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Sem norte

por Samuel de Paiva Pires, em 30.11.20

Fátima Bonifácio realiza hoje um exercício que tem tanto de intelectualmente desonesto como de revelador. Diz-se uma conservadora liberal burkeana defensora do reformismo gradualista ao mesmo tempo que defende a perturbação da ordem social e política pelo Chega, um partido que, na tipologia de Jaime Nogueira Pinto, em A Direita e as Direitas, anda algures entre a direita revolucionária e a autoritária, esta última uma corrente da direita conservadora. Ainda seguindo JNP, dentro da família conservadora temos uma segunda corrente, a liberal, que é a das Revoluções Atlânticas que nos deram a democracia liberal, a do conservadorismo anglo-saxónico, onde se inclui Burke, e da democracia cristã. Esta corrente é a antítese da direita autoritária, onde pontificam populistas vários. A literatura recente sobre o populismo mostra que o aparecimento deste (seja de esquerda ou de direita) em democracias liberais consolidadas leva invariavelmente à erosão democrática e, no limite, à quebra da ordem demo-liberal que a historiadora defende. A mesma historiadora que não se inibe de aplaudir o Chega pela possibilidade de terraplanar a ordem política vigente. Tamanha confusão e incoerência só é passível de ser compreendida se levarmos em consideração a enésima vez em que alguém da direita protofascista aventa os fantasmas da alegada supremacia da esquerda a que a direita liberal andaria constantemente a tentar agradar. Boa parte da discussão espoletada pelo artigo dos 54 no Público não é intelectualmente séria, porquanto a direita protofascista é informada por percepções e vieses psicológicos que atestam uma tormenta permanente em relação a um papão esquerdista, seja ele do PS, do BE ou do PCP, o que justificaria todos os meios, inclusivamente entendimentos com extremismos à direita, para desalojar a esquerda do poder. É certo que a política não é só racional, tem muito de emoção. Mas assim sendo, ou bem que deixam a teoria política de lado para não incorrerem em contradições várias, ou assumem a filiação na direita revolucionária ou na autoritária para serem intelectualmente coerentes. Foi esta, no fundo, a clareza que defendemos, contra a amálgama patente no artigo de Fátima Bonifácio. De resto, para os que temem o papão, sugiro que, na hora de irem dormir, comecem a deixar uma luz de presença ligada.

publicado às 15:43

Enganos em tempos de coronavírus

por Samuel de Paiva Pires, em 31.03.20

O primeiro engano: a dicotomia entre salvar vidas vs. salvar a economia. Como escreveu há dias Steve Horwitz, os custos económicos são custos humanos e todos os custos humanos têm custos económicos. Qualquer das opções (manter a actividade económica a decorrer normalmente e aumentar o grau de propagação do vírus e os seus efeitos a longo prazo vs. quarentena e distanciamento social com a consequente redução na actividade económica, mas com controlo do vírus e relançamento da actividade económica a curto e médio prazo) tem custos económicos. A política é a arte do possível, pelo que quanto à tomada de decisão sobre políticas públicas, não só a primeira opção é moralmente superior como é também a que, numa análise custo-benefício, provavelmente será menos dispendiosa, segundo dois estudos (este e este) referidos por Cass Sunstein. Como é óbvio, requer um forte pacote estatal de estímulo à economia, que no caso de países detentores de moeda própria é mais fácil e rapidamente implementável, o que me leva ao próximo ponto.

O segundo engano: a ideia de que os países do norte da Europa são muito produtivos e frugais ao passo que os países do sul são pouco produtivos, gastadores e pedintes em relação aos do norte com os “eurobonds” e/ou a impressão de dinheiro pelo BCE. Esta narrativa popular tem feito escola até entre muitos cidadãos de países do sul, sendo visível uma quantidade não-negligenciável dos seus adeptos, muitos deles defensores também da estratégia de salvar a economia em detrimento de vidas humanas aflorada no ponto anterior. Para estes, que no ano de 2020, tendo já passado pela crise do euro, ainda não conseguiram perceber que a União Económica e Monetária tem falhas estruturais conducentes a um funcionamento perverso que privilegia os países do norte e prejudica os do sul, dificilmente haverá salvação. Acresce que o actual choque é simétrico, afecta todos os países, ao contrário do choque assimétrico da crise do euro, típico de uma união monetária com as características que enunciei noutro post. O importante a reter é que percebem tanto de uniões monetárias e política internacional como eu percebo de crochê. Se o país dependesse deles enquanto governantes, morreria boa parte da população e outra grande parte ficaria debilitada, o SNS ficaria arruinado e a retoma económica seria uma miragem à distância de várias décadas.

