escolar e mesmo a inopinada existência de uma Junta estatal da Energia Nuclear, os nomes sucedem-se, fazendo-me recordar alguns que eram visíveis em anúncios ou placards nas avenidas da capital moçambicana, ou em organogramas que ocasionalmente me passaram pela vista de adolescente.  

Em termos comparativos, este Anuário é o mais vasto entre aqueles até então publicados, pois nas estantes do meu pai encontro outros de décadas anteriores, sem dúvida mais modestos e pontilhados por sonantes nomes estrangeiros que a economia local fez com que deixassem de ser pertença de companhias majestáticas sediadas em Londres, Joanesburgo, Amesterdão ou Berlim. Folheando-os de vez em quando reconheço nomes de pessoas que conheci. Os portugueses foram nacionalizando essas actividades, normalizando-as no contexto local e sem que isso significasse o esbulho puro e simples daqueles que as detinham. Tornaram-nas parte integral da paisagem económica de uma Colónia que o deixou de ser para passar a ostentar o nome de Província e na fase final da soberania portuguesa, acabou como Estado, aquele degrau que precedia a natural independência a que desde muito cedo habituei os ouvidos nas conversas escutadas à mesa ou com as visitas que tínhamos em casa. Sim, falava-se da independência, mas muito longe do tipo de independência que aconteceu. Não se tratava daquilo que imediatamente alguns leitores porventura estarão a pensar, na independência paralela ao que sucedia na então Rodésia ou na África do Sul. Os portugueses dos anos sessenta e setenta jamais tolerariam algo de remotamente semelhante. O regime enviava de Lisboa para os bancos da escola a mensagem que literalmente falava  "do Minho a Timor" e isso era entendido a nível local como integração de todos. O caso da prática era outro assunto mais complexo e que requeria um curto espaço de tempo que tratando-se de história, significava umas poucas décadas, apenas uma geração. 

A administração portuguesa e as suas entidades locais conseguiram realizar uma obra impressionante que não se limitou aos centros urbanos. O interesse pelo país desbravou o interior, ali instalando a administração do Estado que construiu escolas primárias nas vilas que crescendo, em poucas décadas se transformaram em cidades como Tete, Quelimane, Nampula, Porto Amélia ou Vila Pery. As escolas secundárias e os liceus foram surgindo com o passar de poucas décadas e banalizaram-se. Alguns que se interessaram e amaram aqueles locais, mais tarde sobre a sua experiência escreveram algumas memórias, fazendo a história do que viram e ajudaram a criar

Politicamente este é um Anuário nefasto, pois em si contradiz praticamente tudo aquilo que convém fazer passar por verdadeiro e indiscutível. Habituados como estamos ao ... não fizeram nada durante quinhentos anos que afinal acabaram por ser pouco mais de noventa, este pesado volume fará as delícias dos historiadores que num futuro que considero possível já não se encontrar tão distante, dedicar-se-ão a realizar precisamente aquilo que jamais foi feito: a História. Estarão eles interessado em descortinar como se organizava a governação portuguesa em Moçambique? Bastar-lhes-á seguir o que existia e foi sendo acrescentado ao longo de decénios, confirmando aquilo que hoje todos sabem e preferem não reconhecer publicamente, ou seja, o colonialismo não é possível ser encarado como um todo, uma amálgama que anacronicamente irmane e unifique o correr de umas tantas gerações. Ainda há uns dias a RTP 2 passou um programa em que o objecto de interesse era o grande fotógrafo moçambicano Ricardo Rangel e este fez exactamente o que honestamente não podia ser feito: a amálgama que facilmente induz ao engano, à re-invenção de uma história mais conveniente a quem detém o poder. O Moçambique em que nasci era certamente muito diferente daquele dos anos trinta em que os meus pais vieram ao mundo e este, por sua vez, completamente diverso do dia 15 de Setembro de 1916 em que em Lourenço Marques nasceu a minha avó, filha de uma natural da terra e neta de pioneiros ali estabelecidos logo após a delimitação das fronteiras saídas do Ultimatum.

Somos, todos nós, a nossa família, parte integrante da Associação dos Velhos Colonos de Moçambique e guardados ainda estão os canhotos comprovativos das quotas que nos davam acesso a todos os recintos da instituição, incluindo a piscina onde eu e os meus irmãos aprendemos a nadar. Era para nós um título de honra e por lá não era incomum verem-se outros colonos provenientes das mais diversas paragens do planeta, fossem eles amarelos do Extremo Oriente, ou aqueles genericamente reconhecidos por indianos, muitos no sentido mais lato do termo e que abrange gentes provenientes do Paquistão, Índia, do antigo Paquistão Oriental que ao tornar-se independente passou a ser conhecido por Bangla Desh, das Maurícias - as antigas Ilhas Mascarenhas dos séculos pós-descobertas - ou do Ceilão, não sendo invulgar alguns desses indianos terem como origem o Quénia, o Tanganica ou o rosário de antigas possessões da Coroa Britânica no Índico.

Éramos e considerávamos-nos simplesmente como luso-moçambicanos e assim foi até ao aproximar-se da primeira metade da década de setenta. 

As altas individualidades que Lisboa enviou a Lusaka para o encontro com Samora Machel e respectiva entourage, deveriam ter ido munidas com este catrapázio. Para além dos efusivos abraços e descaradamente paternalistas palmadinhas nas costas diante dos fotógrafos, de nada mais necessitavam para o cabal esclarecimento do que imperiosamente deveria ser feito, evitando-se em Moçambique o que aconteceu nas décadas anteriores em todo o continente africano. Em todo ele, sem excepção, do Magrebe ao Congo e Tanzânia. Simplesmente não estiveram à altura do momento. 

Servia este livro como aviso que ali não estava apenas uma fastidiosa lista de empresas de exploradores coloniais, mas sim a seiva vital de um país. Existiam milhões de vidas pendentes daquilo que este grosso volume encerrava e de toda esta fastidiosa lista de actividades dependiam para a sobrevivência, para a salvaguarda do ganha pão e das refeições garantidas, dos cuidados de saúde e da educação cada vez mais urgente num mundo em rápida transformação. Isto significava mercados cheios de produtos baratos fornecidos pelas machambas bem organizadas e produtivas, hospitais bem apetrechados com equipamento moderno e  pessoal competente, escolas, uma eficaz rede de saneamento básico, vacinação da população urbana e rural, defesa da vida selvagem, ou a permanência da indústria. 

Muito longe de ser um Mandela e muito distante de sequer ter penado aquilo que Mandela terá fisicamente ou psicologicamente passado, o Moisés da independência não foi alertado, não conseguiu ou quis entender o que significaria a deportação do pessoalmente odiado lastro humano colonial. Nisto e noutras excentricidades, está muito mais próximo de Idi Amin. Dizer isto é politicamente incorrecto? Talvez, mas neste caso não é nada que todos não tenham há muito interiorizado, talvez mesmo no politburo do partido dominante em Moçambique.

A impressionante e rápida saída de brancos, mestiços de vários cruzamentos, indianos, chineses e outros, como um raio fulminou num curtíssimo intervalo da história tudo aquilo que esta grande obra, precisamente o conteúdo das 1800 páginas deste livro, significava. Um país liquidado, esmagado em poucos meses e deixado à tremenda fome, incúria no campo da saúde e abandono económico, unicamente devido à incompetência e furor ideológico totalmente desadequado à realidade africana. Rapidamente passado a ruína comparativamente ao que até há pouco fora, tudo desapareceu como se um Apocalipse Moçambique tivesse sofrido sem culpa ou responsabilidade alguma. Mesmo os entusiastas iniciais, aqueles poucos que tentaram ficar para idealistamente construirem algo, fosse esse algo o homem novo ou a nova terra, também fugiram, não conseguiram enfrentar o visível fracasso no qual participaram. 

Aqui está uma boa parte da razão pela qual as notícias que de lá chegam nem sempre são aquelas que gostaríamos de ouvir.

Paciência, são estes afinal, os tais ventos da história. Há então que aceitar os factos consumados, mas nem por isso deixarmos de tentar entender o que se passou. É esta, a verdadeira História. 

publicado às 19:55

Taxismo de sempre

por Nuno Castelo-Branco, em 10.10.16

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Como não utente do serviço de taxis, tinha decidido nem sequer comentar a controvérsia que opõe os taxistas aos seus colegas da "Iubâr" ou da "Québifai". Rarissimamente mando parar um taxi, logo este é um tema que não me interessa minimamente. Contudo, no telejornal da uma, assisti às expectáveis e há muito previstas cenas de violência que não se limitou à farta verbosidade que o luso-calão encerra num dos infindáveis tomos acumulados ao longo de quase um milénio de história pátria.

Recordo apenas o primeiro contacto que tive com tal sector e por mais miraculoso que a muitos possa parecer,  aqui deixo a data desse encontro imediato: a escura e bastante tépida noite de 7 de Setembro de 1974.

Chegados a Lisboa devido à bastante aturada decisão paterna de antecipadamente auto-limparmos familiar e etnicamente Lourenço Marques, fomos viver para a aproximadamente meia dúzia de metros quadrados propiciados pela roulotte do primo Joaquim Dantas. Em Monsanto estávamos relativamente seguros numa Lisboa em pueril polvorosa.

Nos primeiros dias aproveitámos para visitar a parte da cidade histórica, hoje muito mutilada devido à febre do obra a obra que há décadas tomou de assalto as mentes de sucessivas vereações camarárias. Após um dia sem grande historial a registar e como àquelas horas nocturnas o machimbombo 43 já não funcionava, o meu pai decidiu abrir os cordões à bolsa e pcht! Taxi! Taxi!

- É para o Parque de Campismo de Monsanto...

E lá fomos sentados no banco de trás, acompanhados pela nossa mãe. Íamos conversando e ainda nada habituados aos até então desconhecidos termos como foleiro ou reinar - "rénar", no dizer geral -, pontilhámos a conversa com os ya, maningues, nice, tombazanas e outras palavras que tínhamos aprendido nas ruas e casas da nossa volatilizada cidade natal. Provavelmente o chauffeur moita-carrasco bigodudo e de boné estranhava, mas nada dizia, até que o rádio iniciou o debitar das notícias que precisamente naquele 7 de Setembro traziam ao conhecimento da então Metrópole, acontecimentos num território bem conhecido e por nós já interiorizado como para sempre distante. 

...graves acontecimentos (...) colonos em fúria (...) fascistas (...) Rádio Clube de Moçambique (...) assalto (...) forças reaccionárias (...) colonialistas (...) conluio com os sul-africanos (...) Lourenço Marques (...) MFA...

O meu pai gentilmente pediu ao motorista: 

- Desculpe-me, importa-se de aumentar o som do rádio?

- Eh pá, ó camarada, afinal d'adonde bócêzes são, pá?  

- Somos de LM, chegámos há uma semana e vivemos provisoriamente em Monsanto. 

- F-se!, Car...! Pqp!, no meu taxi uma família de fachos dum car...?! Os pretos deviam ter-vos cortado às postas seus fdp dum car...! 

Parou o radiofonizado calhambeque Mercedes "marreco" num profundo e doloroso gemido de travões gastos.

- Rua já, seus cabr... antes que eu chame os meus camaradas e vos f... a todos aqui mesmo nesse mato, seus fdp! Vão prá vossa terra, vão para a c... da vossa mãe!

O meu pai mandou-nos sair e voltando-se para o revolucionário de carrascão e caracoletas, perguntou-lhe com um sorriso:

- E como tenciona chamar os tais camaradas? 

E lá partiu ele, decerto furibundo e bufando, deixando-nos às escuras em pleno monte de Monsanto por onde deambulámos durante uma boa hora aos círculos, procurando a entrada de um parque de campismo que o meu pai julgava próximo. Na verdade estava e felizmente encontrámo-lo sem grandes delongas. Este episódio serviu-nos de aviso para o que aí viria. 

Já distante mas jamais esquecida esta tempestade de outros tempos, foi mais ou menos este o discorrer do discurso escutado que tenho como nota de rodapé da estória da minha família. Decerto não fomos os únicos, pois apostaria que qualquer um dos leitores terá a sua. Será ela a propósito de pretos? De ciganos? Ou será de estrangeiros Made in U.E. que invadem e roubam tudo o que é nosso

publicado às 17:55

Na Dinamarca, perdão, em Moçambique

por Nuno Castelo-Branco, em 14.01.16

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A vergonhosa decisão dinamarquesa em confiscar bens a quem ao país chega como refugiado, não é inédita. O mesmo aconteceu noutras épocas e pelo menos por decisão de três outros governos. A primeira respeitará ao geralmente conhecido saque nazi aos judeus alemães e de todos os territórios que a Wehrmacht ocupou. A segunda, às jóias que o governo de Salazar decidiu manter em guarda no BNU/BdP, logo após a conquista do Estado da Índia por parte do exército de Nehru. Durou mais de meio século, essa pretensa guarda de bens que sem alguma dúvida pertenciam aos depositantes. Entretanto morreram muitos dos seus proprietários e descendentes directos, tendo sido há pouco procedida a devolução a familiares de terceira e quarta geração.

Vamos então ao terceiro caso. Governo? O português, dirigido então por Vasco Gonçalves. Ano? 1974 e 1975. Local? Antigo Ultramar. 

Assim que tomou posse após a demissão de Palma Carlos, logo fez chover sobre os territórios africanos diplomas e ordenações vexatórias, desde normas correspondentes às transferências de bens, às outras que incluiam emissões de rádio, programas educativos nas escolas, liceus e universidades locais. A mais absurda terá sido o confisco puro e simples das posses daqueles que seriam prosaicamente chamados de retornados a um país onde a maioria jamais tinha estado. Enfeitavam-se os regulamentos normativos com excitadas manifestações de benquerença para os futuros países que todos previam como inevitavelmente independentes a curtíssimo prazo, logo de forma nítida surgindo o jargão habitual da sabotagem económica como justificativo. Como a imaginação era escassa, recorreram aos manuais. 

O saque foi extensivo, embora paulatinamente tornando-se mais visível e descarado a partir do inverno local de 1974, os meses correspondentes a Agosto, Setembro e seguintes. A Coordenadora do MFA e o diligente ministro da Coordenação Interterritorial - um rápido ersatz do então disparatadamente extinto Ministério do Ultramar -, decidiu colocar de vigilância nos aeroportos Gago Coutinho (Lourenço Marques) e Sacadura Cabral (Beira) - idem quanto a fronteiras terrestres e marítimas -, soldados recentemente chegados da Metrópole, hipoteticamente comandados por oficiais bem escolhidos. Limitavam-se a desfraldadamente passear de G-3 assestada e de cigarro no canto da boca. Iam olhando com um ar vagamente feroz para aqueles que embarcavam para as vitalícias férias. Nos pontos de check-in havia uma pretendida revista minuciosa das bagagens, mas a desordem era evidente, uma expectável luso-desorganização que facilmente permitiu o logro de coortes de militares postados no terreno à cata de despojos destinados não se sabe bem a quem. Alguns deles dir-se-ia encabulados pelo triste e escabroso serviço a que estavam obrigados, talvez assim se explicando a falta de cuidado na organização dos espaços de revista que naquele caso, permitiu um episódio em que gostosamente participei, industriado pelo meu pai.


