Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Faz parte da tradição natalícia e em nome dos mais dignos valores da humanidade, o presidente da república fazer uso de uma das suas prerrogativas. Assim sendo, à medida que se aproxima a época do perdão e da compaixão, um assinalável número de processos são colocados sobre a mesa comprida da sala de juntar de Belém. Os processos-crime aterram na presidência com a esperança de serem analisados e obliterados do sistema de justiça. E os sentenciados regressam consolados a casa a tempo da consoada. Muito bandido condenado e residente atrás das grades, já está a esfregar as mãos para ver se lhe sai a fava da dispensa antecipada. O indulto, funciona assim como um mata-borrão, uma apagador de ardósia gasta, para dar uma segunda chance aos prevaricadores. Nestes últimos tempos, Cavaco reinterpretou o significado e âmbito do conceito de indulto, para aplicar indultos sucessivos ao governo da república e fora da época festiva. Têm sido tantas as situações em que Cavaco Silva vira a cara, para não ver as borradas. O indulto deixou de ser uma excepção. O indulto, nos termos em que disserto, tem a ver com a desculpa em demasia praticada pelo chefe de Estado. São tantas as situações políticas que exigiriam precisamente o oposto de amnésia sazonal, esquecimento. São tantas as transgressões que deveriam requerer acção vigorosa do presidente da república, mas não tem sido esse o caso. A cultura do indulto e esquecimento, não é porém um exclusivo presidencial. O cidadão nacional, movido pela sua alegada vocação distraída, tem tendência a indultar e esquecer de um modo leviano tantos e tão bons. Cavaco Silva já colocou no sapatinho de 2014 as comemorações dos 40 anos sobre o 25 de Abril e a conquista da Democracia em Portugal, mas seria mais útil rever o percurso realizado, e sem pudor, realizar um exame de consciência política para tentar explicar como o sucesso da instauração da Democracia se divorciou da salvaguarda dos mais basilares fundamentos de sobrevivência económica e social da população portuguesa. A Democracia, nos termos propostos, parece uma coisa muito distante das dimensões substantivas que regem a vida das pessoas. Podemos ter opinião, falar alto em público na companhia de mais convivas na esquina do bairro, podemos escolher as nossas orientações sexuais, podemos arrastar-nos para a igreja da nossa preferência, podemos criticar a torto e a direito os poderes instalados, podemos contestar as decisões dos governantes, mas, nos dias que correm, tudo isto é feito na penúria, muito perto da miséria e na residência da indignidade. Cavaco Silva, que tem de preencher a agenda de 2014, e apresentar-se como abrilista, parece não querer ver a situação em que se encontra o país. O presidente que já foi presidente, primeiro-ministro e ministro das finanças, entre outras titularidades, parece estar a aproveitar a ocasião para se indultar, para se branquear da neve de responsabilidades. Eu sei que é Natal e em breve terão passado 40 anos sobre a revolução do cravos, mas convém não exagerar as virtudes, elogiar os triunfos e as conquistas das liberdades e garantias, quando a realidade demonstra algo diverso. Que a Democracia de nada serve se os cidadãos são os derradeiros da cadeia política de interesses particulares. Venha de lá o ano novo, que a vida nova geralmente segue-lhe o rasto.
Os dias e as horas serão esquecidos. Mas o ano de 2012 ficará marcado pela partida precoce de Luís Abel Ferreira. Um dos homens mais brilhantes que tive a oportunidade de conhecer, e que me ajudou no meu processo de construção literário. O Luís decidiu cessar a sua relação com este mundo, a 17 de Junho de 2012. Um profissional das letras na mais pura acepção da palavra. Um meio-termo que sempre procurou, mas que nem sempre encontrou. Um estilista devassado pelas mensagens dos outros. Um indivíduo que tornava a sombra faustosa, como um mistério resvalado para muito perto da capa, distante da euforia reclamada pela notoriedade. Foram tantas as obras que perpassou e que estabilizou nessa condição frágil que nunca chega. Um cidadão Português que deveria ser homenageado na sua constrição, na passagem que não é breve. Mas tenho vergonha do círculo que não acendeu a mecha de uma pequena vela. A Agustina Bessa- Luís será lembrada nos tons de petróleo desses livros infinítos. E se procurarem com devoção, lá estará o outro Luís que ampara, amparou e desamparou a simples lógica. Tenho vergonha de um país que não se rende, na hora da morte e da ressurreição. Lamento ser tão pequeno para não erguer o sentimento certo para tamanha crueza. Tenho vergonha de todos eles. Os fabricantes de capas que esgotáram a alma e as parcas edições que se seguiram. Peço perdão ao Luís em nome próprio pela rudeza que não mereces. Deste modo amargurado em ti, encerro um longo ano que não cabe num dia. Uma palavra teria bastado.
(Luís Abel Ferreira - editor-revisor-pensador)