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Breves notas sobre a eutanásia

por Samuel de Paiva Pires, em 23.05.18

Impressionam-me sempre, ainda que não me surpreendam (afinal, o fenómeno encontra-se há muito diagnosticado pela teoria política, especialmente por autores conservadores), os discursos de cartilha ideológica e/ou religiosa, como tende a ser o da oposição à eutanásia, especialmente quando procuram fundamentar a utilização da coerção estatal para diminuir a esfera de liberdade individual naquilo que tem de mais íntimo e primordial, o podermos dispor sobre a nossa própria vida e, consequentemente, sobre a nossa morte. Compreendo que seja fácil e confortável debitar argumentos a partir de uma cartilha que nos diz o que pensar e o que dizer em face de determinados assuntos, mas não posso deixar de observar que esta é uma atitude permeada por uma boa dose de preguiça intelectual - compreensível, sublinho, mas que não deixa de ser o que é.

 

Tendo-me debruçado recentemente sobre o tema, apercebi-me que a esmagadora maioria dos argumentos dos opositores à eutanásia remetem, mesmo que frequentemente não pareça ou não o admitam, para uma única ideia, a de que a nossa vida pertence a Deus, não a nós próprios. Não foi por acaso que líderes de várias religiões se juntaram contra a despenalização da eutanásia em Portugal. Não foi também por acaso que um padre tetraplégico tentou convencer Ramón Sampedro a não se suicidar, ignorando que o conceito de dignidade humana pode ser entendido de formas diversas e que a resposta à célebre questão com que Camus abre O Mito de Sísifo - "Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia" - pode também ser diferente consoante os indivíduos, ainda que sujeitos exactamente às mesmas situações. 

 

Tenho muito respeito por crenças religiosas, e especialmente pela herança civilizacional judaico-cristã, mas tenho pena que muitos crentes não nutram o mesmo respeito pelos que não são crentes e pareçam ignorar que as sociedades ocidentais atravessaram o Iluminismo e têm como condição fundamental o laicismo. Querer impor a toda a sociedade um determinado entendimento religioso da ideia de dignidade da vida humana que tem como efeito impedir que um reduzido número de pessoas (são muito poucas as pessoas que pedem para morrer em face da dor e sofrimento, mesmo em países em que a eutanásia e o suicídio assistido são permitidos), em situações de dor e sofrimento prolongado e com doenças incuráveis - para mim, condições sine qua non para a admissibilidade da eutanásia e do suicídio assistido -, à luz das suas convicções e respostas à pergunta de Camus, possam morrer de forma medicamente assistida, parece-me - não há como dizê-lo de outra forma - perverso. 

 

Ademais, importa fazer notar que os cuidados paliativos não são uma alternativa à eutanásia (como afirmou João Lobo Antunes, citado por Maria Filomena Mónica em A Morte, é "errada a ideia de que os cuidados paliativos eliminariam todas as situações em que a eutanásia pode ser necessária, uma vez que, por exemplo, no Estado do Oregon, existem óptimos cuidados paliativos, o que não impedira alguns indivíduos de terem optado pelo suicídio assistido"), e que argumentos como a origem da eutanásia na Alemanha nazi e a rampa deslizante são fracos e, no caso deste último, trata-se frequentemente de uma falácia lógica facilmente desmontável. Citando Maria Filomena Mónica: "Ao contrário de pessoas que respeito, não considero que estejamos a escorregar, por uma escada deslizante, até à barbárie. Não é forçoso que se passe da defesa do suicídio assistido para a eutanásia e desta para a injecção letal a deficientes, mas reconheço que este argumento tem força. Contudo, do ponto de vista lógico, não é sustentável. Eis como funciona: à primeira vista, parece positivo fazer-se X (independentemente do que for X); mas a acção X conduz inevitavelmente a Y e esta, por sua vez, a Z. Ora, a acção Z é tida como negativa, portanto não deveremos fazer X. Uma acção que, de início, parecia aceitável, passa assim a ser vista como deletéria. Acontece que a “inevitabilidade” da passagem de X para Z não é uma necessidade. Embora se justifiquem cautelas, não é certo que a aceitação da eutanásia, no caso de doentes que a solicitem, leve à sua aplicação a doentes que a não desejam."

 

Importaria, portanto, que o debate não resvalasse para este tipo de questões, que decorresse em moldes racionais e num ambiente de serenidade, o que muitos dos opositores da eutanásia se têm esforçado por combater. Que alguns destes pensem ainda em submeter uma questão destas a referendo, incorrendo na possibilidade real de a tirania da maioria obrigar, numa questão que diz respeito a direitos fundamentais (porque termos uma palavra a dizer sobre a nossa morte nas condições supra elencadas faz parte do direito à vida), a obedecer a uma normatividade com um substrato essencialmente religioso que não é partilhado por todos os cidadãos, parece-me, mais que perverso, desumano.

 

Espero, por isso, que os nossos representantes na Assembleia da República, além de reflectirem serenamente, tenham bem presentes as seguintes palavras de Maria Filomena Mónica: "Uma democracia laica, como é o caso de Portugal, deve respeitar os sentimentos que a fé religiosa faz brotar na alma dos crentes, mas não pode autorizar que seja ela, a fé, a ditar a formulação das leis. Os católicos têm o direito de se abster de actos que consideram pecaminosos, mas não podem impor aos outros os seus valores. Não quero obrigar ninguém a fazer o que quer que seja, mas desejo ser livre de escolher o meu fim."

publicado às 23:22

"Deus, como eu, é ateu"

por Samuel de Paiva Pires, em 23.12.13

Norman MacCaig, "A Man I Agreed With":

 

"He knew better than to admire a chair and say What does it mean?