Chegámos ao aeroporto à tarde, pois o Boeing 707 partiria ao anoitecer e era necessário proceder às formalidades de embarque, entre as quais a caprichosa revista de bagagens. Num relance, o meu pai percebeu que seria relativamente fácil fazer passar as duas pequenas caixas com as jóias da minha mãe, pois o check-in de bilhetes e bagagens era feito numa única porta, após o que os já "retornados" poderiam livremente chegar-se ao varão que os separava de amigos e familiares que permaneciam do outro lado. No nosso caso, o "amigo e familiar" era, além da minha pessoa destinada à derradeira cena de teatro,  a minha minha avó Irlanda, a única que se deslocara ao Gago Coutinho, pois ao contrário de tios, tias, primos e primas, amigos e amigas, não estava nada convencida dos amanhãs que cantariam.


- Nuno, discretamente vais ficar do lado de cá do varão, com o saco das jóias e com o teu blusão a tapá-lo. Nós os quatro (ele, a mãe, o Miguel e a Ângela) faremos a revista e depois a tua mãe virá "despedir-se da família"  (um piscar do olho direito para encorajamento) e entregar-lhe-ás discretamente isto. Depois, esperas um pouco e vais até à porta de embarque para seres revistado.

 Dito e feito, esperei pacientemente junto do varão e a minha mãe foi "despedir-se de mim" num  momento em que o reboliço pela aproximação da hora de voo era ostensivo, mantendo os camaradas distraídos com quem já estava dentro do recinto. Lampeiramente me esgueirei até ao local onde entreguei a minha passagem e como aos quinze anos já tinha 1,76m, nem sequer me perguntaram se viajava acompanhado. Se excluir  uma daquelas pequenas malas tubulares fechadas a zip que a TAP de então oferecia a quem comprasse bilhetes, não levava coisa alguma. O deixa andar era de tal forma que nem sequer estranharam o facto de não possuir qualquer bagagem de porão. Devem ter achado normal partir sem uma muda de roupa e atendendo à distância de quatro décadas, hoje julgo que por ali não campeava muita esperteza, quanto mais inteligência.

Escusado será dizer que nos fartámos de rir pelo facílimo trote pregado aos iracundos e desleixados vigilantes.

Tal sucedeu no dia 30 de Agosto de 1974, por sinal a data de aniversário do meu irmão. Uma semana depois foi o 7 de Setembro e então, sim, subitamente desapareceu o relaxamento nas vistorias, as tais "véstorias" como se usa dizer por cá.

Procedeu-se à cuidadosa expoliação extensiva de quem para sempre partia, desta vez já com a colaboração dos guerrilheiros recentemente chegados a uma cidade que até então totalmente desconheciam. Ajudados pelos militares portugueses e pelas delegações governamentais de transição da então potência administrante do território, perpetraram todo o tipo de latrocínios, fossem eles nos recheios de casas, como quanto a jóias e especialmente, nas transferências de títulos - que subitamente deixaram de ter qualquer valor local - e dinheiro em Escudos de Moçambique que de rompante passaram a ser cambiados sob a arbitrária fórmula imposta pelo mercado negro oficial de 3 para 1, 4 para 1 ou 5 para 1, engrossando os privativos cabedais de numerosos oficiais enviados pelo MFA de Lisboa. Daí à simples impossibilidade de trocar dinheiro e obrigar os luso-moçambicanos a deixá-lo em depósito nos escritórios que mais tarde seriam absorvidos pelo Consulado ou Embaixada, foi apenas uma questão de tempo. Nunca esses montantes foram devolvidos, nem deles há notícia de paradeiro actual. Foi um confisco puro e simples.  

A verdadeira História foi mesmo assim, tão ou ainda mais vergonhosa como a que agora sucede na Dinamarca.

Portugal fez exactamente o mesmo aos seus próprios cidadãos. A questão a colocar é a seguinte: limpeza étnica feita, onde foi parar o saque?  

publicado às 07:00

Visitas à mesquita

por Nuno Castelo-Branco, em 16.01.15

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Nuno, Ângela e Miguel, no fontanário do Jardim Vasco da Gama, em Lourenço Marques. Na cabeça, os cofiós bordados, oferecidos por amigos do Centro Aga Khan (1968)

 

Há trinta e cinco anos, o Xá Reza Pahlavi  para sempre abandonou o seu país. Durante muitos anos era uma presença constante nos noticiários, um peão essencial no ténue equilíbrio de poderes no Médio Oriente. Ainda hoje acusado de demasiado ocidentalismo, o Xá dos anos sessenta surgia como um dirigente que procurava a difícil síntese entre a milenar tradição persa, o legado muçulmano e as exigências impostas por um trabalhoso período reformista que guindou a Pérsia ao lugar cimeiro do concerto internacional. Para quem vivesse no Moçambique português, Reza Pahlavi era o imperturbável e discreto amigo que decidindo a partir dos seus gabinetes nos palácios de Niavaran ou Golestan, ignorava sanções impostas na ONU e as advertências de aliados contrariados pela presença portuguesa na África e na Ásia. Nos seus afazeres de funcionário da Sonap, várias vezes o meu pai visitou petroleiros iranianos que descarregavam na refinaria Sonarep da Matola, tornando-se estes num elo vital da sobrevivência económica da então província ultramarina de Moçambique. Se o Xá era um homem moderno, Farah Diba foi gabada como uma beldade da época Twiggy, um figurino da moda, tendo mesmo Lourenço Marques conhecido uma boutique Xabanu. A tricolor que ostentava o leão dourado, a bandeira do mais poderoso país muçulmano, era assim uma rotineira e amiga visitante do porto da então denominada Baía do Espírito Santo.

Na capital de Moçambique a presença maometana era importante, abundando gentes vindas do antigo Raj britânico, assim como naturais de famílias há muito islamizadas, oriundas da zona norte e centro de Moçambique e de toda a suavemente sinuosa costa que ia de Inhambane até à Quíloa, Mombaça ou Melinde do Ibn Majid. Lojas de rua espalhavam-se por toda a cidade e arredores, também pontilhando as estradas que conduziam ao interior do território, por vezes servindo como vitais pontos de abastecimento das populações nas pequenas vilas e cidadezinhas que como na Terra da Boa Gente, mostravam a forte presença dos seguidores de Maomé.

 

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 A velha mesquita da Rua Salazar, hoje muito alterada por um mastodôntico acrescento betonado

 

Sempre fascinado pelo Oriente, o meu pai tinha uma imensidão de amigos que eram então entre nós designados de maometanos. Estávamos ainda muito longe dos tempos em que o  termo muçulmano erroneamente pareceu querer dizer algo de diferente, logo evoluindo para o islamita que hoje conota um certo programa político perturbador das mentes e ameaçador da tranquilidade dos espíritos e de uma estabilidade internacional historicamente sempre efémera e entrecortada por longos períodos de conflito. Conhecendo-os a todos pelo nome próprio, entretinha-se com conversas acerca das novidades recentemente chegadas dos orientes, sem cuidar muito acerca da verdadeira proveniência dos artigos, fossem eles indianos, paquistaneses, cingaleses, de Zanzibar ou até das longínquas Java, Filipinas, China ou Japão. Aos poucos a nossa casa foi-se compondo com mesinhas de apoio, canapés e orelhudas cadeiras de descanso, esculpidas numa madeira escurecida onde abundavam motivos vegetalistas e ocasionalmente, uma cabeça de besta, fosse ela um leão, tigre ou aquilo que melhor imaginássemos. Muitas vezes almoçávamos em restaurantes indianos e em casa comíamos em louças chinesas. Nos dias especiais, saía do móvel inglês de vidrinhos o serviço de Satsuma pleno de dourados foscos e decorado com aparentemente severas figuras que passavam a vigiar-nos de rompante, logo que rapávamos a derradeira garfada.  Nos sofás e pelo chão espahavam-se almofadas com os tons das especiarias e sobre os móveis e mesas, vidros, jarras e caixas de metal com embutidos, lampadários. Nas zonas de acesso à casa, pendurávamos aquilo que então designávamos de tling-tlings, os espanta-espíritos anunciadores de boas brisas em dias de inclemente fornalha. À mesa, as iguarias indianas confundiam-nos quanto à origem religiosa de quem as tinha confeccionado, fossem eles hindus, fervorosos cristãos goeses - muitos deles recentemente chegados a Moçambique após os acontecimentos de 1961 - ou maometanos. Aos domingos, ao infalível arroz de amêijoas cozinhado pela minha mãe, somavam-se os bajis, chamuças de vários recheios, balchões, o sarapatel, a dulcíssima bebinka e os caris encomendados a senhoras da Avenida Afonso de Albuquerque, empanturrando os sempre imprevistos convidados que como era hábito na desaparecida Lourenço Marques, apareciam sem aviso. Sempre chegava alguém com mais uma pequena prenda, fosse ela uma caixinha de incenso, um belo corte para um sari, ou uma écharpe de berrantes riscas com que a minha mãe, aproveitando a fase hippie que afinal por aquelas paragens há muito existia e estava à venda na Baixa e nos mercados, logo acrescentava à sua colecção de pequenas vaidades. As senhoras iam passando por várias fases quanto às preferências da moda, buscando nas lojas dos indianos as pulseiras de vidros multicolores, alternando-as com outras de latão gravado ou então, noutra combinação convencionada, braceletes de madeira com incrustações de madrepérola, marfim ou metais onde a prata era sempre a primeira escolha. Eram extraordinárias, essas pratarias adorna braços. Finamente lavradas, exibiam turquesas, ágatas ou onix, fazendo subir a parada na demanda das bijutarias provenientes da zona do Golfo, também fornecedor de cintos, cinturões e malas de cabedal e camurça, franjadas e pródigas de aplicações metálicas.

Em muitos sábados acompanhei os meus pais naquele vasculhar de lojinhas do bazar da Av. da República - a D. Carlos I dos tempos dos meus bisavós e trisavós -, dali trazendo saquinhos com coloridas especiarias - ou vítreas pedrinhas - que invariavelmente iam enchendo alguns velhos frascos de pharmácia, relíquias de vidro grosso, onde a tampa com topo em forma de oito deitado, era por si uma pequena obra de arte. Esses frascos  decoravam prateleiras ou móveis de estilo, sendo bem cheios com camadas dessas especiarias que passavam a formar uma zebra multicolor alternando o amarelo açafrão com o azul cobalto, os vários vermelhos, laranjas, cores de terra e o verde pistacho. Nem a mesa baixa comprada na Pandora, de armação metálica e  tampo de mármore alaranjado, escapou a um desses vidros de drogas. Tal como surgira aos olhos do Gama e da sua espantada marinhagem, a Índia, fosse ela a hindu ou muçulmana  - ou até budista, tanto fazia -, era para todos nós capaz de produzir fosse o que fosse, numa mescla de refinamento pontilhado por aquilo que aos olhos dos europeus mais teimosos, parecia ser sumamente kitsch. Quantos Ganesh ou Shivas de vidro translúcido vi eu espalhados montra após montra, verdes, azuis, cor de rosa, ou simplesmente transparentes? Sem sequer imaginarmos a absurda invasão de talhas de plástico dourado do início do século XXI, aqueles santíssimos vidros eram objectos votivos considerados como muito pirosos e inapreciáveis. Para cúmulo, estavam por todo o lado como testemunhos mudos da existência de uma sociedade de muitos e variados seguidores de não menos diversos deuses ou crenças que ostensivamente pareciam contradizer os exaltados textos  que narravam a História de Portugal nos livros da primária. Eram uma decorativa, mas dispensável vulgaridade.

A minha loja preferida situava-se lá para as bandas do Alto Maé, talvez nas imediações da Pinheiro Chagas - ou seria na 24 de Julho? - e pertencia a mais um daqueles indianos do comércio. O termo indiano - monhé era um evitável termo depreciativo atirado aos reconhecidamente muçulmanos - englobava muita e diversa gente, por vezes estipulada feroz inimiga entre si, após a revoada das independências saídas da antiga Índia britânica. Uns eram paquistaneses ocidentais, enquanto outros eram paquistaneses orientais - o actual Bangla Desh -, entrando também na mesma conta os cingaleses e aqueles provenientes daquele termo geográfico politicamente transfigurado - à semelhança da Itália e da Alemanha da segunda metade do século XIX - em União Indiana.
Neste caso concreto, o homem era de Carachi e possuía um estabelecimento bem cuidado, todo forrado de madeiras e desordenadamente organizado de forma a provocar a aturada busca e revista por quem o  visitava. Sempre acompanhado por um macaquinho de estimação que ia espalhando cascas de amendoim loja fora, jamais lhe vi outro traje senão aquele próprio do seu país. Atrás do balcão-montra, existia uma porta que dava acesso ao armazém e talvez, à sua própria residência. Durante anos, sobre esse reservado acesso permaneceram em vigilância, três grandes fotografias envidraçadas e emolduradas em madeira pintada a purpurina ouro-velho. Ao centro e de pé, estava a rainha Isabel II em roupagens da coroação, uma foto colorida e já um tanto empastelada após quase duas décadas de reinado. À sua esquerda, o herói da independência paquistanesa, Muhammad Ali Jinnah, uma quase perfeita correspondência física em versão exótica com Oliveira Salazar, colocado à direita da soberana britânica. Duas fotografias a preto e branco, realçando a peça central colorida e abrilhantada pela exibição da cintilante Regalia guardada a sete chaves na Torre de Londres.

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Este homem cujo nome esqueci, tinha um inato bom gosto, sabendo o que as suas clientes procuravam. Os tecidos eram cuidadosamente escolhidos, a bijutaria parecia saída das vitrinas de uma Cartier subitamente convertida em fornecedora de hippies, irmanando pulseiras de vidro colorido com outras metálicas, de marfim, osso, entretecidas fibras de coco, colares, cintos de prata torcida remetendo-nos para o nosso monumental estilo Manuelino. 

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Enquanto ia respondendo ao meu pai sempre ansioso por encontrar mais uma cadeira indiana de balouço, uma mesa redonda de três pernas decoradas com cabeças de elefante ou  biombos para futuro restauro, ia languçando aquilo que as mulheres remexiam:

- Áne Marí, Áne Marí, tem sari novo lindo, sari chegou de Páquitã semana passada, bonito para calçon curte!

- Aaaaaaah, não sei, tenho pernas magras...

 

- Áne Marí tem pérne fine, tem pérne fine, más ande! Compra-compra, ser chibante. 

