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Quando os políticos e os banqueiros andam enrolados o resultado nunca pode ser grande coisa. Por esta altura do campeonato, o Banco de Portugal (BdP) já deveria ser alvo de uma investigação conduzida pelo Banco Central Europeu (BCE). Se o supervisor das actividades das instituições financeiras não estava a par do que se passava no Grupo Espírito Santo (GES), algo vai mal naquela entidade. Se os sucessivos governadores do BdP viraram a cara a tropelias ilegais, então os mesmos devem ser alvo de processos-crime. E de nada serve usar a expressão: não vale a pena chorar sobre leite derramado. A auditoria que o país exige deveria elencar todas as instituições financeiras ou para-financeiras, e proceder a uma fiscalização preventiva e retroactiva das suas actividades. Quando a esmola é grande, o aforrista deve desconfiar. O presidente do Montepio Geral bem pode aparecer para acalmar os ânimos, e assegurar que o seu banco é diferente dos outros, mas não é bem assim. O sistema financeiro (doméstico ou internacional) tem um DNA complexo, repleto de fluxos e refluxos de dinheiros, fundos e mais fundos de fundos que não têm fim. Nenhuma instituição financeira nacional deve ser considerada imune ao contágio do doente principal. Para tirar tudo a limpo, todos os bancos devem ser sujeitos a um escrutínio meticuloso. Doa a quem doer.
O ser humano, quando exposto a níveis exagerados de adversidades, procura sempre compensar essa carga negativa de inputs e afastá-los do seu espectro, da sua visão. Numa primeira fase, que não deixa de ser crítica, a negação é a reacção natural. A melhor forma de não emprestar força a algo que está a acontecer diante dos nossos olhos, é fingir que não se vê - fazer de conta que não existe. Essa constitui a primeira fase de integração inconsciente da crise. O cidadão que lentamente se vê privado da sua condição material e social, procura seguir em frente fazendo uso de mecanismos de substituição que garantam a manutenção da sua aparência e configuração iniciais. Finda essa fase, contornada de maneira engenhosa, mas desprovida de sustento, entramos numa fase de efectivo abandono do estatuto. De repente o cidadão, consciente da sua mudança, rejeita a "nova" configuração existencial. O meio envolvente que havia sido subjugado pelas capacidades individuais ou colectivas, passa a deter uma posição dominante e a imprimir um curso de acção indesejado. O descalabro económico e social, intenso na sua expressão, já não pode ser compensado com artefactos, e se torna efectivamente algo físico, sentido na pele e pela alma das pessoas. Nesse estádio avançado de tomada de consciência da perda, a depressão é uma consequência natural e, o indivíduo diminuído procura um modo de desligamento do eco-sistema social e político, e da ordem afectiva e emocional. Quando uma nação se encontra nesse estado de decadência, a única solução parece ser acelerar o processo de afastamento da realidade. Lamentavelmente, julgo que um extenso número de cidadãos deste amargurado país, já se encontra em processo de abandono, assumindo a perda irreparável como destino final. O mais recente relatório sobre o consumo de psicotrópicos em Portugal indicia um problema muito mais grave que extravasa as noções convencionais de um serviço nacional de saúde, já de si em desfalecimento acelerado. Os utilizadores de substâncias promotoras de alheamento social e emocional, terão de ser entendidos de acordo com outro conceito, próximo da doença colectiva e da náusea de um povo. À falta de receitas médicas, os indivíduos procurarão diversos modos de auto-medicação, de auto-ajuda ou auto-destruição - os suicídios inscrevem-se nesta categoria. A administração de agentes de acalmia ou euforia escapam a uma tabela convencional. Por um lado, teremos os utentes diagnosticados que já percorreram um caminho receituário longo e, por outro lado, teremos camadas jovens da população, que sentindo um desalento precoce em relação ao futuro, enveredam por práticas que estão de acordo com o seu posicionamento cultural - é aqui que entra a marijuana, o haxixe e mais tarde as drogas mais duras. Não falei da bebida, esse perturbador crónico do equilíbrio das sociedades porque precede esta crise em particular, mas convém sublinhar que o problema do consumo do álcool se tem vindo a agravar e não o contrário. A "guerra" que esta crise representa e que arrastou os portugueses para o campo de batalha pela sobrevivência (entre outros povos da Europa e do Mundo), gerará situações pós-traumáticas que terão de ser tratadas sem mais demoras. Esta devastação que corrói a textura das mulheres e homens deste país, tem de ser tratada em sede de pensamento sobre o futuro de Portugal. O conceito tradicional de veterano de guerra está a ser destronado por outra maleita com expressão negativa equivalente - a colonização das doenças mentais e do foro psicológico. Os comprimidos que estão a ser ingeridos de um modo acelerado são um indicador de uma malaise muito mais grave, e cujos efeitos far-se-ão sentir nas décadas que se seguem. O preço a pagar é elevadíssimo e não existe uma receita simples de retoma económica que possa apagar os danos causados às pessoas. O resgate que Portugal vai requerer não se pode resumir a mais uma tranche avultada de dinheiros. Estamos a lidar com vidas humanas e algo que não pode ser reposto com facilidade - falo de esperança -, um bem cada vez mais raro.
Tarrou, descrevendo Orão em A Peste, de Albert Camus:
«Todos se precipitam, pelo contrário, para qualquer coisa que conhecem mal ou que lhes parece mais urgente do que Deus. Ao princípio, quando julgavam que era uma doença como as outras, a religião estava no seu lugar. Mas, quando viram que o caso era sério, lembraram-se do prazer. Toda a angústia que se pinta durante o dia nos rostos dissolve-se então, no crepúsculo ardente e poeirento, numa espécie de excitação desvairada, numa liberdade desusada que inflama todo um povo. E também eu sou como eles. Mas quê! A morte nada é para os homens como eu. É um acontecimento que lhes dá razão.»