 

He loved everything that accepted the unfailing hospitality of his five senses. He would say Hello, caterpillar or So long, Loch Fewin.

 

He wanted to know how they came to be what they are: But he never insulted them by saying Caterpillar, Loch Fewin, what do you mean?

 

In this respect he was like God, though he was godless – He knew the difference between What does it mean to me? and What does it mean?

 

That’s why he said, half smiling, Of course, God, like me, is an atheist."

publicado às 22:22

Coincidências

por Samuel de Paiva Pires, em 07.03.13

Há coincidências realmente estranhas. Hoje fui acordado por uma Testemunha de Jeová a bater-me à porta com o intuito de divulgar a Palavra do Senhor. Há pouco, via blog de Edward Feser, fui dar a uns posts de Andrew Sullivan em que este relata algumas conversas que teve com Christopher Hitchens. Às tantas, diz este último:

«Yes. As well as being impossibly arrogant, coming in the disguise of modesty, humility, simplicity. “Ah, I’m just a humble person doing God’s work.” No, excuse me, you must be either humble or doing God’s work. You can’t know what God’s work would be, don’t try your modesty on me. And once one’s made that elimination, then everything else becomes more or less simple. My problem only begins there.»

publicado às 14:58

A hiper-religião do disparate

por João Pinto Bastos, em 02.01.13

A laicização da máxima protestante de que basta a fé para nos salvarmos criou um homem maleável e permissivo. As obras, a ética e a moral não têm lugar num mundo em que a acção perdeu o referente transcendente. Tudo é vendável, a honra, a dignidade, a fé, o corpo, a moral, em suma, tudo é negociável contanto que no fim a simples crença na infalibilidade do indivíduo garanta a nossa segurança. Precisamos urgentemente de regressar a Deus.

publicado às 20:44

Antes de mais, permitam-me pedir desculpa ao Carlos Santos e ao Corcunda por só agora conseguir responder a ambos. Aqui fica:

 

1) O Corcunda aponta que o agnosticismo "Esquece que nos apoiamos na fé para conhecer tudo o que nos rodeia", dando exemplos de fenómenos físicos, químicos e biológicos, que outrora foram tidos como verdadeiros, assinalando de seguida que "Sem a certeza de um ponto exterior, sem a presunção de uma ordem exterior de referência (e a verdade não é mais que o confronto do ser racional com um Ser que não é o seu), toda a discussão é meramente contingente (…)", o que vai no sentido da afirmação do Carlos de que "Se a Verdade existe então, para além do humano, o Absoluto tem também de existir." Temos, portanto, que a verdade é absoluta. Ora, há uma contradição lógica nisto: se a verdade, aqui entendida como divina e, portanto, decorrente da fé, é absoluta, como podem acepções tidas como verdadeiras ter sido contestadas e refutadas?

 

2) O ponto anterior leva-me novamente a perguntar de que verdade falamos em concreto? Porque não é a mesma coisa falar de verdade em teologia, filosofia ou ciência, embora existam, obviamente, pontos de contacto.

 

3) Afirma o Corcunda que "Uma religião que tem uma finalidade social é um código político, ou seja, um mero instrumento do Poder". Se uma religião não tem uma finalidade social, então que finalidade tem? Parece-me que não só toda a religião tem uma finalidade social como foi e continua a ser um instrumento do poder. Não quer dizer que seja apenas isto, mas é também isto. O que vai ainda de encontro à crítica do Carlos quanto à abordagem utilitarista à religião. A este respeito, com a devida autorização, aproveito para citar um comentário que a Silvia fez no Facebook: «Uma abordagem utilitarista da religião é uma abordagem muito válida e não concebo como pode recursar-se. Religare para alcançar a felicidade, a paz interior, o Amor universal – que é isto se não uma abordagem utilitarista? A religião é a estrada do mundano ao transcendente. Não só assume uma abordagem utilitarista nessa perspectiva (da prática individual da religião) como assume uma abordagem utilitarista no colectivo social, da procura do bem-estar pela regulação da ordem social a que a religião, desde o início dos tempos, não é alheia, como sabemos. E isto na abordagem utilitarista que não radica, como alguma parte do texto parece indicar, na utilidade (abordagem utilitária) em sentido lato. Se bem que, também aí, devo afirmar que a religião tem efectivamente uma utilidade – ou várias – controlo social, fonte de direito, and so on. Por isso está a religião organizada devidamente nas suas instituições onde pululam os ritos e outras acções simbólicas de ligação ao divino. São meios, meios que utilizamos. A estrada do religare.»

 

4) Como é que se justifica algo como justo ou injusto sem que seja meramente reflexo do poder? Através do direito natural, da razão prática em ligação com a noção de tradição e evolução cultural e do imperativo categórico kantiano.