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Aquele "tem pérne fine más ande!" ficou para sempre, pois ao longo de décadas ouvi a minha mãe contar e recontar o episódio, principalmente por naquele preciso momento dos finais de sessenta, o mundo subitamente ter passado a interessar-se pelas "pérnes fines" e isto, até aos nossos dias. 

 

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Naquele outro plano da minha existência, os devotos amigos maometanos não faziam muito caso daquilo que um dia surgiriam como temíveis fatwas, fazendo então amontoar nas suas lojas ídolos das mais variadas origens, sabendo serem os portugueses ávidos compradores de gordos budas chineses ou aqueles outros oriundos do Sião, sempre tão esbeltos que pareciam entidades em tudo opostas às provenientes do Império do Meio. A estes somavam-se objectos decorativos Made in India, seguindo a já passada mas sempre bem aceite e exaustivamente copiada  Art Déco, organizando-se pelas salas autênticos zoos com canzoada pernalta, leões, tigres, elefantes, leopardos, equídeos, gatos e passarada fundida em latão, bronze ou num modesto ferro patinado a capricho. Negócio era negócio. Por vezes lá soava no nosso telefone, o 29292 da R. Dr. J. Serrão nº 40 r/c e do outro lado da linha, num inconfundível sotaque asiático anunciador de novidades, alguém perguntava: poder falar com Vítor? Claro que podia, era uma imperdível oportunidade para mais umas bisbilhotices abrindo caixas e remexendo stocks acabados de chegar da alfândega do porto. 

Por vezes, em tempo de férias ou após o horário de trabalho, o meu pai levava-me pela mão até à Rua Salazar, hoje crismada de Rua da Mesquita, situada entre a Av. da República e a R. Consiglieri Pedroso, bem perto da Praça Mac Mahon. Dos pés à cabeça vestido com roupa de algodão produzida em Macau, ali entrava livremente, deixando à porta os chinelos de borracha, aquilo que hoje designamos de havaianas, naquela época sem marcas a clamarem por surfistas ou bandeiras anunciando o país do samba. Em meios-dias tórridos, a sala de orações era fresca, proporcionando-me um imenso gozo espojar-me sobre os tapetes com arabescos. De barriga para o ar, ficava a admirar o grande lustre de cristal, aquilo que parecia uma interpretação orientalizante dos modelos expostos nos salões dourados por um Grand Siècle há muito passado mas ainda simbólico de uma Europa maior. 

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No final da década de sessenta, a expensas do Aga Khan ergueu-se o imponente centro ismaelita de Lourenço Marques. Orgulhosos por aquele grandioso testemunho da sua importância social e empresarial, os seguidores do príncipe Karim eram pródigos em convites de visita ao seu edifício, não fazendo destrinças religiosas e também assim confirmando aquilo que era normal na cidade. Nas salas de aula tínhamos colegas a quem jamais perguntávamos acerca da frequência ou não, de templo. Para nós, o João Carlos Leal Bento era o espanhol, pois a sua mãe era castelhana, logo católico. O Páris Zagrephos era o  grego presumivelmente frequentador do Ateneu na Av. Pinheiro Chagas e pelo B.I. tão português como o Abdul de Goa - ou seria de Carachi? -, o Cheng de Macau, ou o Matavele da zona de Gaza. Uns eram tal como eu, brancos de segunda, os tais Velhos Colonos que ostentavam esse título como se fosse um ancestral ducado concedido na época das descobertas, Outros, brancos de primeira, iam variando de sotaque em sotaque, recém-chegados da longínqua Metrópole, filhos de militares ou de casais que evitando as Franças do banlieus, julgavam para sempre eterna aquela África Oriental Portuguesa. 


Um dia, um telefonema feito a partir de um gabinete do Centro Aga Khan, para sempre mudou as nossas vidas. O amigo ismaelita convenceu o Vítor a levar a família para bem longe, pois aquilo que Lisboa prometia era apenas um arrazoado de miragens alija-responsabilidades:

- Vítor, contacta discretamente toda a tua família e os amigos de maior confiança que por sua vez, devem fazer o mesmo. Vão-se embora, muitos de nós fazemos o mesmo neste momento, estamos a empacotar. Não percam mais tempo, vai ser mau, muito mau.

Estávamos no início de Junho de 1974. Somando-se ao petróleo do Xá que desafiara os nossos comuns aliados e às cores e sabores oferecidos pela generosa costa oriental africana e pelas Índias, a então muito leal amizade dos maometanos evitou-nos o testemunhar de um imenso rol de indignidades, fossem elas protagonizadas pela nossa própria gente uniformizada ou à paisana, ou por aqueles que ébrios por uma vitória que lhes foi graciosamente outorgada de facto, para sempre alteraram aquilo que para nós era a ordem normal no nosso pequeno mundo. 

Mas será que estes islamitas de indesejável noticiário novo século, novos terrores, terão mesmo algo em comum com os nossos maometanos do outro tempo? 

publicado às 17:09

Moçambique, mais um desastre anunciado

por Nuno Castelo-Branco, em 11.01.15

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A somar a tantas outras catástrofes já previstas pelo decorrer dos acontecimentos em toda a África da década de sessenta, eis mais uma péssima notícia. O Sr. Dhlakama proclama-se presidente do centro e norte de Moçambique, podendo isto significar o reacender da guerra civil ou uma futura divisão do território.

As fronteiras de Moçambique foram delineadas após os acontecimentos consequentes da louca apresentação do Mapa Cor de Rosa em S. Bento. Não estivesse D. Carlos I no trono português e o resultado do Ultimatum poderia ter sido infinitamente pior. As chamadas Campanhas de Pacificação consolidariam então o princípio da efectiva ocupação territorial, nelas ganhando fama internacional homens como Mouzinho de Albuquerque, António Enes, Aires d'Ornelas, Paiva Manso, Galhardo, Caldas Xavier, entre muitos outros. Para as potências, passou a existir um Moçambique também denominado como África Oriental Portuguesa.

A nossa Monarquia deixou aos futuros assinantes de Lusaca um Moçambique íntegro, com fronteiras internacionalmente reconhecidas e até hoje intocadas. Com o que agora se anuncia, eis mais uma consequência da destruição do elemento aglutinador loucamente destruído em 1975. A independência era inevitável e há muito desejada pelos luso-moçambicanos, mas estes foram sem dúvida, os primeiros alvos a abater pela criminosa inépcia dos negociadores metropolitanos e pela discriminatória política daqueles a quem o poder lhes foi oferecido.

 

Aqui está o resultado. 

publicado às 19:36

Tenham santa paciência, não esquecemos nem esqueceremos

por Nuno Castelo-Branco, em 03.09.14

 

O meu "one way ticket" de Lourenço Marques-Lisboa, 30 de Agosto de 1974

 

"Muitos responsáveis políticos portugueses têm dito que a descolonização foi a que era possível. Acho que não é assim. Considero que a descolonização foi uma tragédia. Foi uma tragédia a forma como a descolonização acabou por se realizar.Tal como a colonização o foi. Não assumo responsabilidade do que hoje lá se vive. Isso tem a ver com os movimentos e os seus líderes. Assumo a responsabilidade das negociações para a descolonização não terem sido conduzidas de modo a evitar situações que acabaram por descambar naquilo que hoje existe nos ex-territórios portugueses africanos."

Melo Antunes, entrevista à RTP, Julho de 1999

 

 

"De facto, a descolonização foi feita na defesa dos interesses políticos e estratégicos da União Soviética, de seus aliados e dos seus movimentos no terreno. Foi contra os interesses de Portugal, dos portugueses residentes nos territórios sob a nossa administração e contra os interesses das suas populações"

Manuel Monge, oficial do MFA

"Prova-o a inequívoca intenção das forças internacionais no pseudo-revolucionário processo de Abril, desencadeado com o objectivo de nos impor o vergonhoso abandono dos territórios africanos, onde, além de termos causado o caos e a destruição, fomos co-responsáveis pela morte de milhares de pessoas. E ainda há quem despudoradamente afirme que a revolução de Abril foi uma revolução sem sangue"

 

Sigfredo Costa Campos, coronel pára-quedista

 

"O que hoje se entende por independência imediata seria a mais gigante negação dos ideais democráticos universalmente aceites e nos quais se inspirou o MFA."

Soares de Melo no seu discurso de posse como Governador-Geral de Moçambique, 11 de Junho de 1974

 

"A Frelimo estava consciente de que o seu poder residia essencialmente, não nas suas estruturas, mas na traição da esquerda militar portuguesa, disposta a impô-la ao povo moçambicano, proporcionando-lhe a organização político-militar que nunca conseguiria alcançar antes do 25 de Abril."

António de Spínola in País sem Rumo

 

Amanhã, 4 de Setembro, pelas 17.30H, no Palácio da Independência - SHIP (Rossio), apresentação do livro de Clotilde Mesquitela, 7 de Setembro: Moçambique - memórias de uma revolução

publicado às 12:51

No Público

por Nuno Castelo-Branco, em 20.04.14

 

Vale a pena a leitura deste texto do Público. Aqui fica na íntegra, pois o jornal adquiriu o hábito de limitar o acesso online. Razões económicas, é o que se diz.

Além de alguns testemunhos que confirmam tudo aquilo que há muito sabemos - os tristes episódios protagonizados por Almeida Santos, por exemplo -, finalmente assumem-se decisões que hoje seriam consideradas como deliberados crimes: a deslocação e dispersão forçada de populações, o suprimir da cidadania nacional a uma enorme quantidade de pessoas que até ao momento dela legalmente auferiam - imaginem o que para nós, de 4ª geração, significou a "prova" de sermos portugueses! -, a entrega forçada de bens - o caso dos diamantes de particulares - e claro está, o escabroso abandono de metade do exército português que combateu em África. As Forças Armadas colaboraram nesta indelével nódoa no seu historial e já é tempo de uma pública reparação. "Eram soldados pretos" e os novos senhores do poder acharam por bem deixá-los à vingança que se confirmou na execução de muitos milhares. 
São apenas alguns aspectos a considerar entre muitos outros.

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"Chegaram em barcos e aviões num movimento que durou poucos meses. Ficaram conhecidos como os “retornados”. É meio milhão de pessoas que ajudaram a construir a democracia e o Estado social e cuja integração na metrópole é uma história de sucesso que a Revista 2 agora conta.

Meio milhão de portugueses foram integrados na sociedade portuguesa durante o período que vai do Verão de 1974 ao Verão de 1975, fruto da descolonização imposta pelo fim da ditadura do Estado Novo. É um movimento de integração populacional único que trouxe uma massa humana qualificada que contribuiu de forma decisiva para a construção do Estado democrático. Para a história ficaram conhecidos como os “retornados”. Na realidade, são a última geração de portugueses que viveram e cresceram na África colonial portuguesa.

“É um dos momentos mais extraordinários da história portuguesa do século passado, a capacidade de integrar 500 mil pessoas que chegam em poucos meses”, defende o empresário Alexandre Relvas, nascido em Luanda, para quem o movimento de integração dos retornados “correu tão bem que não é suficientemente valorizado, a sociedade portuguesa não valoriza essa capacidade enorme que teve”. Também o sociólogo Rui Pena Pires, nascido no Huambo (antiga Nova Lisboa), e autor da única grande investigação sobre o tema (Migrações e Integração. Teoria e Aplicações à Sociedade Portuguesa, Celta, 2003), sublinha que houve uma “boa integração”, uma vez que “não há marcas que se percebam”.

O sucesso de integração é identificado por Alexandre Relvas com a “extraordinária generosidade” da sociedade portuguesa e com o papel igualmente “extraordinário” que o Estado então desempenhou. Mas também a capacidade de iniciativa e de luta do conjunto de portugueses que regressaram e que trouxeram o conhecimento e a mais-valia de serem os últimos colonos portugueses em África.

“Um dos aspectos que eu valorizo fortemente é ter nascido em África, ser um dos últimos filhos do Império português e ter uma consciência forte de que isso tem consequências, que implica responsabilidades na forma como olho para o que foram os 500 anos de presença de Portugal em África”, assume Alexandre Relvas, frisando: “Somos os últimos portugueses do Império. A nossa memória é a última memória que existe do Império em África.”
Não questionando a justeza da descolonização, o empresário de espectáculo e de comunicação social Luís Montez, nascido em Luanda, sustenta que a descolonização e o regresso dos portugueses à metrópole foi um processo “duro e não foi muito justo”. Concretizando sobre Angola, considera que a descolonização devia ter sido feita “para lá ficar melhor, mas lá ficou em guerra”. Não esquecendo que “a história é o que é”, conclui: “Acho bem a independência, mas as coisas deviam ter sido feitas com mais método.”

Protagonista do poder do Estado na descolonização, António de Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial do I ao IV Governos Provisórios, de 16 de Maio de 1974 a 8 de Agosto de 1975, partilha da visão de sucesso em relação à forma como foram integrados na metrópole os portugueses vindos do então Ultramar, mas reconhece que “implicou muito sofrimento”. E sublinha que “a dificuldade criada pelos 500 mil portugueses foi um problema tão complicado para os governos dessa altura que diria que, tendo em conta o grau dessa dificuldade, o resultado final não esteve longe de ser o sucesso possível”. Mas reconhece que “é claro que foi um drama de todo o tamanho”, pois “as pessoas perderam tudo o que lá tinham, alguns eram bastante abastados”.

Sendo também um retornado de Moçambique, o ex-governante adverte que, ao ser ministro responsável pela tutela do processo e ao “não ter podido garantir” aos retornados “o direito ao que lá tinham”, tal como “nenhum outro Estado colonial garantiu”, ele mesmo tomou “a atitude de não procurar salvar nada” do que de seu deixou em Moçambique.

A excepcionalidade do sucesso da integração é um facto que tem na sua origem uma multiplicidade de causas, algumas das quais fruto dos portugueses da metrópole, outros dos próprios retornados, afirma Pena Pires, sublinhando ainda que esse sucesso foi orientado e construído pelo Estado. Foi decisiva a atitude do Governo para a assimilação daquela que é a maior deslocação de populações na Europa no século XX. “Mesmo no pós-II Guerra Mundial, o repatriamento é de 2% a 3%, nenhum foi percentualmente tão grande”, lembra Pena Pires, exemplificando que “o Reino Unido tinha um Império maior e teve 500 mil também, sendo que a maioria foi para os Estados Unidos”, enquanto “em Portugal, poucos foram para o Brasil e os que foram, na sua maioria, fazem-no com carácter transitório, para depois virem para cá”.

Fazendo a comparação com “o caso mais parecido”, que é, nos anos 60 do século XX, o da integração dos pieds-noirs, os colonos franceses que regressaram a França após a descolonização da Argélia e outras colónias francófonas, sob o Governo de De Gaulle, Pena Pires salienta que há diferenças fulcrais: “A sociedade francesa estava estabilizada, por isso, surgem sindicatos e o movimento pied-noir.”

