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Portugal, não tendo princípios, ou não tendo fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes.
Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó.
Este caldo é o Estado. Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade.
Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiotagem; e a dívida, a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.
Tudo é pobre: a preocupação de todos é o pão de cada dia.
Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade.
Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse.
in O primitivo prólogo das Farpas. – Estudo social de Portugal em 1871
Eça de Queiróz
Há muitos anos que a política em Portugal apresenta este singular estado:
Doze ou quinze homens, sempre os mesmos, alternadamente, possuem o poder, perdem o poder, reconquistam o poder, trocam o poder... O poder não sai de uns certos grupos como uma pélcoa que quatro crianças, aos quatro cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar, num rumor de risos.
Quando quatro ou cinco daqueles homens estão no poder, esses homens são, segundo a opinião e os dizeres de todos os outros que lá não estão - os corruptos, os esbanjadores da fazenda, a ruína do País!
Os outros, os que não estão no poder, são, segundo sua própria opinião e os seus jornais - os verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do povo, e os interesses do País.
Mas, coisa notável - os cinco que estão no poder fazem tudo o que podem para continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do País, durante o maior tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se, para deixar de ser o mais depressa que puderem - os verdadeiros liberais, e os interesses do País!
Até que enfim caem os cinco do poder, e os outros, os verdadeiros liberais, entram triunfantemente na designação herdada de esbanjadores da fazenda e ruína do País; entanto que os que caíram do poder se resignam, cheios de fel e de tédio - a vir a ser os verdadeiros liberais e os interesses do País.
Ora como todos os ministros são tirados deste grupo de doze ou quinze indivíduos, não há nenhum deles que não tenha sido por seu turno esbanjador da fazenda e ruína do País...
Não há nenhum que não tenha sido demitido, ou obrigado a pedir a demissão, pelas acusações mais graves e pelas votações mais hostis...
Não há nenhum que não tenha sido julgado incapaz de dirigir as coisas públicas - pela imprensa, pela palavra dos oradores, pelas incriminações da opinião, pela afirmativa constitucional do poder moderador...
E todavia serão estes doze ou quinze indivíduos os que continuarão dirigindo o País, neste caminho em que ele vai, feliz, abundante, rico, forte, coroado de rosas, e num chouto tão triunfante!
Eça de Queiróz, As Farpas, 1871
"Que fazer? Que esperar? Portugal tem atravessado crises igualmente más: - mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não - pelo menos o Estado não tem: - e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela Política. De sorte que esta crise me parece a pior - e sem cura."
Eça de Queirós, in "Correspondência (1891)"
Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, Junho de 1871:
«Há muitos anos a política em Portugal apresenta este singular estado:
Doze ou quinze homens sempre os mesmos, alternadamente, possuem o poder, perdem o poder, reconquistam o poder, trocam o poder... O poder não sai duns certos grupos, como uma péla que quatro crianças, aos quatro cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar, numa explosão de risadas.
Quando quatro ou cinco daqueles homens estão no poder, esses homens são, segundo a opinião e os dizeres de todos os outros que lá não estão, – os corruptos, os esbanjadores da fazenda, a ruína do país, e outras injúrias pequenas, mais particularmente dirigidas aos seus carácteres e às suas famílias.
Os outros, os que não estão no poder são, segundo a sua própria opinião e os seus jornais – os verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do povo, os interesses do país e a pátria.
Mas, cousa notável!
Os cinco que estão no poder, fazem tudo o que podem – intrigam, trabalham, para continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do país, durante o maior tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se para deixar de ser – o mais depressa que puderem – os verdadeiros liberais e os interesses do país!
Até que enfim caem os cinco do poder, e os outros – os verdadeiros liberais – entram triunfantemente na designação herdada de esbanjadores da fazenda e ruína do país, e os que caíram do poder, resignam-se cheios de fel e de amargura – a vir ser os verdadeiros liberais e os interesses do país.
Ora como todos os ministros são tirados deste grupo de doze ou quinze indivíduos, não há nenhum deles que não tenha sido por seu turno esbanjador da fazenda e ruína do país...
Não há nenhum que não tenha sido demitido ou obrigado a pedir demissão pelas acusações mais graves e pelas votações mais hostis...
Não há nenhum que não tenha sido julgado incapaz de dirigir as coisas públicas, – pela imprensa, pela palavra dos oradores, pela acusação da opinião, pela afirmativa constitucional do poder moderador...
E todavia serão estes doze ou quinze indivíduos os que continuarão dirigindo o país neste caminho em que ele vai, feliz, coberto de luz, abundante, rico, forte, coroado de rosas, num choito triunfante!»
Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, "8 - Dezembro de 1871":
«A emigração é decerto um mal.