 

5) Em resposta ao ponto 6 do Corcunda e à perspectiva do Carlos quanto à antropomorfização da Vontade Divina, quando eu falo nesta é no sentido que Hayek lhe dava, conforme Linda Raeder assinala: "Por outras palavras, ele temia que a atribuição da fonte de ordem à Vontade Divina pudesse levar à interpretação antropomórfica dessa Vontade como a “vontade da sociedade” (que tem, na realidade, de ser a vontade de seres humanos em particular) e inspirasse esforços equivocados para controlar o processo social espontâneo através da direcção consciente. Isso, acreditava, seria fatal não só à vontade humana mas à sobrevivência da civilização avançada." Coloco um exemplo prático: George W. Bush disse falar com Deus e que este lhe ordenou que invadisse o Iraque. Saddam Hussein também acreditava em Deus e, como muitos muçulmanos, que Alá lhes ordena que combatam os EUA. Como é possível a existência de duas verdades contrárias com justificações transcendentes? 

 

6) Diz o Corcunda, num comentário: "Se alguém diz que tem a certeza que Deus não existe, é porque tem uma visão do além e conseguiu vislumbrar aí o Vazio (...)." Da mesma forma, se alguém diz que tem a certeza que Deus existe, é porque tem uma visão do além e conseguiu vislumbrar aí algo. E eu simplesmente não consigo conceber nenhuma destas posições.

publicado às 18:12

Samuel, a premissa central do teu texto - que percebo a ser a antecedência do homem face a Deus -, da qual resulta a noção de que Deus é uma criação humana, bem como o deísmo antropomórfico que caracterizas, parece-me padecer de um problema de base, brilhantemente sumariado em Being John Malkovich. Se nós vemos o mundo pelos olhos de Malkovich, o corpo de Malkovich age de acordo com o que cada um de nós quer experimentar. A realidade de "ser John Malkovich" torna-se assim no paradoxo do relativismo absoluto: John Malkovich passa a ver e agir como cada um de nós quer.

Serve a metáfora para dizer que tudo pode ser entendido como uma construção humana, se entenderes que por ser visto pelos teus olhos, humanos, passa a ser uma realidade construída por ti. Naturalmente que foi o homem quem escreveu sobre Deus, porque a escrita é um exercício humano. Faz isso de Deus uma criação humana? Da mesma forma faria de cada mesa uma mesa diferente, consoante quem passasse pelo interior da mente de John Malkovich, e olhasse para a dita mesa. A falácia "post hoc ergo propter hoc" enviesa o conhecimento: não é por a reflexão humana sobre Deus, e a escrita do homem sobre Deus, anteceder uma epifania que admitas como válida, que essa epifania passaria a ser uma construção tua. Ou todo o conhecimento se tornaria relativo, e, como tal, nulo. O que não é o caso! 

No domínio da geometria euclidiana, o Teorema de Pitágoras é uma verdade à espera de ser descoberta, que não muda por ter sido Pitágoras a descobri-la. Fosse outro qualquer, mudasse o nome ao teorema, ele continuaria a conter uma relação indesmentível entre os comprimentos dos lados de um triângulo rectângulo, inscrito num plano.

O Teorema de Pitágoras foi verbalizado por homens. Tornar-se-ia diferente a cada um que passasse pelos olhos de John Malkovich? Não me parece, e por isso não me parece também que toda a verdade seja humana como afirmas. A Matemática é uma colecção de verdades que existem e da qual nos é dado vislumbrar pedaços da sua beleza de tempos a tempos. As verdades ainda não descobertas não são verdades inexistentes. E as existentes são idênticas para qualquer olhar que sobre elas se debruce. Mesmo o último teorema de Fermat sobreviveu séculos, apesar de não demonstrado até recentemente.

 

Se a Verdade existe então, para além do humano, o Absoluto tem também de existir. Porque a Verdade é absoluta. A nossa missão muda radicalmente. Tentamos apreender a verdade, como dizia Newton, trabalhando como anões nas costas de gigantes. Santo Agostinho separava de forma clara a matéria criada da que não o foi. Deus cria. Não é ele próprio matéria criada, e por isso antecede a matéria criada. A concepção humana de Deus pode-lhe ter conferido, em muitos cultos, rostos humanizados. Da mesma forma que estilizamos as representações de extra-terrestres a partir do nosso universo de conhecimento morfológico. Mas o Cristianismo, no que me parece ser um ponto que ilude a tua reflexão, não o faz. Jesus Cristo não é a humanização de Deus, nem a representação de Cristo pretende ser a representação de Deus. Cristo é Deus que veio ao mundo como Homem. E para interagir com os homens. Por isso, numa forma reconhecível pelos homens. Nenhum Homem, diz-nos Jesus, alguma vez viu Deus, na sua vida terrena. Quando muito, alguns tiveram a Fé para reconhecer Deus no homem Jesus Cristo.

Vale a pena recordar o episódio da sarça ardente, em que Moisés interage com Deus na montanha. Pede-lhe para o ver, para o poder apresentar ao povo que tirara do Egipto. E Deus permite-lhe apenas ver a sombra de umas costas numa pedra. Santo Agostinho, em Da Trinidade, conclui que essa sombra é a sombra das costas de Jesus, pois será essa a forma humana que Deus tomará quando vem ao nosso encontro no Novo Testamento.