Ora foi a noção de que os pieds-noirs eram em si um movimento de segregação que se prolongou e dificultou a assimilação que em Portugal houve cuidado para não repetir erros. “O comissário para os Desalojados pôs como condição ir a França ver o processo dos pieds-noirs” e os responsáveis com quem se encontrou “aconselharam a dispersão e assumiram que um erro francês tinha sido a concentração em Marselha” das populações coloniais vindas da Argélia, refere Pena Pires.

Outra decisão que teve como referência os pieds-noirs foi a questão das indemnizações. Em Portugal foram poucos os “tinhas”, ou seja, aqueles que lamentavam o que tinham perdido (recorrendo à expressão “eu tinha”) — “eram minoritários e pejorativamente designados” pelos próprios retornados. “Em França, as indemnizações são centrais, cá não se falou nisso” — uma atitude do Estado que “foi premeditada e inteligente, porque enquanto as pessoas estiverem direccionadas para o que perderam ficam ligadas a isso e não se identificam com o resto”, afirma o sociólogo.

Houve assim uma política de integração dirigida pelo Governo que passou por medidas legislativas. Pena Pires refere que “Almeida Santos fez as leis que deram ao retornado um estatuto legal”. À cabeça refere a lei da nacionalidade, que anteriormente e de acordo com as concepções do Estado Novo previa que “todos os nascidos em solo português eram portugueses”. A decisão de Almeida Santos é a de fechar o acesso à condição de português. Para o conseguir, retira o direito à “nacionalidade portuguesa a muitos dos nascidos nas colónias antes da independência, se não tivessem ascendentes até à segunda geração no continente. É isso que distingue os retornados dos imigrantes que vieram então e depois”.

Paula Teixeira da Cruz, nascida em Luanda, critica a opção restritiva da lei da nacionalidade. “Deveria haver liberdade de opção, não gosto de restrições de liberdade”, diz a actual ministra da Justiça, que adverte: “Ainda ontem [entrevista feita a 26 de Fevereiro] resolvi questões relacionadas com a nacionalidade de uma senhora, e há muitas por resolver.” Não se revendo no argumento de que haveria mais de um milhão de pessoas para integrar, Paula Teixeira da Cruz afirma que “também se dizia que era impossível absorver 500 mil”. E lembra que muitos habitantes do Império colonial de origem africana vieram para Portugal continental sem verem reconhecido o seu direito a serem portugueses: “Houve pessoas que ficaram prejudicadas. Havia essa responsabilidade moral. Quando Portugal colonizou, não perguntou se podia entrar.”
Almeida Santos assume que a decisão foi deliberada. “Era tudo português. Mário Soares e Vasco Gonçalves pediram-me uma lei generosa. Respondi: ‘Não faço.’” E argumenta: “Só tinha nacionalidade quem pelo menos era bisneto de português pelo nascimento. Senão o país ia ao fundo.”

Tomou como referência o caso inglês. “A lei da nacionalidade inglesa [quando da independência da Índia em 1947] foi generosa de mais e Londres tornou-se a capital mais indiana”, o que fez com que a lei fosse revogada pouco depois. A estratégia em Portugal foi, segundo o seu autor, a de dar nacionalidade “só a alguns e evitar que viessem todos”, pois “metade do Exército, por exemplo, era africano, e esses soldados queriam ficar com a identidade portuguesa para não serem perseguidos por terem sido do Exército português”. Os que vieram e não conseguiram provar que tinham ascendência na metrópole até à segunda geração ficaram, assim, como imigrantes.

O sucesso da integração é, segundo o antigo ministro, potenciado pela rapidez com que teve de ser feito. Uma rapidez que foi motivada pela descolonização negociada pelo Governo português com os movimentos de libertação das então colónias, e mediante a dificuldade de garantir novas incorporação de novos militares.

É essa rapidez em sair de África que é ainda hoje questionada. Alexandre Relvas afirma mesmo que “sem pensar em pôr em causa a independência” dos novos Países de Língua Oficial Portuguesa, o que mais questiona na descolonização “é que ela devia ter sido tratada de outra forma política, não se pensou na história de 500 anos”. E sublinha: “Não me vejo circunstancialmente lá, os meus avós foram para lá, os meus pais nasceram lá. As negociações deviam ter tido essa noção histórica. As Forças Armadas, com enorme responsabilidade, não estiveram à altura. Foi a despachar o mais rapidamente possível.”

Almeida Santos procura explicar os motivos da urgência em descolonizar. “Sempre compreendi as críticas fortes à concreta descolonização conseguida, mas quem faz essas críticas nem sempre teve conhecimento dos factores que dificultaram e sujeitaram a uma enorme pressão temporal a necessidade de descolonizar depressa.”

E sublinha que “a guerra tinha durado dez anos em três frentes. Morreu muita gente e muita também ficou estropiada. Isso imprimiu uma urgência à necessidade de fazer a paz”. Até porque “o Exército português, que nunca compreendeu muito bem as causas daquela guerra, a partir do 25 de Abril passou a defender e a pressionar a urgência da paz”. Para concluir: “Daí que sempre tenho compreendido as críticas fortes à descolonização, incluindo à minha participação nela, mas nunca essas críticas me criaram um problema de consciência.”

Para muitos que fizeram parte da descolonização, foi um processo feito à pressa e de forma leviana. Mas também reconhecem que foi, de facto, uma história de sucesso e um processo único.

Muito desse sucesso deveu-se à forma como foi feita a monotorização pelo Estado. Uma das principais ferramentas foi a integração de 45 mil funcionários públicos coloniais na administração do Estado do Portugal democrático, através do “quadro geral e adidos”.

Mas também houve por vezes “soluções surpreendentes” e pouco institucionais. Refere Pena Pires que os portugueses “só podiam trazer 15 contos”, pelo que, em Angola, “muitos compraram diamantes e trouxeram”. A certa altura, “Lisboa estava em risco de ser considerada um centro de venda clandestina de diamantes, e Almeida Santos, por decreto, deu dois meses para os diamantes serem entregues na Sociedade Portuguesa de Diamantes”.

Almeida Santos reconhece que a gestão governativa do processo de descolonização e de retorno dos portugueses foi feita de uma forma que potenciasse a integração e beneficiasse o desenvolvimento económico de Portugal. Explica, por exemplo, que a decisão de colocar os retornados que não tinham família nem habitação em hotéis teve que ver com a dinamização económica: “Nessa altura, os hotéis estavam vazios, o turismo paralisou com a revolução. Aproveitei os hotéis e pensões para alojar as pessoas.”

A monitorização foi feita pelo então criado órgão de supervisão, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN). “Criámos um organismo destinado a apoiar economicamente os retornados e esse apoio, que não foi tão significativo como desejávamos, não deixou de ter algum significado”, diz Almeida Santos. O antigo ministro sublinha que, “de um modo geral, os retornados regressaram com uma experiência económica talvez superior à média dos portugueses do continente, de tal maneira que a partir de certo momento foram tantas as novas unidades empresariais, algumas delas na área do comércio, da agricultura e da pecuária e da hospedagem, que passou a haver produção a mais e consumo a menos para algumas espécies pecuárias, como o peru”.
Houve também medidas de discriminação positiva, como foi o crédito conhecido pelo nome da comissão que o geria, o CIFRE, “um crédito especial para retornados, que atingiu 18 milhões de contos” e que provinha de “doações internacionais do Governo sueco”. Um crédito que apesar de tudo não favorecia especialmente os beneficiários, já que tinham de apresentar projectos sólidos e viáveis, pois “os projectos eram aprovados pelos bancos privados através dos quais o crédito era distribuído”.

Outra preocupação que é identificável no comportamento do Governo de então é a de que as medidas contribuíssem para não criar irritação nas populações metropolitanas. “Foi pequena a reacção, porque a ajuda do Estado foi pouca e todos tinham um retornado na família”, explica Pena Pires. Por seu lado, Almeida Santos salienta que “o povo português do continente foi heróico na atitude com que se solidarizou com os familiares ou simples conhecidos regressados das ex-colónias praticamente de mãos vazias.”

O que é facto é que há um contraste entre o que é a memória do sofrimento pessoal e o reconhecimento à distância histórica do sucesso global da integração. O basquetebolista Carlos Lisboa, nascido em 1958, na Cidade da Praia, em Cabo Verde, e que, em 1961, foi para Moçambique, lembra que “a palavra retornado era, na altura, demasiado agressiva”, e sublinha que “houve famílias que passaram maus bocados, principalmente as que vieram de Angola a fugir à guerra”, além de que “havia famílias que tinham mais dificuldades porque não tinham ligações profissionais a entidades estatais”.
Por muito que seja o sucesso global da integração dos retornados, de acordo com os entrevistados neste trabalho e de acordo com o estudo académico de Pena Pires, o lado negativo do processo de descolonização e o que implicou na ruptura da vida de meio milhão de pessoas é lembrado pelos que a viveram. A cineasta Margarida Cardoso, filha do oficial da Força Aérea Adelino Cardoso, que em 1965 foi colocado em Moçambique, sublinha que a descolonização representou “uma revolução e que houve pessoas que deixaram a sua vida”. Estas “criaram um movimento bom na sociedade para Portugal, conseguiram superar dificuldades e fizeram negócios, reconstruíram a vida”, frisa, mas adverte que “isso não faz esquecer que as pessoas deixaram lá a sua vida de uma forma injusta. Para Portugal, foi bom mas à custa de muito sofrimento das pessoas”.

Margarida Cardoso conclui sobre o lado mais dramático e pessoal da descolonização: “Não sou nostálgica, mas o empurrar as coisas, ver as nossas mobílias a ir para os barcos, marca. Pensaram que iam ter um lugar na sociedade, que não tiveram. A História é assim, é má e injusta. Há um trauma interno que é hereditário, que passa de pais para filhos. É uma mágoa que não passa, que não está resolvida.”

Uma experiência traumática que em muitos casos deixou marcas para a vida. “Leva a que muitos pensem que isto não é a terra deles, há um desprendimento, ainda que com percepções diversas. Eu, emocionalmente, continuo a ter uma coisa difusa, não era de lá, nem sou daqui”, confessa a cineasta.

O sentimento de não pertença é partilhado igualmente pelo escritor Valter Hugo Mãe, nascido em Saurimo (antiga Henrique de Carvalho), na Lunda Sul, no Norte de Angola. “Sinceramente, genuinamente, tenho dificuldade em lidar com os que desprezam a magnificência de África, mas também com aqueles que dizem a palavra África e choram e têm associações e objectos. Estou entre as duas coisas. Tenho dificuldade em dizer que não sou angolano, mas não posso falsear quem sou, não posso de repente ser mais angolano do que sou”, reconhece.

O escritor não hesita mesmo em assumir como a sua condição de retornado foi pessoalmente traumática. O pai foi um antigo militar que ficou em Angola como funcionário do Banco Nacional Ultramarino. Estava de licença, em Lisboa, quando se deu o 25 de Abril. “Ficámos cá, perdemos todas as coisas, a relação saudosista é feita pelos meus pais de forma magoada.” E explica: “Cresci com a percepção de que era nascido em África, mas nada em nossa casa contava aquela história. Percebi que era retornado com o preconceito em relação a mim. Por exemplo, uma empregada na escola primária dizia que os meus pais tinham vindo ocupar empregos e dava-me menos leite. De princípio, pensei que fosse eu um miúdo esquisito. Ela dizia que as mulheres em Angola tinham os filhos como as galinhas, punham ovos. E chamavam-me preto. Conscientemente, não tinha visto uma pessoa africana. Quando tinha oito anos, um miúdo disse-me que a tia tinha vindo de Angola e que o filho era escuro. Eu perguntei à minha mãe se ia escurecer, porque se escurecesse podia ser melhor.”
Esta discriminação em relação aos retornados é salientada por Paula Teixeira da Cruz. Embora garanta não ter tido “nenhuma dificuldade de integração”, pois a família em Luanda “periodicamente discutia o regresso” — que foi preparado previamente pelo pai”, permitindo que a sua família não passasse “por um processo de reconstrução material” —, a ministra assume que viveu “uma reconstrução emocional muito difícil”.

E afirma que acompanhou “muitos” processos complicados de sofrimento quando fez voluntariado, no Campo do Inatel, na Costa de Caparica, um dos campos que acolheu retornados. “Houve pessoas em campos, houve pessoas que foram para o interior e desenvolveram projectos, não podemos esquecer o sofrimento de cada um, foi um mudar completo de vida, um sofrimento cultural, um sofrimento de perda, foi uma experiência emocionalmente traumática.” A que se somou ainda “um anátema, que era o retornado que, por natureza, tinha de ser fascista”.

O biólogo e especialista internacional em morcegos Jorge Palmeirim nasceu na Guiné e viveu com a família em Moçambique e em Angola. Em 1974 veio para se instalar com a família, num total de sete pessoas, numa tenda de campismo gigante num terreno no Carrasqueiro, em Sesimbra, que era de uma avó. Também ele recorda que “havia uma tensão muito grande entre retornados e os portugueses” da metrópole e “havia a sensação de ter a vida desmoronada”. Este cientista sustenta mesmo que se mostrou a “face de uma esquerda cega, as pessoas pensavam que os retornados eram coloniais e fascistas”, enquanto “os retornados viam a sociedade portuguesa como responsável pelo desmoronamento das suas vidas”. Exemplificando: “Eu, nessa altura, andava com um emblema que dizia Angola. Agradava-me irritar as pessoas, era uma afirmação da minha identidade.”
Jorge Palmerim defende que “a maior parte dos retornados, na primeira fase, se deu mal, mas que depois se integraram”. E também ele salienta que “Portugal tem uma capacidade de integração fantástica, ao contrário dos pieds-noirs em França que levaram décadas a adaptar-se”. Em Portugal, sublinha, “três ou quatro anos depois, os retornados tinham conseguido integrar-se, o que é quase um milagre, integrou-se meio milhão de pessoas, também porque essas pessoas foram capazes de construir as suas vidas, abriram lojas, fizeram negócios, foram para as suas terras”.

O jornalista Emídio Rangel, nascido em Lobango (antiga Sá da Bandeira), em Angola, afirma que “a integração é uma história de sucesso”, porque, por exemplo em Angola, havia “uma aprendizagem em que as pessoas que tivessem capacidade se evidenciavam, conseguiam ter sucesso”. Por outro lado, salienta que com a revolução houve “uma paralisação da actividade económica” na metrópole que “beneficiou com a chegada de elementos que na região A ou na região B se propunham fazer iniciativas com sucesso”. Essa atitude “criou um clima que ajudou o país a desenvolver-se”, afirma, recordando que essa realidade foi divulgada, nos anos 1980, pelo “trabalho jornalístico do Fernando Dacosta n’O Jornal, que mostrou como as regiões se foram modificando por acção dos retornados”.