Porque aqueles que se oferecem mostram ser, por essa resolução, os mais enérgicos e os mais rijamente decididos; e num país de fracos e de indolentes, é um prejuízo perder as raras vontades firmes e os poucos braços viris.
Porque a emigração entre nós, não é como em toda a parte a transbordação de uma população que sobra, é a fuga de uma população que sofre;
Porque não é o espírito de indústria, de actividade, de expansão, de criação, que leva os nossos colonos, - como leva os ingleses à Austrália e à Índia - é a miséria de um país esterilizado que expulsa, sacode e que instiga a emigrar, a procurar longe o pão;
Porque a emigração, tomando o rumo dos países estranhos, contraria a necessidade de regularizar interiormente uma emigração de província a província;
Porque a emigração em Portugal não significa - ausência - significa abandono: o inglês por exemplo vai à Austrália, à América, fazer um começo de fortuna - para voltar a Inglaterra, viver, casar, acabar de enriquecer, servir o seu país, a sua comuna, trazer-lhes auxílio da vontade robustecida, da experiência adquirida, do dinheiro ganho; para Portugal ninguém volta, a não vir provido de boa fortuna, ser improdutivo, burgês retirado, inutilidade a engordar.»
Um mordaz texto de António Manuel Venda, inspirado em Eça de Queiroz, que bem retrata certas personagens cá do burgo, de onde destaco os seguintes parágrafos:
"O Pacheco representa alguém sem valor intelectual, uma nulidade, um tonto que só obtém destaque porque vive rodeado de medíocres. Já diz um ditado que em terra de cegos quem tem olho é rei; bom, um Pacheco é sempre o rei na terra dos parvos, sendo que tais monarquias chegam mesmo a contar com diversos reis, tipo harém, mas ao contrário, ou próximo disso. Em «A Correspondência de Fradique Mendes», lê-se a certa altura: «Pacheco não deu ao seu país nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque tinha um imenso talento (...). O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constantemente ele atravessou a vida sobre eminências sociais: deputado, director-geral, ministro, governador de bancos, conselheiro de Estado, par, presidente do Conselho - Pacheco tudo foi, tudo teve, neste país que, de longe e a seus pés, o contemplava, assombrado com o seu imenso talento (...). A testa de Pacheco oferecia uma superfície larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, conselheiros e directores-gerais balbuciavam maravilhados: - Nem é preciso mais! Basta ver aquela testa!»"
(...)
"Pode, é claro, perguntar-se o seguinte… Mas como é que é? Desses Pachecos, nunca deve ter havido um único que não levasse para casa ao fim do mês uns bons milhares de euros, fora os extras… Às vezes, até me sinto tentado a acreditar que, na verdade, o mundo – enfim, Portugal – pertence aos Pachecos. Aliás, é um pouco a velha teoria de que o sucesso chega facilmente aos artolas, aos pobres de espírito e aos lambe-notas, perdão, aos lambe-botas. Mas adiante…
O meu amigo Tiago Salazar uma vez escreveu um artigo chamado «A mentira é o pão-nosso de cada dia». Nem vale a pena referir quem por lá se espojava, o curioso será copiar uma citação de Confucio, que aparecia logo a abrir. «Um intelectual escreveu, ao nascer o seu filho: As famílias, quando nasce um filho, desejam que ele seja inteligente. Eu, através da erudição, tendo arruinado a minha vida toda, desejo apenas que a criança se revele ignorante e estúpida. Então ela coroará a sua vida tranquila, tornando-se um Ministro de Estado.»"
Num excelente artigo hoje publicado pelo Expresso, Henrique Raposo explica com cristalina clareza, o porquê da aparentemente final eliminação do estudo da obra de Camilo nas escolas portuguesas. Mais que um incómodo para a corrida pela estatística da nota positiva, o escritor representa um Portugal que pouco interessa a quem do próprio país tem uma estranha ou avessa opinião, eximindo-se à própria pertença a esse todo a que chamamos de "nossa gente".