Não podemos, por isso, confundir antropomorfismo deísta com Cristianismo. É assumido no Cristianismo que não conhecemos o rosto de Deus, nem sabemos se o tem. Foi-nos dado, pelo Seu Amor, conhecer a Cristo, Deus que veio a nós na forma humana. Mas que não consiste na forma (se o conceito se aplica?) do próprio Deus, pois Ele não é matéria criada, nem se situa neste plano de morfologias reconhecíveis. O Deus dos Cristãos é a Trindade Santíssima: uma união perfeita de três pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) que são uma só, pois cada uma está em todas as outras e são consubstanciais. O Deus é uno e trino. Consubstancial porque todo é Amor. Só se distinguem nas relações recíprocas, mas todos um mesmo Deus.

Convirás, Samuel, que há pouco de antropomórfico, na percepção de um Deus uno e trino, pois essa é uma realidade desconhecida e mesmo misteriosa no nosso plano vivencial....

publicado às 18:31

 

Como alguns leitores terão notado, nos últimos tempos, especialmente desde que decidi assumir publicamente o meu agnosticismo, tenho-me debruçado, ainda que não tão aprofundadamente como gostaria, sobre a temática da religião, deixando por aqui excertos de autores como Scruton, Jung e Mark Vernon. Na lista de leitura constam ainda obras de Nietzsche, Kierkegaard, Feuerbach, Russell, William Rowe, Hitchens e dos mesmos Scruton, Jung e Vernon. Disto procede, como bem apontaste, Carlos, no primeiro texto em que respondias a um excerto de Vernon, que a verdade é que a minha abordagem à religião é essencialmente filosófica. Mais, eu padeço da mesma incultura religiosa de Camus, ou talvez mais apropriadamente, incultura em relação à religião católica, e é por isso que, embora a Bíblia também faça parte da minha longa lista de leitura, não sou capaz de responder nos mesmos termos simbólicos que utilizas. 

 

Ainda assim, permite-me uma breve réplica para dizer que o ponto que levantas relativamente à ausência do utilitarismo na religião católica - e não é surpreendente a crítica que fazes ao utilitarismo de Vernon, ou não tenha este sido padre da Igreja Anglicana - parece-me poder ser disputado em dois sentidos. O primeiro, é que quando se fala em Salvação somos obrigados desde logo a colocar a questão "o que é a alma?" - que recentemente Edward Feser abordou-; o segundo, é que como Hayek, também ele agnóstico, mostra em The Fatal Conceit, a religião tem, de facto, uma utilidade, mais imanente que transcendente. Distinguindo entre as práticas de comunidades primitivas e das modernas sociedades ocidentais, o autor austríaco salienta que instituições, sistemas morais e tradições evoluíram de forma a gerar e manter um número elevadíssimo de indivíduos, através de uma selecção natural competitiva mas pacífica das tradições de diversos grupos, tradições estas que muitos não entendem ou não apreciam e que até combatem, mas que são fundamentais para a sobrevivência destes grupos. Contudo, quanto ao porquê destas terem sido preservadas contra instintos e até contra o racionalismo construtivista, Hayek assinala que a religião desempenha/ou um papel fundamental (tradução minha): "Devemos parcialmente a crenças místicas e religiosas e, acredito eu, particularmente às principais crenças monoteístas, que tradições benéficas tenham sido preservadas e transmitidas pelo menos o tempo suficiente para permitir a estes grupos que as seguiam crescer e ter a oportunidade de se espalharem através da selecção natural ou cultural. Isto significa que, gostemos ou não, devemos a persistência de certas práticas, e a civilização que resultou destas, em parte ao apoio de crenças que não são verdadeiras – ou verificáveis ou testáveis – no sentido em que são as afirmações científicas, e que certamente não são o resultado de argumentação racional. Eu às vezes penso que pode ser apropriado chamar-lhes, pelo menos como gesto de apreciação, “verdades simbólicas”, visto que elas ajudaram os seus aderentes a ser “frutíferos e multiplicarem-se e reabastecerem a terra e subjugá-la” (Génesis 1:28). Mesmo aqueles entre nós, como eu próprio, que não estão preparados para aceitar a concepção antropomórfica de uma divindade pessoal, têm de admitir que a perda prematura do que consideramos como crenças não factuais, teria privado a humanidade de um poderoso apoio ao longo desenvolvimento da ordem alargada que agora gozamos, e que mesmo agora a perda dessas crenças, quer sejam falsas ou verdadeiras, criaria grandes dificuldades."1

 

Também Jung nos traz alguma luz a este respeito, quando faz a distinção entre credo e religião, que é também útil para responder ao Corcunda. Diz-nos Jung (tradução minha) que "Um credo dá expressão a uma determinada crença coletiva, ao passo que a palavra religião exprime uma relação subjectiva com certos factores metafísicos, extramundanos. Um credo é uma confissão de fé destinada principalmente ao mundo em geral e é, portanto, um assunto intramundano, enquanto o significado e o propósito da religião recaem na relação do indivíduo com Deus (cristianismo, judaísmo, islamismo) ou no caminho da salvação e libertação (budismo). A partir deste facto básico é derivada toda a ética, o que, sem a responsabilidade do indivíduo perante Deus pode ser chamado de nada mais do que moralidade convencional."2