A integração dos retornados “teve um impacto muito grande no interior, que estava paralisado”, diz Pena Pires, mas ela foi potenciada pelo contexto revolucionário: “Eles mudarem para um país em mudança, o que facilitou a integração.” Há então um espírito de recomeço que Paula Teixeira da Cruz sintetiza ao dizer: “Importa que para quase todos era preciso começar de novo, o ter de começar de novo obriga a ter de inventar um novo espaço de intervenção. Lembro-me de ver nascer gelatarias abertas por retornados pelo país. Foi um movimento que renovou o tecido técnico e económico.”

Um dos exemplos desse espírito de iniciativa é a vivência da família de Tomaz Morais, presidente da Federação de Râguebi, seleccionador e treinador nacional de 2001 a 2010, campeão nacional e ibérico, nascido no Huambo (antiga Nova Lisboa). “Foi tudo muito rápido. O meu pai tinha uma posição forte na Fina, a empresa dos petróleos, e ele não podia sair de África. Nós estávamos no Lobito. Em 1975, a guerra pressiona e o meu pai começou a ser perseguido. Fugimos de um dia para o outro do Lobito para Luanda de traineira”, lembra, prosseguindo: “O meu pai foi à Bélgica, mas não conseguiu manter a situação na Fina, pois não estava disponível para voltar a Angola. Achou ofensiva essa exigência e deixou a Fina. Tentou o Brasil, não achou acolhedor. Veio para Portugal e com o meu tio Eduardo Salvação Barreto, que é pintor, abriu um take-away em 1976. O negócio envolveu a família. Todos tínhamos uma tarefa. Eu tinha seis anos e andava na rua a fazer recados. Era um projecto de sobrevivência.”

Muitas das pessoas que vieram contaram com a rede familiar de apoios ou com a solidariedade da sociedade, para além do Estado. “A capacidade extraordinária é do cidadão anónimo, como actualmente. É o avô, é o irmão, é o pai, é o tio, que dá uma mão, que dá um apoio financeiro, que ajuda a encontrar casa, que ajuda durante um período, e isso foi extraordinariamente marcante nesse tempo. E é tão extraordinário o que se passou que nem nós valorizamos, é como se fosse normal, é normal neste país ser-se solidário”, defende Alexandre Relvas.
E insiste: “Há uma coisa notável, a capacidade deste país de evoluir em termos sociais com a brutalidade com que é confrontado. A resposta que as pessoas dão ainda hoje ao desemprego, tal como na altura a forma como é assimilado meio milhão de portugueses, a capacidade de organizar as pontes aéreas, de instalar as pessoas em hotéis, que é uma capacidade do Estado, mas não só do Estado.”

É esse carácter de proximidade familiar e de solidariedade que é uma das razões do sucesso da integração dos retornados. Do meio milhar de portugueses que veio, “metade ficou na região que equivale hoje à Área Metropolitana de Lisboa”, e concentraram-se também bastante no Nordeste transmontano, explica Pena Pires. Apesar desta concentração tendencial, a “integração portuguesa é pulverizada”, porque a colonização tinha sido feita de “emigração recente” e assim “a maioria dos retornados vai para concelhos onde nasceram ou onde nasceram os pais ou os avós. Só os alentejanos não vão para a terra de origem e vão para Setúbal, que é para onde no século XX emigram os alentejanos”.

Outro factor decisivo foi a alta qualificação dos retornados. “No início da democratização, os retornados estavam em desvantagem quanto ao património, mas em vantagem nas qualificações”, afirma Pena Pires. “A ideia de que agora, pela primeira vez, há emigração muito qualificada não é verdade, as colónias eram o destino da emigração mais qualificada. Não era preciso mão-de-obra barata, havia isso lá, havia o colonialismo, por isso a população branca nas colónias era mais qualificada percentualmente do que na metrópole”, sublinha este sociólogo.

Do estudo que efectuou concluiu que, segundo os dados do Censos de 1981, “cerca um terço dos adultos com mais de 30 anos eram analfabetos”. No total da população de Portugal, os analfabetos eram 28,3%, enquanto 35,4% tinham a primária. Já os licenciados atingem 11% entre os retornados, mas apenas havia 2,3% de licenciados na população de origem metropolitana. Esta alta qualificação, em conjunto com a “convulsão política”, facilita que as pessoas que chegam aproveitem o facto de não haver “hierarquias estabilizadas” para ascenderem e se afirmarem socialmente.

Por outro lado, é esta população altamente qualificada, que está disponível e desejosa de se integrar, de encontrar o seu novo espaço, que permite “a expansão do Estado social, que foi facilitada pela vinda dos retornados altamente qualificados”, sustenta Pena Pires: “O Estado social pôde ser construído rapidamente porque havia uma reserva de professores e de médicos vindos de África.” O próprio crescimento do ensino universitário beneficiou, pois “os estudantes retornados não entram nas universidades clássicas, vão ocupar as universidades que estavam em formação fundadas pelo ministro Veiga Simão”, explica Pena Pires. Ou seja, o fenómeno dos retornados teve um peso específico na construção do Estado democrático. E embora reconheça que “já foi maior o peso dos retornados” na sociedade portuguesa, Pena Pires sublinha que “hoje são os filhos que têm peso e o terem vivido lá não é indiferente para explicar o seu percurso”.

Todos os aspectos da sociedade portuguesa foram atingidos por este fenómeno, incluindo a construção da democracia política. A integração dos retornados no sistema político geral “esvaziou a criação de movimentos de retornados, porque os que podiam preencher a liderança desses movimentos estavam ocupados noutros lugares” de liderança política. No plano autárquico, “foi grande a sua influência”. Isto porque “os retornados, sobretudo a norte, podem candidatar-se politicamente porque não há líderes”, frisa Pena Pires. “O ser de fora ajudou a fazer carreira política. A direita tinha pessoas muito conotadas com o fascismo.”

Este sociólogo relata que no inquérito que fez para o seu estudo “aos titulares das câmaras, no início dos anos 1980, 8% deles eram retornados”. Candidataram-se e foram eleitos pelo CDS e depois pelo PSD. “Pelo CDS cumpriam um mandato, depois candidatavam-se pelo PSD.” A sua opinião político-partidária “era mais contra a esquerda, marcada pela descolonização, eram contra Mário Soares, que era olhado como quem traiu.”

O facto de ocuparem o espaço político-partidário à direita contrastava com a abertura das suas posições em questões de costumes e civilizacionais. “Eram, por exemplo, a favor da despenalização do aborto, sei porque os interroguei na altura do primeiro debate [sobre despenalização em 1982] e eles eram favoráveis, tinham uma mentalidade mais liberal”, explica Pena Pires, que usa a sua própria experiência para exemplificar. “Eu vivi no Huambo e depois em Luanda, a vida era mais liberal, os liceus eram mistos, não tinham muros”, conta, prosseguindo: “Os funcionários públicos tinham férias graciosas. Fiz o primeiro período do 5.º ano do liceu no Porto, no Liceu Alexandre Herculano, e tive um choque, eu fui olhado como o terrorista que saltava os muros. Essa liberdade de vida marca a personalidade e a opinião sobre casos como o aborto.”

A diferença de mentalidade entre quem veio de África e quem vivia nas colónias era de um contraste imenso. O empresário Luís Montez não hesita em dizer: “O retorno foi notável. Sinto gosto de ter vindo de Angola, também para abrir a cabeça às pessoas, que atrofiavam. A sociedade portuguesa é mesquinha e pequena. Como já perdi tudo, se calhar sou mais atrevido. O essencial é ter princípios e educação, isso ninguém nos tira, agora perder o Mercedes e a casa na praia, arranja-se de novo mais tarde.”

A diferença de mentalidades e a abertura de espírito levavam a um maior liberalismo político. Emídio Rangel sublinha que “a democratização começa com as pessoas com formação, o que lhes permitiu entrar na discussão e serem elementos úteis”. E Alexandre Relvas lembra que “as pessoas que viviam em África sabiam dos movimentos de libertação, os que eram de segunda e terceira geração conheciam a situação, tinham feito o liceu com a geração de nacionalistas, não se conhecia Agostinho Neto, mas conheciam-se os primos”.
Também Paula Teixeira da Cruz depõe no mesmo sentido. “Em minha casa discutia-se política, trazia-se livros de fora, eu tinha mesada para comprar livros na Livraria São Luís [em Luanda], não havia limitações. Essa vivência cultural era extremamente importante. Li o primeiro livro de Marx aos 13 anos no liceu. Havia em Angola uma discussão que do ponto de vista cultural não havia aqui. Era uma mentalidade mais aberta. Havia PIDE mas havia debate.”

A actual ministra da Justiça cita mesmo a diferença de costumes e de mentalidade que transparece no quotidiano e no vestuário. “Lembro-me de vir de férias e sentir um país muito mais escuro e mais limitado, até na forma como as pessoas se vestiam.” Também Margarida Cardoso sorri ao lembrar: “Quem vivia em África tinha hábitos de roupa com cores, padrões, quadrados. Éramos apontados como vindos das colónias por causa das roupas.”

Já Carlos Lisboa sustenta que “as pessoas que viveram em África têm uma mentalidade diferente, pelo tipo de vida, por terem melhores condições de vida, tinham uma relação diferente com os outros”. E exemplifica: “O relacionamento com amigos em África deu-me uma visão de estar em grupo, de partilhar emoções, a vida colectiva era mais intensa.”

Por seu lado, Tomaz Morais garante: “O espírito alegre e de convívio tem que ver com as pequenas vitórias que vamos alcançando. Vejo isso em nós e nos meus primos. Foi a estrutura que ganhámos. Não há grandes egoísmos, há muito sentido de partilha e somos batalhadores por natureza.” E atribui essa característica à vivência africana: “Isto tem que ver com a vida em África. Nós vivíamos de portas abertas, os amigos entravam e saíam, eram quase irmãos. Chocou-me que cá era diferente, era fechado. A minha mãe diz que isso é de África, as pessoas eram optimistas por natureza e isso foi muito importante para a reintegração. A capacidade de liderança e o espírito de missão que os portugueses tinham em África trouxeram quando voltaram.”

Alexandre Relvas vai mais longe e afirma que o sucesso da integração dos retornados se deve à “própria personalidade portuguesa”. E explica: “Nós integramo-nos e sentimo-nos bem onde estamos, fazemos do mundo onde passamos a estar o nosso mundo com uma enorme facilidade, é este sentimento que me levou a integrar aqui, que levou o meu avô a integrar-se em África e que levou os avós de milhares de portugueses a integrarem-se bem e a viverem felizes em África.”

publicado às 19:46

His Master's Voice

por Nuno Castelo-Branco, em 11.03.14

De um ex-jornalista do ex- O Diário - uma desaparecida folha tão PC como o Avante! -, será lançado um book acerca dos acontecimentos que em 7 de Setembro de 1974, levaram à rebelião de uma parte da população de Lourenço Marques. Escutei o autor no tempo de antena propiciado por Mário Crespo na SIC Notícias. Para quem tenha memória curta ou uma total falta dela, as razões apresentadas  poderiam ser aceites sem grande celeuma, até porque decorridos quarenta anos, pouco ou quase nada resta de um Moçambique muito diferente daquele onde hoje esfarrapadamente se combate de norte a sul.

 

O que o ex-militar nomeado por Costa Gomes não disse ou não tornou explícito, foi o inegável facto desta sublevação ter sido o resultado de um crescendo de irritação por parte daqueles naturais de Moçambique  - que mesmo sendo de segunda, terceira ou quarta geração, eram agora chamados de "residentes em" -, obrigados desde Maio de 1974, a suportarem um ensurdecdor grasnar de iniquidades emitidas pelos senhores do Rádio Clube de Moçambique. Fiquei agora a conhecer o fácies de um daqueles que terá engendrado ou permitido as inacreditáveis e escandalosas emissões radiofónicas, copiosamente servidas até ao meu derradeiro dia naquela terra: 30 de Agosto de 1974.

 

O suposto MFA encartado esqueceu-se de dizer muitas coisas, entre as quais avulta a infrene propaganda anti-portuguesa difundida dia a dia pelos novos donos dos microfones. Para um justo e salutar tira teimas, seria interessante escutarmos hoje algumas dessas gravações, infelizmente para sempre perdidas. Pelas palavras proferidas esta noite na SIC, supomos então que gostosamente terá participado no processo. Pelo tu cá, pá, tu lá, pá facilmente implícitos, imaginamos o nível então conseguido naquela cada vez mais longínqua época. Era deveras insuportável. De um momento para o outro, fomos obrigados a ouvir todo o tipo de sandices, acicates ao ódio, "feitos heróicos" jamais ocorridos, mas atribuídos àqueles que Ribeiro Cardoso muito bem este serão apodou de turras. Era toda uma infernal panóplia preparatória daquilo que os tutores lisboetas pretendiam para Moçambique. Quem leia estas linhas, não pode conceber o que durante meses, os novíssimos His Master's Voice do RCM serviram até à mais abjecta exaustão. 

Fugindo a uma oportuna questão colocada por Mário Crespo, o ex-O Diário Ribeiro Cardoso limitou-se aos habituais artifícios dos "contextos e posicionamentos ideológicos" vividos naquela época. Mais ainda, fia-se na ignorância de quem o escuta, mencionando nomes que para a imensa maioria são desconhecidos. Falou do jornalista Areosa Pena, durante anos visita muito assídua dos meus pais e pai do Zé Orlando, amigo com quem ainda mantenho contacto. Muito antes do 25 de Abril, em Lourenço Marques era bem conhecida a sua filiação comunista, assumida sem rodeios. De ser simpatizante do PC nunca tal coisa escondeu e as discussões em nossa casa eram tempestuosas, à frente fosse de quem fosse. Enroupando-o como correspondente do Expresso de Balsemão, Ribeiro Cardoso citou o nome de um presumível camarada bastante engajado na luta pela entrega do poder total à Frelimo. Apenas cumpria aquilo a que o seu posicionamento político o obrigava. Este é o "contexto" que à maioria passará despercebido, mas nem por isso menos sintomático daquilo que a obra talvez pretenda.

 

Talvez? Talvez porque ouvi o autor, mas ainda não li o livro. Tenciono fazê-lo na diagonal,  repimpado na FNAC.

 

Naquele momento trágico de Setembro, já estava há uma semana em Lisboa e com quinze anos recentemente feitos, vivi com ansiedade as notícias que iam chegando da terra, aliás profusamente complementadas por telefonemas aos familiares que minuto a minuto, seguiram os acontecimentos. Ir telefonar aos CTT dos Restauradores tornou-se numa rotina diária do meu pai, exasperado pelas notícias transmitidas pela RTP. Na numerosíssima família, nem um só dos  nossos parentes participou na revolta. Eram Velhos Colonos, expressão que perdera todo o sentido ao fim de duas gerações, apenas servindo para tal como no Brasil acontece com os chamados quatrocentões, apontar grupos familiares pioneiros da soberania portuguesa.

