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António Costa invocou a democraticidade parlamentar para formar alianças conducentes à formação de um governo alegadamente legítimo e estável. Se aceitarmos o princípio do primado da Assembleia da República, na qual e a partir da qual, a genuína representação se efectiva, então muitas lacunas estarão por preencher. Por exemplo; a representação parlamentar de deputados que defendam os interesses das comunidades portuguesas de origem cabo-verdiana, angolana ou moçambicana. Mas não é essa a linha principal de argumentação deste enunciado. A nomeação da primeira secretária de Estado "cega" implica um princípio de igualdade de representação. Se a Exma. Sra. D. Ana Sofia Antunes é de facto a pessoa mais que competente para assumir a pasta da Inclusão de Pessoas com Deficiência, então, por analogia, e face ao problema da toxicodependência que também preocupa o país, nomear um secretário de Estado toxicodependente talvez fizesse algum sentido. Se buscam indíviduos que possam se esgrimir de razões, por sentirem em primeira mão os desafios da sua condição, então, nessa linha de argumentação, um drogado estará mais que habilitado para propor medidas de combate à toxicodependência. Não sei se me faço entender, mas a política não pode ser apropriada de um modo cínico e intensamente populista. António Costa deve ter alguma noção dos fortes desequilíbrios que caracterizam a matriz social deste país. Por melhores intenções que tenha para nivelar assimetrias, corre o risco de as agudizar por não ser efectivamente inclusivo. Quantos sem-abrigo equivalem a um cego? E quantos génios são necessários para formar um governo?
Há uns anos debrucei-me sobre este tema, evidenciando como o próprio Rousseau demonstrou que a desigualdade é o motor de uma sociedade livre, numa das suas primeiras obras. A respeito desta temática, ler este artigo de Gary Becker, de onde saliento os seguintes parágrafos:
«Many people, especially academics and other intellectuals, would find the phrase “good inequality” jarring. They can hardly think of any aspect of inequality as being good. Yet a little thought makes clear that some types of economic inequality have great social value. For example, it would be hard to motivate most people to exert much effort, including creative effort, if everyone had the same earnings, status, prestige, and other rewards. Many fewer individuals would engage in the hard work involved in finishing high school and going on to college if they did not expect their additional education to bring higher incomes, better health, more prestige, and better opportunities to marry.
(...)
Although inequality in many developing and developed countries grew during the past thirty years, world income inequality actually declined. Credit this to a much more vigorous growth in per capita income in populous developing countries—Brazil, China, India, and Indonesia, for example—than in the rich Western countries and Japan. World poverty declined enormously, and so did the income gap between poorer and richer countries. Thus, a large decline in the bad kind of world inequality.»
Como por várias vezes tenho escrito, o conceito de igualdade inspirado em Rousseau é uma das ideias mais escravizantes de todos os tempos. Berlin, Popper, Hayek, Schumpeter o demonstraram magistralmente. O liberalismo, no entanto, só existe em relação com o conceito de igualdade, não em contraposição, mas com um conceito de igualdade diferente do de Rousseau. O conceito de igualdade de condições à partida. Significa que todos devemos ser tratados da mesma forma, limitados apenas pelo conhecimento que detemos, e que nos permite diferentes graus de realização pessoal. Ainda podemos fazer entrar na teorização o conceito de liberdade negativa - liberdade como ausência de coerção por parte de terceiros - do governo limitado, como forma de assegurar a difusão de poder que diminui a perigosidade do Estado para o indíviduo, e o Rule of Law, i.e., o Estado de Direito. Não interessa para os casos concretos que aqui quero deixar. E esses são apenas casos que demonstram a desigualdade no tratamento dos diversos indivíduos por parte do Estado português.
Hoje, nos correios, contava uma senhora no balcão ao lado que o filho e uns amigos haviam sido assaltados por um bando de delinquentes, em relação aos quais a polícia afirmou não poder fazer nada. Novamente concluí que o Estado português, por alguma razão, esqueceu-se que é a única entidade que detém o monopólio da força legítima - alguém se recorda, por exemplo, dos acontecimentos na Quinta da Fonte?
Outra situação com a qual a sociedade se tornou conivente: os arrumadores de rua. Isto é particularmente gravoso em Lisboa, e todos sabemos do que se trata, i.e., uma coacção e uma chantagem moral com que nos habituámos a conviver, sendo uma situação à qual as autoridades não fazem frente.
Recordo-me ainda de outra, os delinquentes que andam de autocarro sem pagar, em relação aos quais os motoristas da Carris nada fazem, ao passo que se um qualquer cidadão que regularmente utilize este serviço se esquecer de carregar o passe ou de comprar o bilhete, não se livra de uma pesada multa.
Se em vez de bandos de delinquentes e marginais, um mero cidadão cumpridor dos seus deveres se atrevesse a semelhantes tropelias, as devidas autoridades, consoante a questão em causa, logo o tratariam de forma implacável e exemplar. Constata-se, logicamente, que há uma desigualdade que subverte a ideia de igualdade, quer a de Rousseau, quer a de condições iguais no tratamento.
Mas, mais importante que estas constatações de facto que qualquer cidadão pode verificar, é o que a funcionária dos correios que me atendeu revelou. Cerca de 12000 euros foi quanto recebeu uma família cigana que ali levantou diversos vales no valor de cerca de 2000 euros. Como não tinha dinheiro suficiente em caixa e sabia que os reformados ali se deslocariam no mesmo dia para levantar as míseras reformas, a funcionária pagou alguns vales e pediu para voltarem mais tarde, guardando algum dinheiro para os idosos que habitualmente ali se deslocam. A família cigana insurgiu-se por não receber os 12000 euros de uma vez e ter que se deslocar mais tarde ao posto dos correios, começando a partir o que encontrou à mão.
O Estado português, não se sabe bem porquê, para além de se esquecer de que detém o monopólio da força legítima e que a todos deve tratar por igual (o que não faz, ao contrário do que apregoa), despreza aqueles que necessitam do seu apoio - quantos não passam fome no nosso país? quantas crianças nada mais têm como refeição do que o que a acção social escolas lhes dá na escola? quantos idosos mal conseguem sobreviver com míseras reformas, depois de uma vida inteira de trabalho? quantos idosos morrem enregelados e com gripe no Inverno? - e ainda privilegia os que o afrontam ilegalmente, os que dele se aproveitam indevidamente e que em nada contribuem quer para os cofres do Estado, quer para a coesão e desenvolvimento da sociedade. O Estado português efectivamente trata os seus cidadãos de forma desigual, recompensando a marginalidade e penalizando os que cumprem os seus deveres.
Isto não são juízos de valor. São meras constatações e juízos de facto. Cada qual tire as suas conclusões.
P.S. - Não me enganei. Era mesmo a fotografia do Palácio de Belém que queria colocar aqui. As situações descritas passaram-se e passam-se nas suas imediações.