Atendendo à moderna morte de Deus,  quando, em A Gaia Ciência3, Nietzsche aborda o assunto, fá-lo, como Vernon salienta, contando uma história que é ilustrativa da tragédia que, para ele, foi a proclamação da morte de Deus. Diz-nos a personagem do louco (tradução minha): "Como havemos de nos consolar, os assassinos de todos os assassinos? O que era mais sagrado e mais poderoso de tudo o que o mundo já possuiu sangrou até à morte sob as nossas facas: quem vai limpar esse sangue de nós? Que água existe para nos limparmos a nós mesmos? Que festivais de desagravo, que jogos sagrados teremos de inventar? Não é a grandeza deste acto demasiado grande para nós? Não deveremos nós próprios tornar-nos deuses simplesmente para parecermos dignos dele?"3 "O homem como o novo Deus", diz-nos Vernon, "quão assustador é este pensamento."4

Nietzsche percebeu claramente o que o Corcunda salienta, tal como Jung, no que diz respeito à ausência de um critério transcendente de verdade: "Ser o aderente de um credo, portanto, não é sempre uma questão religiosa, mas mais frequentemente uma questão social e, como tal, não faz nada para dar ao indivíduo qualquer fundamento. Para suporte ele tem que depender exclusivamente da sua relação com uma autoridade que não é deste mundo. O critério aqui não é a aprovação de um credo, mas o facto psicológico de que a vida do indivíduo não é determinada exclusivamente pelo ego e as suas opiniões ou por factores sociais, mas em igual medida, se não mais, por uma autoridade transcendente. Não são princípios éticos, por mais elevados, ou credos, por mais ortodoxos, que estabelecem as bases para a liberdade e a autonomia do indivíduo, mas simples e unicamente a consciência empírica, a experiência indiscutível de uma intensa relação pessoal e recíproca entre o homem e uma autoridade extramundana que actua como um contrapeso ao "mundo" e a sua "razão."5

Dito isto, importa afirmar que um agnóstico, ou melhor, um pensador ou filósofo agnóstico (aspirante, no meu caso), não é necessariamente irreligioso. Pelo contrário,  enquanto muitos, se não mesmo a maioria dos aderentes a um credo, limitam-se a existir e não a viver, já que aceitam dogmaticamente o que a Igreja do credo lhes diga que está certo e errado, não chegando sequer a debruçarem-se sobre as grandes questões da existência humana, como a existência de Deus, um agnóstico que o seja no sentido que a palavra tomava na Época Vitoriana, ou seja, que tenha a convicção de que nada pode ser conhecido com absoluta certeza mas que se dedica à busca pelo conhecimento com a plena noção dos limites deste e da sua ignorância, não pode deixar de repudiar o fundamentalismo quer dos credos quer do ateísmo, colocando-se numa posição de dúvida que dá corpo ao seu pensamento e à sua forma de estar na vida. Aliás, a sua relação com uma entidade extramundana, exercitando a dúvida, pode inclusive ser mais rica e intensa que a de um crente, como foi o caso de Sócrates. Mais, se o agnosticismo e o ateísmo são até mais velhos que o cristianismo, como pode este clamar estar em contacto ou saber o que é a verdade? E de que verdade falamos em concreto? E por que é que esta tem que ser necessariamente um sub-produto do Divino? Ademais, se aceitarmos que foi o Homem que criou Deus - como eu tendo a aceitar -, temos que a sacralização ocorre(u) do mundano para o extramundano pelo que, em última análise, estamos sempre a aceitar verdades que têm apenas origem humana. Não creio que a modernidade tenha transformado a verdade numa percepção humana, creio que sempre o foi, e que o Iluminismo apenas veio revelá-lo - reforçando o temor em relação à antropomorfização da Vontade Divina. Neste contexto, que outra hipótese temos que não virar-nos para a imanência, mas sabendo que esta não deixa, contudo, pelo menos para mim, de ter ligação à transcendência - na tal posição de dúvida -, e que individualmente cabe-nos adoptar princípios, valores e comportamentos que nos pareçam moralmente correctos, que em última análise, até podem derivar, e em larga medida derivam, da religião - de que as ideologias são, elas próprias, os melhores exemplos, no que à conduta política diz respeito?



1 - F. A. Hayek, The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, Indianapolis,Liberty Fund, 1991, pp. 136-137.

2 - Carl Jung, The Undiscovered Self, New York, Back Bay Books, 1957, pp. 20-22.

3 - Friedrich Nietzsche, The Gay Science, New York, Vintage Books, 1974, pp. 181-182.

4 - Mark Vernon, How to be an Agnostic, Basingstoke,Palgrave Macmillan,2011, p. 8.

5 - Carl Jung, Ibid., pp. 22-23.

publicado às 01:41

Samuel, reconhecendo a valia da reflexão do Mark Vernon, não deixo de sentir perplexidade com a abordagem quase utilitarista que tem da religião. A Fé não tem um propósito em si mesmo, no sentido em que não é proclamado que "o sujeito A deve ter Fé, para poder fazer uma melhor introspecção de si". Reconheço a valia do exercício, e admiro o exame de consciência e a noção das limitações que a proposta do texto potenciam. Mas não é um caminho de validação da religião: conferir-lhe uma utilidade. Precisamente porque a verdadeira Fé não procura ter uma utilidade.