 

Havia uma minoria de extremistas na condução da alteração da ordem pública? Havia. Havia exaltados? Decerto, mas o autor do livro finge ignorar a razão para tal raiva, sabendo ele que as emissões do RCM eram deliberadamente provocadoras e incendiárias. Nada foi por acaso, não há lugar para a contabilidade de inocências e "faltas de experiência". Nestes casos não existem acasos e "imprevistos de dinâmicas", porque a cartilha é conhecida e foi seguida com toda a minúcia. Houve deliberado dolo. Pelos vistos, o ex-jornalista  do ex-O Diário não assume as suas próprias responsabilidades, incómodo que contra as suas expectativas, agora  ganha contornos muito mais nítidos. 

 

Os furibundos colonos manifestaram uma compreensível ira libertada de humilhantes meses de "come e cala-te" e exaltados, gritaram um súbito não! aos vergonhosos espectáculos a que uma população incrédula foi obrigada a assistir. Militares recentemente chegados ao então chamado Estado de Moçambique, surgiam completamente desfraldados ruas e avenidas fora, cabelos e barbas à Che, postura arrogante, ordinária e provocadora. Eram uma malta, uns autênticos machimbas. Os abusos, insultos e piadolas tornaram-se frequentes, colocando-os num patamar muito distinto daquele exército que durante muitas décadas fora o português. Ribeiro Cardoso fala facilmente de "desvairados, criminosos e loucos", esquecendo-se habilidosamente de mencionar nomes que não podendo de forma alguma ser conotados com o "antigo regime", mostravam-se visivelmente indispostos pela forma repugnante como as autoridades de Lisboa estavam a conduzir todo o processo. Um dos indignados era o Dr. Neves Anacleto, avô de Francisco Louçã. Era uma relíquia, um dos derradeiros republicanos reviralhistas, homem de bem e infinitamente mais credível do que sobejamente conhecidos caçadores de fortunas que ainda medram na praça lisboeta, presidindo a partidos e mantendo bons e vitalícios negócios. São os "santos varredores", à imagem daqueles peixinhos limpa-aquários, mantendo-se sempre à tona, tanto no "antes" como no "depois". Em Lourenço Marques, Neves Anacleto tinha sido o eterno opositor de Salazar e naqueles dias de Setembro terá manifestado o seu repúdio por tudo o que  Lisboa permitia e pior ainda, ainda iria fazer. Durante a revolta, o seu nome foi bastas vezes mencionado.

 

A tropa MFA portou-se miseravelmente, há que dizê-lo e repeti-lo infinitamente, sem rodeios. Em 2014 terá a sua comemoração já bem esbatida pelo correr das décadas, pela chancela da lei da morte e sobretudo, pelos visíveis resultados provocados pela debandada a que obrigaram centenas de milhar de concidadãos. Enquanto viverem, estes jamais esquecerão. Ainda ontem e sem que houvesse qualquer razão para tal, o patético dr. Soares voltou a mencionar a questão da descolonização. O pobre homem já nem sequer tem o necessário discernimento que lhe permita pela ora contornar tal escolho, pois nele sempre embate numa manifesta declaração da má consciência.

 

No fundo, o PC age correctamente, fazendo aquilo que lhe convém. Preparemo-nos então para uma bem esfregada barrela, mas de uma coisa poderão estar certos: eles sabem que nós sabemos a verdade. É inesquecível e imperdoável.  

publicado às 22:23

Postas de pescada

por Nuno Castelo-Branco, em 28.02.14

A propósito  de um livro recentemente publicado, João Soares está na SIC Notícias a puxar pelos galões republicanos. E do que fala ele? De Nova Lisboa, vulgo Huambo, cidade "totalmente republicana". O homem está deslumbrado com a obra portuguesa em Angola - aproveita para secundarizar Paiva Couceiro e "outros" - ,  tece loas ao que foi construído e recorda Norton de Matos, um bom republicano, sem dúvida, mas a antítese daquilo  que republicanismo soarista sempre significou. 

 

Nova Lisboa é a Huambo que foi arrasada a tiro de canhão pelos camaradas de Soares. Camaradas de "lutas" como o MPLA - aliás, seu colega na Internacional Socialista - e camaradas de "boas causas" como a UNITA, cujo chefe era seu compadre. Não esquecer os bons ofícios destrutivos de alguns camaradas ainda bem próximos, colegas de partido e camaradíssimos por apertados laços de sangue. 

Nova Lisboa foi destruída e vai sendo lentamente reconstruída. Um escusado desastre em nome de quê e para quê? Onde está a azáfama económica  de há quarenta anos? O que aconteceu ao Caminho de Ferro de Benguela e em que estado se encontram as suas outrora colossais e moderníssimas oficinas? O que sucedeu às escolas, hospitais, postos médicos, armazéns, fazendas e toda uma série de infra-estruturas que faziam da Angola de 1973, um exemplo de progresso sustentável?

 

João Soares pode despejar as postas de pescada onde quiser, mas não convence nem o mais distraído. Haja um mínimo de pudor. 

publicado às 21:42

Em época de vendavais

por Nuno Castelo-Branco, em 11.02.14

 

Velhos Colonos: a minha avó Irlanda (1916), o meu pai (1934) e o recém-nascido tio Mário (Lourenço Marques, 1939) 

 

Sabemos bem o que se passou a partir do verão de 1974. No aeroporto Gago Coutinho desembarcaram dúbias individualidades à paisana, prestimosamente assistidas por uns fulanos de farda já amarrotada, barba por fazer, palito ao canto da boca e olhar sobranceiro. Vinham liquidar a presença portuguesa em Moçambique e detendo a titularidade do poder, ou mais importante ainda, o dedo no gatilho das G-3, garantiam que as coisas se passassem como o figurino aprovado pelo partido exigia. Se ao mesmo tempo conseguissem amealhar uns cobres, melhor ainda.

 

E foi precisamente isso o que fizeram. Desde logo começou a roda viva das negociatas de transferência de divisas, pois na sua proverbial cegueira, a gente do Estado Novo obrigou o Ultramar a possuir moeda própria em cada uma das suas parcelas. Estupidez superlativa, essa ausência de um Escudo comum consistiu num dos aspectos mais criticados e atirados à cara das autoridades que ignorando a realidade no terreno, da Metrópole chegavam para as conhecidas e rendosas comissões em Angola, Moçambique, etc. Não importando quem fosse o imbecil nomeado pelo senhor engenheiro-doutor cunha, logo passava à frente de qualquer natural da Província, por mais branco, goês, preto, mulato ou chinês que este fosse. Era assim mesmo.

 

Grandes negócios foram engendrados. Os camaradas de uniforme acirraram-se nas "véstorias" - não é assim mesmo que certa gente bem colocada diz? - de caixas e caixotes dos naturais daquela terra que fugiam espavoridos pelos discursos  transmitidos por libertadores que jamais haviam conquistado uma vilória, por mais ínfima que esta fosse. Trocavam Escudos de Moçambique por Escudos de Portugal ao preço de 3 por 1, logo aumentando o esbulho para 4 e até 5. O agiotismo atingiu o paroxismo quando a data da independência se aproximou, levantando-se todo o tipo de obstáculos possíveis e imaginários. Após o 25 de Junho de 75, qual foi a sede de depósito de bens à confiança? Desgraçadamente,  a embaixada/consulados de Portugal em Moçambique.

 

As muitas dezenas de cartas que se encontram na posse de milhares de naturais do Ultramar, são eloquentes testemunhos do que se passou. Papelada para tudo e para nada, listas que eram arbitrariamente riscadas, bens deliberadamente pisoteados diante dos seus proprietários, enfim, tudo se fez às claras e sempre com um requintado prazer ditado pelo livre arbítrio. Muitos ainda recordam os palavrões e os dichotes ameaçadores, o gozo pela tortura moral de quem estava à mercê. São tristemente célebres, os factos que se contavam acerca de fulanos engalonados que se forneceram de móveis, enxovais, bibelots e electrodomésticos, logo os fazendo embarcar para a Metrópole. Pasmaram os Velhos e os Novos Colonos de Moçambique, pois tal coisa jamais se vira. 

 

Vão agora as associações de espoliados numa via sacra até S. Bento. Sabendo-se da inexistência de qualquer possibilidade de remédio à situação que foi imposta a centenas de milhar de pessoas - os milhões de infelizes que lá ficaram, são outro assunto que preenche o noticiário do dia a dia -, convém manter a memória dos inegáveis factos ocorridos há quarenta anos. Falam as associações de reparações materiais, quando o que a todos os "retornados" mais interessa, será um mea culpa dos herdeiros do Estado de 1974-76. É a obrigatória reparação moral que mais falta faz. 

 

Começam pelo PC dito P, supina ironia. Obrigam os negacionistas a uma audiência que lhes será imposta pelas regras do Parlamento. Têm os comunistas representação parlamentar? Por incrível que possa parecer, sim, têm. São assim forçados à recepção de gente que deliberada e conscientemente prejudicaram, numa ânsia de prestação de serviços à potência que então os tutelava e sustentava. Obrigar o PC e tralha anexa a escutar aqueles que odeiam, eis um quase anedótico caso que deveria ser filmado em directo. 

publicado às 12:18

 

Nesta infausta e felizmente já "descomemorada" data, nada melhor tenho para fazer, senão publicar uma carta escrita nos finais do já longínquo ano de 1974.

 

Tendo ficado em Lourenço Marques até 1976, a minha avó assistiu a todo o processo de debandada que culminaria com o forçado abandono de Moçambique por parte de toda a sua familia. O seu pai, estabelecido em Lourenço Marques desde o início do século,  ali morreu em 1975 por altura da independência e a sua mãe que jamais visitara o Portugal Continental, também viria para a antiga Metrópole. Como era seu hábito, trata-se de uma longa missiva por vezes quase telegráfica e que ainda caía na tentação do uso do português de outros tempos. Nestes papéis apercebemo-nos da catástrofe que se verificava nos serviços públicos já a mercê do oportunismo de muitos, da incompetência dos neófitos e de uma total desorganização tornada inevitável pela abrupta partida de quadros da administração do ainda Estado de Moçambique. O papel das Forças Armadas Portuguesas foi aquele que bem se conhece, sumariamente podendo ser classificado como prepotente, escandaloso e cobarde. A mencionada requisição de navios que procederam à evacuação de militares e respectivas famílias - não esquecendo os preciosos teres e haveres, muitos destes adquiridos ao desbarato aos "colonos" - é apenas um dos tristes episódios que salpicaram a reputação de uma instituição até então por todos considerada sagrada.

O Miguel, a minha mãe, a Angela e eu, com a avó (L.M. Moçambique, 1966)

Alguns nomes foram por mim deliberadamente ocultados, evitando a reabertura de pequenas feridas - que hoje não têm qualquer relevância - perpetradas por gente excitada pelos acontecimentos e que talvez não tenha querido hesitar antes da tomada de algumas atitudes desnecessárias. 

 

Existem muitas dezenas de cartas deste período, ciosamente guardadas pelo meu pai, um felizmente incorrigível arquivista. Estes papéis são verídicos testemunhos de muitos acontecimentos completamente desconhecidos pela sociedade portuguesa. Convém guardá-los e dá-los a conhecer, pois a preservação da memória é o que nos resta. 

 

 

