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O texto abaixo é uma síntese de um artigo que mandei para publicação nos Anais do Clube Militar Naval, um clube privado de oficiais da Marinha, e onde já publiquei dezenas de artigos. O artigo foi censurado, porque punha em causa a doutrina do “duplo uso” da Marinha. Esta doutrina não respeita a Constituição e a lei, como explico abaixo.

 

"INTRODUÇÃO

Há 6 anos que me interrogo que problema resolve o conceito de “Marinha de duplo uso”, ou apenas o slogan de “duplo uso”, que tem poucos anos.

No direito e comércio internacionais, “duplo uso” significa aplicar em armas bens e tecnologias declaradas para fins civis. Na “Marinha de duplo uso” é ao contrário: aplicar em fins civis meios concebidos para operações militares, explorando economias.

Os meios militares são usados em tarefas não-militares há séculos. Mas tem balizas práticas e legais. Por exemplo, os submarinos serão muito eficazes a observar e gravar discretamente ilícitos no mar (serão mais baratos e mais rápidos do que aviões telecomandados?), mas não estão preparados para executar os procedimentos legais devidos, nem podem proceder à repressão (fazer cessar o ilícito; obter a prova; levar os infractores à Justiça).

O “duplo uso” não tem expressão na lei e a doutrina que o sustenta colide com a separação que a Constituição e a lei fazem entre segurança interna (a cargo das Polícias) e externa (a cargo das Forças Armadas). Separação que é a norma nos Estados democráticos. E que em nenhum país impede a cooperação de uns e outros. O que se depreende da doutrina do “duplo uso” é que a Marinha, enquanto ramo militar, não quer ver-se na dependência de autoridades civis, ainda que a lei o estabeleça.

 

SEPARAÇÃO DEVIDA?

A separação entre Polícias e Forças Armadas incide em mais do que espaços de actuação ou domínios de formação: o facto de poderem fazer uso legítimo da força leva a delimitar muito bem as condições desse uso corrente. Isto é, não basta ter capacidades, é necessário ter base legal para as usar, que os polícias usualmente têm e os militares usualmente não têm; sem base legal, os cidadãos visados podem recorrer aos tribunais por violações dos seus direitos e obterem indemnizações e sanções para o Estado que violou os seus direitos, afectando o prestígio do Estado, doméstica e internacionalmente. Não é inédito.

De facto, em nenhuma norma jurídica se confere poder de direcção a militares em cargos na estrutura dos ramos das Forças Armadas sobre Polícias; a estrutura hierárquica da Polícia Marítima em nenhum ponto está subordinada à hierarquia militar; os militares que exercem cargos de comando regional da Polícia Marítima fazem-no nesse âmbito. Mas acumulam com o Comando de Zona Marítima (estrutura militar da Marinha), e quem tem a primazia da competência disciplinar (avaliar e louvar ou punir) é o Comandante Naval (estrutura militar) e não, mesmo que seja mais antigo, o Comandante-Geral da Polícia Marítima (que é também por inerência o Director-Geral da Autoridade Marítima, um serviço inserido na estrutura da Autoridade Marítima Nacional). Acresce que um comandante regional da Polícia Marítima é também chefe de vários comandantes locais da Polícia Marítima, que são, por inerência, capitães dos portos (cargo na estrutura da Autoridade Marítima). E como as pessoas são sensíveis aos incentivos (no sentido que lhes dá a ciência económica, em especial, de evitarem custos e procurarem benefícios) é inevitável que os titulares tendam a dar primazia ao seu chefe na Marinha do que ao seu chefe na Autoridade Marítima (e podem fazê-lo discretamente, sem deixar “rasto de prova”), acabando a acção da Polícia Marítima por ver-se submetida às orientações e linhas de acção da Marinha, desde o Comandante Naval, à revelia dos fins constitucionais. Esta regra está inserida na cultura e é rápida a sua difusão e interiorização. Obviamente, estas conclusões não são claras para quem não conheça estas organizações “ao vivo”; por isso, pode emergir e manter-se com escassíssimo escrutínio.

 

 “DUPLO USO” PARA QUÊ?

Que se visará com o “duplo uso” e o empenho no slogan? Será persuasão interna? Será tentativa de impor, pela prática repetida, algo contra a lei? Não sei.

Para que quererá a Marinha persuadir alguém daquilo que será uma realidade consagrada nas leis do país, e de que ela é apenas executante (embora influencie, e muito, a criação)?

Neste contexto, constatando que há vontade política de separar a Marinha e a Autoridade Marítima Nacional (serviço e dirigente de topo), admito que a Marinha veja aí uma ameaça. Uma forma decisiva de combater hoje estas “ameaças” é colocar o assunto na agenda mediática e argumentar que se visa a solução mais barata e melhor para o país (todos os grupos de pressão o fazem, mas poucos têm razão). Não me custa admitir que é disto que se trata: iniciar uma linha de acção comunicacional assente no slogan do “duplo uso” para persuadir o público e os políticos de que sairá mais barato a Portugal que a Marinha continue a mandar no Instituto Hidrográfico, na Autoridade Marítima e no Sistema de Busca e Salvamento Marítimo, sistemas não-militares, dependentes do ministro da Defesa.

Outra hipótese será usar o “duplo uso” para não depender da autoridade do CEMGFA. Se este pretende exercer a sua autoridade legal sobre a Marinha, esta afirma a autonomia da Autoridade Marítima Nacional e poderá actuar através dela como ocorreu no Aluvião da Madeira; e quando não está em causa a autoridade do CEMGFA, a Marinha tratará a Autoridade Marítima como um seu serviço.

 

DUPLA DÚVIDA

A existir, considero esta linha de acção ilegítima. Por duas razões: trata-se de um consumo de recursos pela Marinha (não só verbas orçamentais, mas também tempo do pessoal) para contrariar intenções ou orientações legais, o que belisca a subordinação constitucional das Forças Armadas ao poder político.

Gastar recursos em acções de comunicação, quando ainda está por desenvolver e aplicar doutrina sólida de contabilidade analítica para saber bem e em pormenor como se gastam os impostos pagos pelos contribuintes e que o Governo põe à disposição da Marinha deve merecer reflexão. A contabilidade analítica poderia validar (ou não) o “duplo uso”.

Tudo era mais simples se a Marinha, ultrapassando aquela visão de que uma Marinha só o é se estiver centrada em navios de combate oceânicos, subordinasse as suas orientações à Autoridade Marítima; porque me parece ser isso que o país precisa e deseja mais agora."

 

*Jorge Silva Paulo. Capitão de mar e guerra (Reserva). Engenheiro Construtor Naval. George Marshall Center PG, Security & International Relations; Universidade de Lisboa - Estudos Europeus; Heriot-Watt University MBA, Public Management, University College London, U. of London MSc, Naval Architecture; Escola Naval Licenciatura, Engenheiro Maquinista Naval. http://proa-ao-mar.blogspot.com

publicado às 09:59






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