Daí o meu desconforto com o texto anterior em que se citava o mecanismo: a salvação. Pobre daquele que tem fé porque acha que assim se salva. Tem-se Fé, no meu enquadramento religioso, que sabes ser católico romano, porque se adere à Graça: Deus confere-nos a possibilidade de acreditar, e acreditamos. Não esperando nenhum tipo de recompensa por acreditar. A Salvação é a aspiração de uma comunhão eterna com o Deus que amamos: o perpétuo mergulhar da alma no Seu Amor, nas palavras de Bento XVI. E deverá decorrer de uma vida em que se caminhe na imitação da vivência da Caritas. No modelo do Bom Samaritano, que, enquanto teólogo, Joseph Ratzinger, identificou com o próprio Cristo: Deus que se fez homem para vir assistir a sua criatura caída na estrada nesta existência terrena, vergada pelos pecados e males do mundo.

As limitações do humano face ao Criador são enquadráveis no seio da própria religião. Seria interessante, a meu ver, que Vernon reflectisse também sobre a natureza do pecado original. Que contrariamente ao senso comum, não tem uma acepção estritamente sexual: antes resulta do homem, Adão, que tentado a comer da Árvore da Sabedoria, não resistiu, porque iludido de que assim seria conhecedor das mesmas coisas que Deus. A tentação de Adão é querer substituir-se a Deus, podendo governar o mundo com o conhecimento de Deus. Vernon aponta correctamente para a percepção da humildade do homem face ao divino, mas ignora que a tradição judaico-cristã assimila desde o Génesis, essa mesma necessidade de humildade. Nas Escrituras, a condenação do homem não é pela percepção da nudez, mas pela necessidade de se substituir a Deus.

 

 

publicado às 18:50

Mark Vernon, How to be an Agnostic:

 

«If God-talk can avoid getting hung up on 'proofs', then it can become a way of critiquing human knowledge, of reflecting on the human condition. Examining what people take to be divine is valuable because it reminds them that they are made lower than gods and that aspirations to god-like knowledge will remain just that - aspirations. Then, if this can be stomached, the attitude it nurtures itself becomes a valuable source of insight. With such humility, the vain attempt to 'overcome' is ditched, and the challenge to understand is taken on. And this, in turn, is what makes life worthwhile. It produces the best kind of human beings, people who are not merely ignorant, but recognise the ways in which they are. To this extent, they become wise and lovers of wisdom. To put it another way, the unexamined life is not worth living, negatively because it would be deluded, and positively because examining all those other things in life - character, intuition, friendships, loves and fundamentally 'who am I?' - gives life shape and meaning.»

publicado às 14:32

Das verdades estatais às neuroses do homem moderno

por Samuel de Paiva Pires, em 12.03.12

Carl Jung, The Undiscovered Self:

 

«Whereas the man of today can easily think about and understand all the “truths” dished out to him by the State, his understanding of religion is made considerably more difficult owing to the lack of explanations. (“Do you understand what you are reading?” And he said, “Ho can I, unless some one guides me?” Acts 8:30.) If, despite this, he has still not discarded all his religious convictions, this is because the religious impulse rests on an instinctive basis and is therefore a specifically human function. You can take away a man’s gods, but only to give him others in return. The leaders of the mass State cannot avoid being deified, and wherever crudities of this kind have not yet been put over by force, obsessive factors arise in their stead, charged with demonic energy – for instance, money, work, political influence, and so forth. When any natural human function gets lost, i.e., is denied conscious and intentional expression, a general disturbance results. Hence, it is quite natural that with the triumph of the Goddess of Reason a general neuroticizing of modern man should set in, a dissociation of personality analogous to the splitting of the world today by the Iron Curtain. This boundary line bristling with barbed wire runs through the psyche of modern man, no matter on which side he lives. And just as the typical neurotic is unconscious of his shadow side, so the normal individual, like the neurotic, sees his shadow in his neighbour or in the man beyond the great divide. It has even become a political and social duty to apostrophize the capitalism of the one and the communism of the other as the very devil, so as to fascinate the outward eye and prevent it from looking at the individual life within. But just as the neurotic, despite unconsciousness of his other side, has a dim premonition that all is not well with his psychic economy, so Western man has developed and instinctive interest in his psyche and in “psychology”.»

publicado às 23:18

A diferença entre religião e credo (Igreja)

por Samuel de Paiva Pires, em 28.02.12

Carl Gustav Jung, The Undiscovered Self:

 

"The religions, however, teach another authority opposed to that of the “world.” The doctrine of the individual’s dependence on God makes just as high a claim upon him as the world does. It may even happen that the absoluteness of this claim estranges him from the word in the same way he is estranged from himself when he succumbs to the collective mentality. He can forfeit his judgment and power of decision in the former case (for the sake of religious doctrine) quite as much as in the latter. This is the goal the religions openly aspire to unless they compromise with the State. When they do, I prefer to call them not “religions” but “creeds.” A creed gives expression to a definite collective belief, whereas the word religion expresses a subjective relationship to certain metaphysical, extramundane factors. A creed is a confession of faith intended chiefly for the world at large and is thus an intramundane affair, while the meaning and purpose of religion lie in the relationship of the individual to God (Christianity, Judaism, Islam) or to the path of salvation and liberation (Buddhism). From this basic fact all ethics is derived, which without the individual’s responsibility before God can be called nothing more than conventional morality.