"Lourenço Marques, 8/11/74

Meus queridos filhos e netinhos

Anteontem pouco antes do meio dia foi quando escrevi as últimas linhas da carta que enviei via "Expresso". Não sei se me expliquei claramente, assim volto a dizer agora o mesmo.
Na CCN (1) dizem que a "sede aí é é que tem de mandar aviso Telex para a filial aqui com ordem de pagamento a ser feita cá". Eu já levava dinheiro para o fazer e nada adiantei. Tratar quanto antes do assunto que eu para a semana vou passando pela CCN a saber se já mandaram a ordem de pagamento. Meu Deus, tantas arrelias juntas. Disseram-me que a culpa foi de quem mediu os contentores, é melhor ir sempre a mais e pagar cá. Estava lá uma senhora a dizer que sabia como era. Mediam a menos para se valerem e mesmo receber gorjeta e os interessados que se arranjassem aí. Que sabia de muitos casos. Só penso que se já têm casa (2) devem estar mortinhos para a ter arranjadinha, o tempo como está? Já deve fazer frio. 
Fui à Inspecção de Crédito falar com a D. Irene Santos. Foi ela quem tratou da renovação do cartão da mesada da Prazeres (3) (ainda não lhe mandei o cheque de Setembro, não tenho cabeça nem disposição para escrever). Disse-me que as transferências estão suspensas e é verdade. Que os funcionários que foram "via turismo" não têm direito mesmo que houvesse dinheiro porque foram à sua custa, e é o teu caso, não é assim, Ana Maria? Deram-te a licença graciosa mas não as passagens. Pode ser que eu esteja enganada, mas lembro-me de ouvir qualquer coisa sobre isto antes de embarcarem. Mesmo no BNU estão as transferências suspensas. Não sei quantas vezes eu lá fui e quando lá chego antes de abrir as portas já a bicha é enorme. Enquanto estiver o aviso afixado na porta a dizer que estão suspensas as transferências, nada feito sobre as pensões. 
Se não me engano já mandei dizer qual o dinheiro vosso que tenho. Em caixa deixado por vós antes de partirem = 700$00 mais 25$50 em moedas 2.000$00 pagos por M. Graça Fernandes = 2.725$50.
A XXXXXXXX veio pagar domingo passado 14.000$00 pelo aparelho de ar condicionado. Quando lhe telefonei disse-lhe que preferia em dinheiro em vez de cheque como queria pagar. Que não podia fazer. Lá tive que ir depositar o dinheiro e assim quando preciso de dinheiro só posso levar dez contos por semana, um dia = 4 contos, outro dia = 4 contos e no terceiro dia = 2 contos. É uma bicha tremenda. Quando estranhei serem só catorze contos e lhe mostrei a factura que tinha mesmo ao lado da mesinha do telefone disse-me logo que lhe tinhas falado em catorze e não em catorze e quinhentos. Sempre quero ver se dará o que falta. Também me disse que os 4 contos não eram divida dela mas sim do irmão e da cunhada, que tinha ficado acordado contigo pagar mil escudos por mês. Que quando eu fosse novamente com a tia Mimi à consulta (vou na terça dia 12), a cunhada me pagaria qualquer coisa. Eu que ando a pé e sou velha é que tenho de lá ir. Esta gente não é nada atenciosa. A YYYYYYYY está na África do Sul, só para o fim de semana é que virá. Foi o que me disseram quando telefonei. O Sr. Inácio Ribeiro foi mais cortez, mas é pouca coisa o que tem para me entregar.
Agora vende-se tudo ao desbarato, por este andar só quem mesmo não pode é que não procura novos horizontes. No mercado negro dizem que para receber 100$00 daí temos que dar 300$00. Quando se pergunta quem o faz ninguém sabe e qualquer dia estará a 400%. Anda tudo louco. Não há navios para passageiros e carga. Até Março é para militares e famílias e material de guerra. Estamos abandonados. Não é costume nestas ocasiões fretarem navios e mesmo aviões para quem quer ir embora? Coitado do Avô (4). Diz que da sua casa não sai, mas está tão abalado que não sabemos quanto mais viverá. É a velhice. Vai-se apagando pouco a pouco. A Avó tendo que sair prefere ir para a A. do Sul que é clima mais quente, o Carlos, a Bolívia e a Mimi (5). A Maria Jesus (6) diz que vai com os filhos para lá, só está à espera do emprego que lhe prometeram em Durban. Mais ou menos o mesmo que cá faz. O Zeca (7) começa a trabalhar lá em Janeiro, a Laura (7) já está a desmantelar a casa. Enfim, a família vai cada um para seu lado. A Loti (8) conta embarcar no fim de Dezembro. Eu que faço? A Adélia (9) embarcou domingo passado com os miúdos e a mãe. Estão a viver em Portimão. O Mário (9) para o mês que vem embarca a gozar férias. Conta ficar uns tempos por cá e prefere então ir para o Brazil. Já está a tratar para ali se fixar. Fala em Porto Alegre. O Mário vai passar o natal aí e volta para cá até ir para o Brazil. O mobiliário já está a ser encaixotado e segue no fim de Dezembro para o Brazil. Vai junto com bagagem de uma família amiga. 
Eu ando a tratar da minha pensão de sobrevivência. A Adélia andou lá mas tudo agora é muito moroso. mandaram-me ir para a semana. Quero ver se ainda tenho chance de a transferir para aí antes de vinte e cinco de Junho, tenho até morrer. Assim não perco tudo, bem basta a casa ficar cá. Pena tenho eu de não a poder levar às costas. Eu ando muito nervosa (quem não anda?) quantas vezes não digo que era preferível morrer, tanta cousa triste neste último ano! Não sei se leve a tralha (caso haja navios de carga) e venda aí mesmo ao desbarato mas o dinheiro corre no mercado e o de cá só se for (10) para limpar o...! As lojas estão vazias, as pessoas que foram, como não dão transferências gastaram todo o dinheiro que cá tinham. Foi uma das razões porque os bancos agora só deixam levantar dez contos por semana. Mandem dizer o que na minha casa vale a pena levar. Parece-me que há gente da A. do Sul interessada em mobílias de talha, pagam em rands. Sendo assim vendia a mobília de quarto. Para mim um divan faz de cama e o resto do quarto a fazer de salinha com as minhas recordações já me chega. Ao que a gente chega. Nem se pode morrer em paz. 
Esta semana fui ter com o Jorge (11). Disse-lhe também que já tinha vindo a minha casa, ao sábado e domingo na verdade nunca estou.  Ao sábado casa da tia Bolívia e Avós e ao domingo com a Adélia e Mário. Ontem à noite o Mário veio buscar-me e fomos ao cinema ver uma comédia. Nunca julguei que pudessem fazer filmes tão cómicos, sem ser as parvoíces de outrora. Agora metem política e é cada uma. Olha, fartei-me de rir. O filme de bonecos animados era mesmo bom. Passado numa escola. Como estava dizendo estive a conversar com o Jorge. Diz que vai haver barulho lá mais para diante. Como a Vira (12) também passou e ficámos a conversar, não adiantou mais nada, de maneira que não sei o que conta fazer. Sobre a tua mãe, Ana Maria, nada sei. Uma senhora que estava ao balcão é que perguntou se eu era a mãe do Vítor e que quando fosse à Caixa para lá passar, pois tinha uma encomenda para ti. O Jorge falou em cheque... mas nada havia. O contrário é que seria de admirar. É a tal Margarida de que falaram numa carta.
Sobre o emprego estão satisfeitos? Aparecendo cousa melhor é aproveitar. Escuta aqui, escuta acolá e olho vivo poderá ajudar para cousa melhor. O que interessa é na verdade ganhar para comer, para a casa e para os estudos. Como está a Angelinha? O Miguel e o Nuno, bons? A Ana Maria não diz nada sobre a saúde, bem agasalhados por causa do frio é o que eu peço para fazerem. Fui agora à caixa do correio mas não tenho correspondência. A semana passada recebi duas cartas em dois dias seguidos ou foi no princípio da semana? Desculpem a minha cabeça anda tão cansada. Isto é uma baralhada medonha! Quando estou sozinha farto-me de chorar, e quando quando ando na rua melhoro mas, o pior é que quando chegou a casa está tudo por fazer. Não encontro tempo para tudo.
Todas as pessoas amigas vos mandam muitas saudades. Mais uma vez o seguinte: (quanto antes têm que ir à sede CCN pedir para mandar para a filial de cá um Telex a confirmar o pagamento cá. Não vindo a ordem da sede aqui não recebem o dinheiro) Entendido?
Muitos beijinhos e muitas saudades da mãe e avó muito e muito amiga
Irlanda"


(1) CCN, Companhia Colonial de Navegação.


(2) Vivemos no Parque de Campismo de Monsanto até ao verão de 1975.


(3) M. dos Prazeres, a irmã do meu avô, residente em Valença do Minho.


(4) O meu bisavô. Vivia em Moçambique desde o início do século XX.


(5) Carlos, Bolívia e Mimi, irmãos da minha avó.


(6) Maria Jesus Branquinho, cunhada da minha avó.


(7) Zeca e Laura , irmão e cunhada da minha avó.


(8) Leontina (Loti) Tenreiro, irmã da minha avó.


(9) Adélia e Mário, a nora e o filho da minha avó, meus tios paternos.


(10) Uma conhecida expressão de desânimo que a minha avó substituiu por reticências.


(11) O tio Jorge, irmão da minha mãe.


(12) Elvira, uma prima do meu avô.



publicado às 19:20

Moçambique: nova guerra

por Nuno Castelo-Branco, em 11.06.13

 

Trata-se de um postal dos meus tios-avós Bolívia (Bibi) e Ernesto, endereçado ao meu pai por altura do ano novo de 1976-77. Pouco mais de um ano de independência e já o país estava novamente em guerra, desta vez com os rodesianos. Daí o conflito alastraria ao interior de Moçambique, provocando incontáveis as vítimas, a estas ainda se somando catastróficas fomes, maciça deslocação de populações e incontroláveis surtos epidémicos. Julga-se terem morrido mais de um milhão de moçambicanos durante os vinte anos de conflito.


"Meu caro Victor
Muito obrigado pela tua carta que há dois dias recebemos. Faço votos para qe todos vós: tu, tua mulher, teus filhos e tua mãe gozem de perfeita saúde e que o ano novo seja para vós o melhor possível. Por aqui há paz e sossêgo, excepto junto à fronteira com a Rodésia, onde às vezes há pancadaria valente. Nós cá vamos andando menos mal, adquirindo novas relações.
Afectuosos abraços do Ernesto e Bolívia"

Os tios-avós Ernesto e Bolívia (LM, anos 50)

publicado às 15:00

Moçambique: o "Homem do Mato"

por Nuno Castelo-Branco, em 10.06.13

 Acabado de chegar a Moçambique, faz-se à foto (à esq.) após uma caçada (Zambézia, finais da década de 20)

 

Nasceu em 28 de Maio de 1907 em Valadares, filho do  brasileiro Abel Graça, de Ouro Preto, Minas Gerais, e de uma portuguesa que dele tendo quatro filhos, enviuvaria aos vinte e quatro anos. Arlindo partiria para Moçambique nos finais da segunda década do novo século, ingressando no quadro administrativo da colónia. Colocado na Zambézia, de Portugal chamaria a noiva Alice Augusta Castelo Branco Vilaça (n. S. Miguel de Seide, 1907 - m. Lisboa, 1977), com ela se casando em Milange. Era um homem de muitos interesses, ávido leitor, filatelista, caçador e um exigente organizador dos serviços administrativos das regiões que o governo-geral lhe confiara.

O Administrador ADG resolvendo um milando familiar (pintura de Ana Maria Plácido Castelo Branco ©)

 

O seu arreigado patriotismo mitigara as clivagens entre as opções monárquica e republicana, logicamente secundarizadas após a acalmia decorrente dos acontecimentos de 1926. Aceitava o status quo que possibilitava uma muito almejada ordem, mais do que nunca necessária para o exercício de uma soberania até então abertamente contestada, quase teórica. A presença de importantes companhias estrangeiras no território moçambicano, prejudicava o poder português sempre ameaçado de intervenção da cada vez mais autónoma África do Sul do ainda General Jan Smuts. A dependência do hinterland britânico - a Federação das Rodésias e da Niassalândia - relativamente aos portos da Beira e de Lourenço Marques, era uma consequência directa da complexa partilha de territórios à qual Londres aquiescera, na condição de o império português, aliado dos ingleses, servir simultaneamente de tampão a outras ambições europeias com quem os britânicos forçosamente teriam de contar. No caso moçambicano, o poder rival indubitavelmente seria o da ambiciosa Alemanha do Kaiser Guilherme II. O Moçambique português era assim um mal menor, para mais também invadido por comerciantes e empresas que iam dominando importantes sectores económicos da colónia. Com imensas possibilidades agrícolas, Moçambique sempre foi o destino de ambiciosos investimentos estrangeiros.

O hastear da Bandeira (Panda, 1949, pintura de Ana Maria Plácido Castelo Branco ©)

 

A positiva modificação da situação interna portuguesa e nos anos trinta, o claro declínio britânico na correlação de forças na Europa e na Ásia, implicariam um novo fôlego para as autoridades de Lisboa, iniciando-se o progressivo enfraquecimento do quase livre arbítrio e tutelar presença estrangeira nas nossas possessões ultramarinas.

Fazendo o levantamento de problemas apresentados pela população (pintura de Ana Maria Plácido Castelo Branco ©)

 

Relevantes sectores passaram a ter uma mais forte intervenção nacional e no interior, as autoridades locais ganharam força para marcar o novo tempo, não hesitando em manifestarem de jure e de facto a proeminência da potência soberana internacionalmente conhecida. Nas circunscrições por onde o meu avô exerceu as suas funções, normalizou-se o hastear da Bandeira, um evento ao qual assistiam os negros, os portugueses locais e metropolitanos e aqueles estrangeiros - fossem eles ingleses, italianos, indianos do Raj britânico, alemães, libaneses, mauricianos, chineses ou gregos - que residissem nas imediações da sede da circunscrição. Para trás ficavam os tempos do Ultimatum e as ostensivas vassalagens que de longe vinham e se tinham prolongado mesmo após o fim da caótica 1ª República. 

 O casamento com Alice Augusta, em Milange, Zambézia (1932)

 

Claramente pró-britânico, cumpria a tradição de antanho da política de alianças portuguesa, mas sempre vincando uma autoridade e autonomia agora bem diferentes daquelas que até há pouco eram meramente ilusórias. Durante a II Guerra Mundial fez rigorosamente cumprir os requisitos ditados pela neutralidade, embora todos conhecessem a sua anglofilia. Cria firmemente na imperiosa formação de locais, com o fim de preparar o território para uma evolução que à época ainda não poderia ser outra, senão uma ainda nebulosa ideia de um Grande Portugal de autonomias, talvez um decalque daquilo que então já existia além-fronteiras, a Commonwealth. Sendo um firme crente na perenidade da presença portuguesa naquela parte do mundo, aí chamaria a mãe e os irmãos, todos eles para sempre se estabelecendo em Moçambique. 

 

Recém-casados, na Zambézia (Moçambique, 1932)

 

Reuniu um valioso espólio documental do levantamento etnográfico das circunscrições que administrou, - desde cedo instou a sua filha, minha mãe, a recolher em telas hoje reunidas numa colecção de perto de duzentas pinturas, todos os aspectos da vida das populações -  assim como de pareceres acerca da melhor administração, relatórios dos tempos da guerra e das actividades dos súbditos estrangeiros no território nacional. Uma grande biblioteca, a sua excelente colecção filatélica e numismática e os seus acarinhados uniformes, infelizmente para sempre se perderiam na tempestuosa voragem dos tempos da independência.

 

A minha avó seria em 1976 violentamente espancada por soldados da guarda presidencial de Samora Machel. Às portas do Palácio da Ponta Vermelha, alegaram ter ela proferido insultos contra Sua Excelência o presidente e agiram em conformidade com aquilo que lhes pareceu honradamente mais azado, usando-a como se um saco de pancada fosse. Quase de imediato deportada para Portugal num avião dos TAP, aqui chegou de maca, sendo hospitalizada. Dias depois, na antiga Lourenço Marques, era a sua casa alvo do mais descarado vandalismo e saque sem as peias de qualquer tipo de  legalidade, espalhando-se e destruindo-se  a grande biblioteca, milhares de fichas e uma incontável quantidade de dossiers pela zona da esquina da Av. António Enes com a Av. 24 de Julho. Os primos Leta e Rui Graça entrariam no apartamento devassado, onde livremente circulavam os saqueadores que carregavam tudo o que bem lhes aprouve. Avisado o Consulado de Portugal situado a escassos metros de distância, rigorosamente nada foi feito para impedir o ultraje.

 

Na sua proverbial modéstia, o avô não mencionou a sua espantosa colecção filatélica, criteriosamente enriquecida ao longo de mais de vinte anos, catalogada, comentada e encerrada em dezenas de grossos álbuns. Esperemos que a sua captura pelos ladrões, tenha possibilitado a sobrevivência e um destino condigno. O saque tinha sido organizado e os meliantes mais importantes sabiam ao que iam. Quase nada se salvou e às mãos dos meus pais apenas chegaria uma pequena maleta contendo umas tantas cartas, alguns textos, uma das condecorações, distintivos de posto e pouco mais. Aquele precioso arquivo onde se incluíam milhares de fotos inéditas da vida selvagem moçambicana, do dia a dia das populações e das suas actividades económicas, teria um dia como destino, o Estado português. Foi este espólio ignominiosamente destruído, atirado para a valeta. 

 

O avô morreu inesperadamente em 10 de Agosto de 1955, aos quarenta e oito anos de idade, vitimado por uma embolia causada por uma injecção mal dada. Estes homens do mato, isolados e entregues a um microcosmos de sociedade europeia, insistiam na troca de correspondência, mesmo que esta fosse endereçada a alguém residindo a dois passos de casa. Era um escape de urbanidade, um desejo de "algo que fique". Neste 10 de Junho de 2013, aqui deixo aquele que decerto foi um dos seus últimos textos, a carta que ainda sem o poder saber, seria de despedida aos amigos e colegas de hobby. Permanecendo ainda hoje naquela terra que considerava sua, este avô está sepultado em Lourenço Marques, no cemitério onde também jazem a sua mãe e dois dos seus irmãos.