Jamais reconheceram o país que atirou Miguel de Vasconcelos janela abaixo. O Portugal da fraqueza, das lutas estéreis pela côdea do pão emprestado pelo vizinho, é o país que os decisores gostam de ver retratado como seu, único e intemporal. Como Henrique Raposo muito bem faz ver, o Portugal de Camilo é outro, bastante abrasivo, ousado e por vezes quixotesco, mas muito mais seguro de si próprio, impante de qualidades e de defeitos que aceita como passado e destino. O outro Portugal, o imaginado por alguns poucos que lá fora durante algum tempo viveram ou se limitaram à virtual convivência fora de portas nas páginas de umas tantas obras de situação, vive da negação da evidência de uma história que já era antiga, quando as vozes se ergueram no Casino que decretou um até agora ainda não cumprido Finis Patriae. Todos já escutámos com o relativo desinteresse que a habitualidade garante, longas tiradas que debulham o milheiral de defeitos, mesquinhezes e pequenas misérias vomitadas para as costas dos compatriotas. Tomam Lisboa, ou melhor, os clubezinhos de interesses que na capital decidem por milhões, pelo todo. O escusado refinamento chega sempre ao ponto estelar da prosa discorrer perante convivas estrangeiros, quase como se se tratasse de um auto-reconhecimento da absurda situação de diferença, do estar "mais próximo de ti e não dos de cá". Nada pode ser mais estúpido e estapafúrdio, confirmando-se aos olhos dos visitantes, os rezingados séculos de estereótipos que se foram avolumando através de viagens ou curtas estadias de comerciantes defraudados nas expectativas, de diplomatas fracassados nos apetites de submissão da periférica Corte de Lisboa, ou de serralhos de Madames Rattazzis de furores uterinos sem hipótese de atempada refrigeração. Pior ainda, os rosnadores de impropérios jamais serão aceites pelos estrangeiros como os iguais que julgam ser.
Estes pesporrentes parvos que gostam de se condecorar de europeus, como se os demais portugueses nunca o tivessem sido, cobrem-se com pífios galões do conhecimento e da reivindicação das "mentes abertas" sempre atribuídas a outras paragens, aquelas mesmo que no momento em que o português "grosseiro e ignorante de folhos e de espírito" colocava pé no Japão, se contorciam em europeias e épicas chacinas na ténue linha divisória que pouca destrinça faz entre a Alsácia, o Franco-Condado ou o Bade. Num pretenso continente onde 500.000 Km2 - menos de metade de uma Angola! - bastavam e sobejavam para se bater moeda com a declaração de Empire Français ou Deutsches Kaiserreich, o tal bisonho habitante do ocidente peninsular possuía fazendas açucareiras que no Brasil se mediam pela extensão de infindáveis principados europeus. Se atendermos à realidade dos factos como se apresentam, o lusomundo dos 200 milhões de falantes que corroboram uma História que é um libelo acusatório dirigido às abonadas barrigas sem fundo aconchegadas em Lisboa, torna-se cada vez mais, num reflexo daquele Portugal violento, endemoninhado e que não hesitava no ajuste de contas sempre que necessário fosse. O tal "espírito Eça" jamais teria permitido a arrancada para sul do Mondego e muito menos ainda, a travessia dos oceanos e selvas e quanto muito, esses portugueses pequeninos e ao gourmet gostame estrangeiro, teriam como gesta única, a simbólica ocupação das Berlengas. É o Portugal da ínfima chacota, da destruição do eu alheio, da invenção boateira e da baixa intriga que apenas avilta o mensageiro. Enfim, é um certo Portugal bastante lisboeta e que se noutras décadas percorria a pé o eixo Rossio-Chiado, entretendo-se nos cafés e diante dos escaparates das bancas de jornais, hoje coça-se em painéis televisivos. Estes selectos inteligentes não passam de terminais digestivos ambulantes, com esponjoso cérebro acoplado.
Se atendermos bem ao cronómetro da nossa História, é precisamente o Portugal da República que verdadeiramente começou no tal Casino. Melhor teriam feito os comparsas da ora, se se tivessem perdido em bilhares, jogos da bisca ou umas tantas bebedeiras acompanhadas pelas Rattazzis a que pudessem ferrar a unha.
"E depois, nem tudo são tristezas: também temos as nossas festas! E para as festas tudo nos serve: o 1º de Dezembro, a outorga da Carta, o 24 de Julho, qualquer coisa contanto que celebre uma data nacional. Não em público – ainda não podemos fazer -, mas cada um em sua casa, à sua mesa. N’esses dias colocam-se mais flores nos vasos, decora-se o lustre com verduras, põe-se em evidência a linda e velha Bandeira, as Quinas de que sorrimos e que hoje nos enternecem – e depois, todos em família, cantamos em surdina, para não chamar a attenção dos espias, o velho hymno, O Himno da Carta… E faz-se uma grande saúde a um futuro melhor!”
A Catástrofe, Eça de Queiroz
que o cimo da escrivaninha do meu irmão se encheu com os livros de Eça de Queiroz editados pela « Livros do Brasil » .
Foi uma surpresa não só para ele, mas para os outros irmãos, que já afilavam o dente ao ver aquela colecção inteirinha à nossa espera.
Mas esperava-me um balde de água fria: Só podes entender estes livros quando tiveres 15 anos, disse o meu pai, quando viu o olhar guloso que lhes deitei.
Deve ter sido por essa altura que comecei a visitar regularmente a escrivaninha do meu irmão...