 

Since they are compromises with mundane reality, the creeds have accordingly seen themselves obliged to undertake a progressive codification of their views, doctrines and customs and in so doing have externalized themselves to such an extent that the authentic religious element in them – the living relationship to and direct confrontation with their extramundane point of reference – has been thrust into the background. The denominational standpoint measures the worth and importance of the subjective religious relationship by the yardstick of traditional doctrine, and where this is not so frequent, as in Protestantism, one immediately hears talk of pietism, sectarianism, eccentricity, and so forth, as soon as anyone claims to be guided by God’s will. A creed coincides with the established Church or, at any rate, forms a public institution whose members include not only true believers but vast numbers of people who can only be described as “indifferent” in matters of religion and who belong to it simply by force of habit. Here the difference between a creed and a religion becomes palpable.

 

To be the adherent of a creed, therefore, is not always a religious matter but more often a social one and, as such, it does nothing to give the individual any foundation. For support he has to depend exclusively on his relation to an authority which is not of this world. The criterion here is not lip service to a creed but the psychological fact that the life of the individual is not determined solely by the ego and its opinions or by social factors, but quite as much, if not more, by a transcendent authority. It is not ethical principles, however lofty, or creeds, however orthodox, that lay the foundations for the freedom and autonomy of the individual, but simply and solely the empirical awareness, the incontrovertible experience of an intensely personal, reciprocal relationship between man and an extramundane authority which acts as a counterpoise to the “world” and its “reason.”"

publicado às 16:21

Da auto-transcendência em Nietzsche

por Samuel de Paiva Pires, em 15.01.12

Roger Scruton, Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes:

 

«Foi Max Stirner quem anunciou ao mundo, em 1845, que Deus está morto. Repetindo o obituário em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche deu-se perspicazmente conta de que a espécie humana acharia duro viver com as notícias e, por conseguinte, que algo devia ser oferecido como consolação. Se não há um ser transcendental, sugeriu ele, só podemos ir ao encontro das nossas aspirações por auto-transcendência, pela dominação da natureza humana, na versão superior e mais forte dela, que é o Übermensch. Uns quantos discípulos tentaram seguir o conselho de Nietzsche, com resultados por regra tão desagradáveis para outros que foi a própria tentativa que se descredibilizou. O mínimo que se pode dizer é que, se se é um Übermensch, é melhor manter o silêncio sobre esse dado. De facto, a moral da auto-transcendência de Nietzsche mostra o sentido da religião para seres como nós: a fé é um triunfo supremo sobre a nossa solidão transcendental; sem ela, ou fazemos dessa solidão uma virtude, como fez Nietzsche, ou vivemos num nível menos exaltado. O anúncio da morte de Deus é menos uma declaração sobre Deus, do que uma declaração sobre nós.» 

publicado às 15:04

No seguimento deste post, onde dou conta de um determinado artigo de Karl Popper, deixo uma tradução feita por mim de parte do mesmo. Trata-se de "Towards a Rational Theory of Tradition", in Karl Popper, Conjectures and Refutations, Londres, Routledge, 2010, pp. 165-168:

 

«Uma teoria da tradição tem de ser uma teoria sociológica, porque a tradição é obviamente um fenómeno social. Menciono isto porque pretendo brevemente discutir convosco a tarefa das ciências sociais teoréticas. Esta tem sido frequentemente mal compreendida. De forma a explicar qual é, penso eu, a tarefa central das ciências sociais, gostaria de começar por descrever uma teoria que é defendida por muitos racionalistas – uma teoria que eu penso que implica exactamente o oposto do verdadeiro objectivo das ciências sociais. Chamarei a esta teoria a ‘teoria da conspiração da sociedade’. Esta teoria, que é mais primitiva que a maioria das formas de teísmo, é semelhante à teoria da sociedade de Homero. Homero concebeu o poder dos deuses de tal forma que tudo aquilo que acontecesse na planície de Tróia seria apenas um reflexo das várias conspirações no Olimpo. A teoria da conspiração da sociedade é apenas uma versão deste teísmo, de uma crença em deuses cujos caprichos e vontades regulam tudo. Deriva de se abandonar Deus e depois perguntar ‘Quem está no seu lugar?’ E o lugar dele é então preenchido por vários homens e grupos poderosos – sinistros grupos de pressão, que são culpados de terem planeado a grande depressão e todos os males de que sofremos.

A teoria da conspiração da sociedade é muito difundida, e contém muito pouca verdade nela. Só quando teóricos da conspiração chegam ao poder é que se torna algo como uma teoria responsável pelas coisas que realmente acontecem (um exemplo do que eu chamei “Efeito de Édipo”). Por exemplo, quando Hitler chegou ao poder, acreditando no mito conspirativo dos Sábios do Sião, tentou ultrapassar a conspiração destes com a sua própria contra-conspiração. Mas o interessante é que uma teoria da conspiração nunca – ou quase nunca – acontece da forma que se pretende.

Esta observação pode ser vista como uma pista quanto à verdadeira tarefa de uma teoria social. Hitler, disse eu, elaborou uma teoria da conspiração que falhou. Porque falhou? Não apenas porque outras pessoas conspiraram contra Hitler. Falhou, simplesmente, porque uma das coisas notáveis acerca da vida social é que nunca nada acontece exactamente como se pretende. As coisas acontecem sempre de forma um pouco diferente. Raramente produzimos na vida social precisamente o efeito que queremos produzir, e geralmente acontecem-nos coisas que não queremos no processo de barganha. Claro que agimos com determinados objectivos em mente; mas à parte destes objectivos (que podemos ou não realmente atingir) existem sempre consequências não pretendidas das nossas acções; e normalmente estas consequências não pretendidas não podem ser eliminadas. Explicar porque não podem ser eliminadas é a tarefa principal da teoria social.