 

O Homem do Mato que infelizmente jamais conheci.

 

 

***

 

Confidências aos "Homens do Mato"

 

Toca a corneta, o sino ou o ferro, já não se vê a secretaria e os funcionários do mato dão por findo o trabalho do dia.

O Sol lança clarões de chama iluminando a terra num crepúsculo feérico.

Começa a noite e os homens que durante o dia em nada mais pensaram além do serviço ficam indecisos, trocando palavras sobre os trabalhos do dia seguinte, como se lhes custasse sair do ambiente da papelada e dos negros em que absorveram toda a atenção.

Para onde ir? Que fazer? As horas até ao jantar, duas ou três, custam a passar. Que fazer? Jogar? Não há parceiros para formar uma mesa de bridge. Ler? Sim. E depois? Do jantar até à chegada do sono?  Horas propícias para a leitura. Ir até à cantina para dois dedos de cavaco? Vá. Mas nem sempre, porque não convém por vários motivos e porque fica caro, por vezes, o motivo da conversa. Último recurso - ir para casa pacatamente.

O whisky das cinco, na cantina (Zambézia, anos 40, pintura de Ana Maria Plácido Castelo Branco ©)

 

Ali novamente se impõe o problema, que fazer? Ler? Não se pode estar todo o dia a ler e a escrever e continuar a ler e a escrever em casa, ainda que a leitura seja diferente. E mais, um livro no mato lê-se num dia; cada livro custa mais de 20$00 - façam as contas e vejam a renda mensal que é necessária para gastar com o divertimento útil e agradável da leitura.  A conclusão a que se chega, é esta: é necessário economizar a leitura, fazer render o prazer que nos dá deixar o livro para a cama (sala de leitura do "Homem do Mato") e não se entusiasmar, pois sofrerá o desgosto de ter numa noite, ou parte da noite, gasto o prazer de várias sem poder renovar, pois não sei se sabem - no mato não existem livrarias e os livreiros, os correios e os transportes não se condoem dos gulosos que gastam sem conta a sua distracção espiritual em menos tempo que levam as remessas de material (livros e revistas) a chegar-lhes às mãos. E neste caso, sem ter que ler, as horas mortas tornam-se mortais e o aborrecimento procede à carga das baterias da "neura", espectro do "Homem do Mato". 

Sou "Homem do Mato". Tenho tantos caixotes e malas de livros que me envergonha tanta bagagem (e custa-nos os olhos da cara quando mudo de lugar e o "Homem do Mato" é uma espécie nómada, anda sempre de casa às costas, de Herodes para Pilatos, do Sul para o Norte, do Norte para o Centro e vice-versa - coisas do serviço). Os cobres, as pratas e as economias vão-se transformando em papel impresso, melhor ou pior encadernado, dando-nos conhecimento de levantados ideais, valiosas ciências e encantadoras histórias. O livro é a coluna que sustenta o espírito do "Homem do Mato", mas é também o cancro que lhe corrói as finanças.

Ora, isto tudo vem a propósito do emprego do tempo que medeia entre o fecho da repartição e a hora do jantar. É o problema que resolvi satisfatoriamente.

Um dia, em Lourenço Marques, encontrei um amigo que se confessou filatelista. Já eu o tinha sido nos velhos tempos do Liceu e francamente, não tinha achado "piada" nenhuma ao facto a não ser a que num dia de aperto, vendi o álbum e recheio por dez escudos! E lá iam alguns D. Marias. Quem mos dera agora.

Julguei na altura que o amigo, com as suas altas qualidades de inteligência e posição social tinha um fraco, como muitos outros ilustres homens. Coitado, deu-lhe para ali, como podia dar-lhe para pior - dizia aos meus botões.

Almoço em Panda (Moçambique, 1950, pintura de Ana Maria Plácido Castelo Branco ©)

 

Esse amigo  tinha outros, também filatelistas e sem querer vi-me rodeado de pessoas que falavam em selos como se tratasse de acções de minas de diamantes. Citavam cotações, empregavam termos técnicos que não compreendia; falavam em Scott, Ivert, Gibons, Simões Ferreira e Eládio e não sei que mais, o que me obrigou a olhar os cavalheiros mais a sério e não com aquele sorriso amarelo da superioridade amável que costumava afivelar nesses cenáculos. E que trocas faziam! E um dizia: querem ver o que encontrei hoje? E mostrava, retirando do classificador de bolso, com todo o cuidado, usando pinças, como se fosse coser agrafes nalgum ferimento, um bocado de papel, sujo, com uma borradela de carimbo, apresentando uma figura desbotada que mal se via e, triunfalmente desvendava que se tratava do selo tal cujo R tinha uma falha no rabinho, como todos podiam ver: que era uma jóia - chamava-lhe erro de impressão ou cunho defeituoso - sei lá o que dizia -. Os outros, era vê-los embasbacados e dava riso ouvir de todos os lados - lindo exemplar, onde encontrou isso? Maravilhoso. O S. Ferreira não lhe fez referência, nem o Eládio, diz outro. Eu, pobre de mim, apenas via um sujo papelinho sem graça nem cor, pelo qual não daria um tostão furado.

No entanto comecei a interessar-me e quis, ó Céus, fazer coisa nova em filatelia. Quis fazer colecção científica! Quis descobrir a pólvora!

Fui e sou ainda um apaixonado pelas ciências etnográficas. Estudo com prazer as raças e costumes dos diversos povos do Globo e principalmente daqueles com quem tenho contactado. E a luminosa ideia surgiu. Vou fazer uma colecção de selos baseada na etnografia. E, se o pensei melhor o fiz. Uma razia completa aos duplicados dos companheiros que se excederam em gentilezas, fornecendo-me basto material para dar corpo à ideia e principalmente, para fazer entrar para a confraria mais um intoxicado pelo vírus filatélico.

De princípio tudo me pareceu fácil.

Adquiri catálogos, literatura e material - tudo muito à toa, graças a Deus - no qual gastei um bom par de cobres.

Os álbuns de folhas soltas foram os preferidos porque não podia deixar de o ser, tratando-se de uma especialidade tão especializada!

Depois de várias hesitações fixei como guia o tratado de Deniker e vai de começar seguindo a orientação dada por este conhecido autor ao seu trabalho.

Comecei organizando as folhas respeitantes aos caracteres domáticos do Homem, surgindo-me logo uma grande dificuldade que foi conseguir selos que mostrassem as diferenças entre o homem e o macaco. Não quis apenas colocar a par selos mostrando o bicho homem e o seu antepassado bicho macaco (no que ainda continua a sê-lo, no que faz muito bem), pois isso seria fácil; bastaria pegar num selo da Austrália e outro qualquer, da Libéria, por exemplo, e teria feita a demonstração de que o velho amigo Darwin não tinha errado a sua "piadética" ideia de fazer descender o primeiro do segundo que eu cá, como cientista etnológico de meia tigela, sou de opinião contrária, pois penso que o segundo é que descende do primeiro, tendo evoluído inteligentemente de forma a conservar a liberdade, desaprendendo a falar, cá por causa de coisas e com uma esperteza fora do vulgar conseguir viver "à borla" enquanto o bicho homem morre pela língua com as suas prosápias, trabalha como um danado para angariar o pão nosso de cada dia.

Queria mais. Gostaria de apresentar exemplos ósseos - os maxilares e a morfologia comparada dos crânios e seu recheio. Bem folheei o Ivert mas nada encontrei que servisse. Os antropologistas parece que ganham bem regendo as suas cadeiras nas Universidades ou cocando bichinhos nas expedições científicas sem precisarem do lugarzinho de Correio-Mor, ou coisa que o valha da ementa orçamental, que lhes dê oportunidades de enriquecerem a filatelia com um mostruário osteológico. Pena é que assim seja, pois mais interessante seria uma série deste jaez do que a dos manipansos com que ultimamente nos presentearam e a que, certamente por lapso, deram o nome de "Arte Sacra Missionária" - Vid. Manipansos de Moçambique de  $10, 1$00 e 5$00 que nos apresentam uns missionários talados em pau, que melhor classificados seriam de Cynocephalus Semnopithecus. Eu se fosse missionário, andaria irritadíssimo com a gracinha.

Mas como ia dizendo, esbarrei com esta grande dificuldade e depois com outras que nos surgiram, como sejam, o estudo dos caracteres patológicos, a vida psíquica, etc, etc - mas não me alongo mais.
Gastei um Ivert de tanto o folhear e arranjei calos na polpa dos dedos e por fim tive de desistir, batido em toda a linha. Lá se foi a ideia luminosa, a ciência e a descoberta da pólvora.

Deste primeiro vagido restou no entanto alguma coisa: terem os amigos filatelistas alcunhado o visionário de "Homem das barbas" (não que as use, mas porque tive umas lindas páginas do álbum historiando a evolução da pilosidade capilar do homem através dos tempos); ter refrescado a memória percorrendo tratados, manuais e estudos etnológicos; ter adquirido um conhecimento apreciável - pelo menos para mim - das coisas filatélicas e, finalmente, mas em primeiro lugar para o "Homem do Mato" que sou, descobri o Hobby nº1 para preencher as nostálgicas horas do ante-jantar.

Estou grato aos amigos que, engripados pelo micróbio filatélico me transmitiram a doença, porque de então para cá, não como obrigação, mas como recurso, preencho admiravelmente aquelas horas sem pensar que existe o Continental, mulheres bonitas, matinés crepusculares, clubes civis e militares, Miradouro ou melhor, Mirabaía, Boites, etc, etc, onde os meus semelhantes citadinos - como diz o outro - refocilam gozosamente naquelas civilizações.

Pois é - meus irmãos.

Este selvático que vos escreve, partindo de uma premissa errada chegou a uma conclusão certa que se resume, como é moda hodierna, no seguinte "slogan". "A filatelia é o melhor meio para se gastarem uns patacos e preencher as horas mortas", sempre, sem dúvida, acalentando a convicção de que no fim se faz fortuna. Só não se sabe quando é o fim. Quase sempre é o fim dos fins. Deixem-se as colecções para em Moledo do Minho o Castel-Branco as vender em fascículos.

Agora a sério.

Pondo de parte os senãos, a filatelia preenche perfeitamente o anseio natural do "Homem do Mato" de encontrar motivo que  absorva agradavelmente as horas de ócio forçado e os terríveis trabalhos de tarde e domingos semanais.

Experimentem, aspirantes a filatelistas.

Peguem numa centena de selos, metam-nos numa banheira e com uma pinça coloquem-nos a secar em papel absorvente (não façam como eu que estraguei muito por ter utilizado mata-borrão de cor), classifiquem-nos a seguir e depois digam-me se o tempo passou ou não veloz. É preciso a mulher e o moleque virem dizer três vezes que o jantar está na mesa, a sopa fria e o peru recheado a perder a quente frescura e sabor.

Dou-lhes a minha palavra que é verdade e até sou capaz de o atestar em papel selado.

Experimentem e depois digam-me coisas

Arlindo Dias Graça

Panda, 16 de Julho de 1955

publicado às 15:00

Moçambique: os "PCP"

por Nuno Castelo-Branco, em 05.06.13

 

Não confundam, estes perigosos PCP eram os Pequenos Cantores da Polana um grupo coral no qual eu e o meu participámos. Este postal provavelmente datado de 1972, foi enviado da cidade da Beira. Ali fomos magnificamente acolhidos por uma família que nos tratou como se seus filhos fossemos. Se bem me recordo daqueles dias já tão distantes, as salas estiveram sempre cheias de gente assistindo aos nossos espectáculos, tal como aconteceu nas as igrejas onde cantámos. Para as crianças, uma sala cheia deveria significar dinheiro, daí a irreverente menção ao totalmente improvável arrecadar de ingressos pelo Padre Arnaldo Taveira de Araújo.

 

Andámos pelo interior do então Distrito de Manica e Sofa, visitámos Vila Pery, Vila de Manica, missões no mato e passeámos em Umtali, na Rodésia. Lembro-me de ter sido impertinente numa loja de guloseimas, recusando os chocolates Rowntree's que o vendedor queria impingir. Disse-lhe que sabia ser esta marca uma daquelas que subvencionava "os turras" e por isso preferia comprar batatas fritas Simba. Apesar de todos os delírios grasnados na Assembleia Geral da ONU, andámos livremente pelas alegadas "zonas libertadas", sendo a nossa camioneta acompanhada nalguns trajectos, por uma poderosa e impressionante escolta de um veículo Unimog com quatro soldados do Exército Português., condutor incluído.

Não podia esquecer  de perguntar pela saúde dos gatos lá de casa: a Tai, o Makingana, os três pretos - o Negrito, o Negrão e o Negralhão - e o Parditcho.

 

"Queridos pais

 

Eu e o Miguel estamos  bem. Temo-nos divertido muito. No dia 15 receberão um telefonema de um senhor. Dia 18 estaremos em Vila Pery. O Senhor Padre já ganhou um dinheirão "conosco". A Tai e o Makingana estão bons? E os gatos pretos? E o Parditcho? Estamos aí dia 22

Beijinhos do Nuno e Miguel"

 

publicado às 15:00

Moçambique: a destruição

por Nuno Castelo-Branco, em 03.06.13

 

O monumento erguia-se numa praça situada nas imediações do centro do poder português, o Palácio da Ponta Vermelha. Já não existe, tendo sido destruído após a independência. Com este também foram derrubados muitos outros, como a estátua equestre de Mouzinho de Albuquerque - na praça do mesmo nome, ao cimo da Avenida D. Luís I -, a de António Enes e todas as outras que se encontravam em praças e jardins das cidades do país. Antes de qualquer consideração política, esta iconoclastia consistiu num atentado ao património de Moçambique.

 

Endereçado pela sua irmã Argentina (Mimi), este postal foi cuidadosamente escrito por ocasião do aniversário da minha avó, celebrado a 15 de Setembro. Datado de 1976, discretamente menciona um tempo para sempre perdido e nostalgicamente recordado em algumas linhas. Com a censura e a polícia política - a temível e violenta SNASP - em guarda, todo o cuidado era pouco.

 

"Querida irmã Irlanda

 

Quando comecei  escrever pensei não me esquecer dos teus anos e afinal finalizei a carta e depois é que dei por ela.

Assim mando-te um postal de parabéns ilustrado com um monumento que hoje já não existe. Sabe bem recordar dias felizes.

Os nossos parabéns pelo próximo dia 15 desejando muita saúde e que os teus projectos se concretizem o mais breve possível. Mais uma vez parabéns com um xi-coração apertado e uma beijoca repenicada da irmã Mimi.

 

Salvé 15-9-1976"

publicado às 15:00






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