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O primeiro engano: a dicotomia entre salvar vidas vs. salvar a economia. Como escreveu há dias Steve Horwitz, os custos económicos são custos humanos e todos os custos humanos têm custos económicos. Qualquer das opções (manter a actividade económica a decorrer normalmente e aumentar o grau de propagação do vírus e os seus efeitos a longo prazo vs. quarentena e distanciamento social com a consequente redução na actividade económica, mas com controlo do vírus e relançamento da actividade económica a curto e médio prazo) tem custos económicos. A política é a arte do possível, pelo que quanto à tomada de decisão sobre políticas públicas, não só a primeira opção é moralmente superior como é também a que, numa análise custo-benefício, provavelmente será menos dispendiosa, segundo dois estudos (este e este) referidos por Cass Sunstein. Como é óbvio, requer um forte pacote estatal de estímulo à economia, que no caso de países detentores de moeda própria é mais fácil e rapidamente implementável, o que me leva ao próximo ponto.
O segundo engano: a ideia de que os países do norte da Europa são muito produtivos e frugais ao passo que os países do sul são pouco produtivos, gastadores e pedintes em relação aos do norte com os “eurobonds” e/ou a impressão de dinheiro pelo BCE. Esta narrativa popular tem feito escola até entre muitos cidadãos de países do sul, sendo visível uma quantidade não-negligenciável dos seus adeptos, muitos deles defensores também da estratégia de salvar a economia em detrimento de vidas humanas aflorada no ponto anterior. Para estes, que no ano de 2020, tendo já passado pela crise do euro, ainda não conseguiram perceber que a União Económica e Monetária tem falhas estruturais conducentes a um funcionamento perverso que privilegia os países do norte e prejudica os do sul, dificilmente haverá salvação. Acresce que o actual choque é simétrico, afecta todos os países, ao contrário do choque assimétrico da crise do euro, típico de uma união monetária com as características que enunciei noutro post. O importante a reter é que percebem tanto de uniões monetárias e política internacional como eu percebo de crochê. Se o país dependesse deles enquanto governantes, morreria boa parte da população e outra grande parte ficaria debilitada, o SNS ficaria arruinado e a retoma económica seria uma miragem à distância de várias décadas.
Na origem destas posições parece-me estar a incapacidade de encarar e lidar com uma problemática que provoca imensas mudanças em tantos sectores das nossas vidas e terá consequências que ainda não conseguimos vislumbrar na sua totalidade e probabilidade, embora não sejam inimagináveis. Muitas empresas irão fechar e muitas deveriam fazê-lo o mais rapidamente possível para não se sobreendividarem e desperdiçarem recursos financeiros e humanos em actividades que não serão viáveis durante bastante tempo (estou a pensar especialmente no sector do turismo), muito provavelmente teremos de nacionalizar empresas de sectores estratégicos (ocorre-me desde logo a TAP), a taxa de desemprego vai disparar, tendo o subsídio de desemprego e as políticas sociais de amparar grande parte da população enquanto esta se reconverte para outros sectores de actividade, não sendo de colocar de lado a possibilidade de implementação de medidas como o Rendimento Básico Incondicional. Quem mais rapidamente se adaptar e transformar em face da mudança, mais depressa conseguirá ultrapassar os efeitos negativos desta.
Já Edmund Burke salientava que “Todos temos de obedecer à grande lei da mudança. É a mais poderosa lei da Natureza, e porventura o meio da sua conservação,” e que “Um estado sem os meios de alguma mudança encontra-se sem os meios da sua conservação”, um eco daqueles ensinamentos de Maquiavel a respeito da capacidade de adaptação do príncipe, de quem afirma ser “preciso que ele tenha um ânimo disposto a virar-se consoante os ventos da fortuna e a variação das coisas lhe mandam.” Como Diogo Pires Aurélio sublinha a propósito da obra do florentino, “O hábito (…) molda uma maneira de agir e, nessa medida, reduz a capacidade de improvisação e adaptação.” E como a política é “por definição uma actividade que se defronta irremediavelmente com a novidade, uma vez que a mudança dos tempos é inevitável: ou se é capaz de os mudar ou há um outro que os muda, ou se triunfa ou se perde.”
Nos tempos relativamente estáveis das últimas décadas, se quiserem, de normalidade, com mudanças relativamente moderadas, a economia tomou precedência sobre a política. Mas não vivemos tempos normais e os quadros mentais da cartilha neo-liberal não servem para estes tempos. E saliento a palavra cartilha, porque os nossos aprendizes de neo-liberais deviam ler mais um dos pais do neo-liberalismo, Friedrich Hayek, de cujo Law, Legislation and Liberty deixo um excerto:
The basic principle of a free society, that the coercive powers of government are restricted to the enforcement of universal rules of just conduct, and cannot be used for the achievement of particular purposes, though essential to the normal working of such a society, may yet have to be temporarily suspended when the long-run preservation of that order is itself threatened. Though normally the individuals need be concerned only with their own concrete aims, and in pursuing them will best serve the common welfare, there may temporarily arise circumstances when the preservation of the overall order becomes the overruling common purpose, and when in consequence the spontaneous order, on a local or national scale, must for a time be converted into an organization. When an external enemy threatens, when rebellion or lawless violence has broken out, or a natural catastrophe requires quick action by whatever means can be secured, powers of compulsory organization, which normally nobody possesses, must be granted to somebody. Like an animal in flight from mortal danger society may in such situations have to suspend temporarily even vital functions on which in the long run its existence depends if it is to escape destruction.
Susan Strange, "International economics and international relations: a case of mutual neglect":
«My other criticism is that the economists' contributions to the study of international economic relations have shown political naïveté. Too often they write on international economic problems as though political factors and attitudes simply did not exist, and could be brushed aside as some kind of curious quirk or aberration of dim-witted politicians. When the economists tell you that it is all just a matter of will, of summoning up the necessary will-power, does it not remind you of those who used to say and write so glibly, forty odd years ago, that the League of Nations would be fine and all international problems could be resolved if only the members showed the necessary will to make the system work? Yet only recently, the Pearson Committee came up with the same kind of conclusion about aid and development. The problems are new, but the responses are the same old 'infantile internationalism' - if I may be allowed a perverted Leninism. Even Professor Cooper, whom I quoted earlier, is also inclined to lapse into the tell-tale Conditional Mood and to assume, despite a measure of pessimism, that the economic cooperation required to avoid catastrophe and conflict is no different in kind (i.e., intrudes no more into perceived national interests) from the international co-operation required to control epidemics.
The bias of economics towards an over-optimistic view of international relations is not, perhaps, so surprising. In the first place, it tends as a discipline to exaggerate the rationality in human behaviour. Economic theory continues to assume it about economic choices, even when descriptive economics has shown how often the rationality is qualified and decisions influenced by non-economic considerations. How much more has international economic history shown that political choices on economic policies have seldom been motivated by carefully reasoned assessments of quantifiable economic costs and benefits, but rather by political aims and fears, and sometimes by totally irrelevant considerations and irrational emotions.
Indeed, the only thing I have ever found really dismal about the science is its habit of reducing individuals to units of a statistic, and then of jumping to the assumption in its model-making that at all times these units are fully interchangeable with one another. It is hardly necessary to warn any political scientist, let alone a politician or political journalist, of the dangers of allowing these intellectual habits to influence judgment about the behaviour of states in international society.»