(…)

Eu penso que as pessoas que se aproximam das ciências sociais com uma vulgar teoria da conspiração negam a elas próprias a possibilidade de alguma vez entenderem qual é a tarefa das ciências sociais, pois assumem que podemos explicar praticamente tudo numa sociedade perguntando quem o quis, quando a tarefa real das ciências sociais é explicar aquelas coisas que ninguém quer – como, por exemplo, a guerra, ou a depressão. (A revolução de Lenine, e especialmente a revolução de Hitler e a guerra de Hitler são, penso, excepções. Estas foram realmente conspirações. Mas foram consequências do facto de teóricos da conspiração terem chegado ao poder – que, de forma significativa, falharam na consumação das suas teorias).

A tarefa das ciências sociais é explicar como é que as consequências não pretendidas resultam das nossas intenções e acções, e que tipo de consequências resulta se as pessoas fizerem isto ou aquilo ou aqueloutro numa determinada situação social. E é, especialmente, a tarefa das ciências sociais analisar desta forma a existência e funcionamento de instituições (como as forças policiais ou companhias de seguros ou escolas ou governos) e colectivos sociais (como estados ou nações ou classes ou outros grupos sociais). O teórico da conspiração acreditará que as instituições podem ser entendidas completamente como resultado de um desenho consciente; e quanto aos colectivos, habitualmente confere-lhes uma espécie de personalidade de grupo, tratando-os como agentes conspirativos, como se fossem homens individuais. Opondo-se a esta visão, o teórico social deve reconhecer que a persistência de instituições e colectivos cria um problema a ser resolvido em termos de análise das acções sociais individuais e das suas consequências sociais não pretendidas (e muitas vezes não desejadas), assim como das pretendidas.» 

publicado às 13:52

Deus é a mão invisível?

por Samuel de Paiva Pires, em 11.06.11

Mais uma epifania e nota mental de uma ideia a desenvolver no futuro (já vou em 3 por estes dias), que só alguns por aqui compreenderão: a existência de Deus pode ser justificada como uma ordem espontânea, pelo que Deus é a mão invisível de Adam Smith.

publicado às 21:51

Have a nice weekend

por Samuel de Paiva Pires, em 10.07.10

Fundamentar a monarquia através da doutrina do poder divino dos Reis é, no mínimo, anacrónico. Tal como recorrer à fundamentação de Bossuet. É que, absoluto é precisamente a mesma coisa que arbitrário. Desconstruindo, absoluto, do latim absolutus, significa à solta (*). Dizer que o Rei ou o Princípe está enquadrado pela Divindade é de uma arrogância suprema (que Saramago, em Caim, demonstra), e é abrir a porta à escravidão - para evitar o que o Manuel considera como democracia, a vontade das massas. A democracia rousseauniana, sim. Mas há uma Teoria e Prática da Democracia muito mais complexa que isso. Dahl, Sartori, Bobbio e Schumpeter são referências clássicas.

 

Aliás, o Manuel ao reduzir a democracia à tirania da maioria de que falava Tocqueville, cai no mesmo reducionismo dos republicanos portugueses para quem a chefia de Estado republicana é que é verdadeiramente democrática, porque assente no voto. A democracia é muito mais que votar. E por isso mesmo é que historicamente democracia e liberalismo se alinharam. Não sei se isto é um erro ou se é uma concepção que o Manuel tenta fazer passar deliberadamente. Seja como for, quem tem capacidade para mudar de opinião radicalmente - contra o que não tenho nada contra, muito pelo contrário - também presumo que tenha capacidade para aprofundar aquilo que diz, para não cair neste tipo de erros. Eu, como Conservador, continuo a preferir a máxima popperiana de que o que interessa em democracia é saber limitar o poder de quem manda, assumindo ainda a ideia de Churchill de que a democracia é o pior regime, exceptuando todos os outros.

 

A tentativa de procurar o Bem em Deus é a tentativa de sacralizar e tornar intocáveis valores que são terrenos e não divinos, para deixarmos de nos responsabilizar pelas nossas acções, ao externalizar para o transcendente as referências. Quando levamos isto para o campo das lideranças políticas, torna-se perigoso, dado que fundamenta fenómenos como os assentes no carisma dos líderes ligado ao transcendente, de que falava Max Weber. Fundamentar o Governo nisto é não só anacrónico, como o comunismo, como deixa antever todo um novo leque de idotices. Basta lembrar uma, a de George W. Bush que dizia falar com Deus e que as suas acções eram ordens deste.

 

Dito isto, e porque por ora não tenho tempo para escrever muito mais, deixo os caríssimos e caríssimas leitores e leitoras com um magnífico sketch de George Carlin. Bom fim-de-semana.

 

 

(*) inicialmente tinha escrito ab solus, para o que o Manuel me chamou a atenção na caixa de comentários. O significado é praticamente o mesmo, mas absolutus é mais correcto.

publicado às 14:34






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