Na origem destas posições parece-me estar a incapacidade de encarar e lidar com uma problemática que provoca imensas mudanças em tantos sectores das nossas vidas e terá consequências que ainda não conseguimos vislumbrar na sua totalidade e probabilidade, embora não sejam inimagináveis. Muitas empresas irão fechar e muitas deveriam fazê-lo o mais rapidamente possível para não se sobreendividarem e desperdiçarem recursos financeiros e humanos em actividades que não serão viáveis durante bastante tempo (estou a pensar especialmente no sector do turismo), muito provavelmente teremos de nacionalizar empresas de sectores estratégicos (ocorre-me desde logo a TAP), a taxa de desemprego vai disparar, tendo o subsídio de desemprego e as políticas sociais de amparar grande parte da população enquanto esta se reconverte para outros sectores de actividade, não sendo de colocar de lado a possibilidade de implementação de medidas como o Rendimento Básico Incondicional. Quem mais rapidamente se adaptar e transformar em face da mudança, mais depressa conseguirá ultrapassar os efeitos negativos desta.

Já Edmund Burke salientava que “Todos temos de obedecer à grande lei da mudança. É a mais poderosa lei da Natureza, e porventura o meio da sua conservação,” e que “Um estado sem os meios de alguma mudança encontra-se sem os meios da sua conservação”, um eco daqueles ensinamentos de Maquiavel a respeito da capacidade de adaptação do príncipe, de quem afirma ser “preciso que ele tenha um ânimo disposto a virar-se consoante os ventos da fortuna e a variação das coisas lhe mandam.” Como Diogo Pires Aurélio sublinha a propósito da obra do florentino, “O hábito (…) molda uma maneira de agir e, nessa medida, reduz a capacidade de improvisação e adaptação.” E como a política é “por definição uma actividade que se defronta irremediavelmente com a novidade, uma vez que a mudança dos tempos é inevitável: ou se é capaz de os mudar ou há um outro que os muda, ou se triunfa ou se perde.”

Nos tempos relativamente estáveis das últimas décadas, se quiserem, de normalidade, com mudanças relativamente moderadas, a economia tomou precedência sobre a política. Mas não vivemos tempos normais e os quadros mentais da cartilha neo-liberal não servem para estes tempos. E saliento a palavra cartilha, porque os nossos aprendizes de neo-liberais deviam ler mais um dos pais do neo-liberalismo, Friedrich Hayek, de cujo Law, Legislation and Liberty deixo um excerto:

The basic principle of a free society, that the coercive powers of government are restricted to the enforcement of universal rules of just conduct, and cannot be used for the achievement of particular purposes, though essential to the normal working of such a society, may yet have to be temporarily suspended when the long-run preservation of that order is itself threatened. Though normally the individuals need be concerned only with their own concrete aims, and in pursuing them will best serve the common welfare, there may temporarily arise circumstances when the preservation of the overall order becomes the overruling common purpose, and when in consequence the spontaneous order, on a local or national scale, must for a time be converted into an organization. When an external enemy threatens, when rebellion or lawless violence has broken out, or a natural catastrophe requires quick action by whatever means can be secured, powers of compulsory organization, which normally nobody possesses, must be granted to somebody. Like an animal in flight from mortal danger society may in such situations have to suspend temporarily even vital functions on which in the long run its existence depends if it is to escape destruction.

publicado às 20:50

Da ciência do governo

por Samuel de Paiva Pires, em 09.02.17

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 Edmund Burke, Select Works of Edmund Burke, vol. 2 (Indianapolis: Liberty Fund, 1999), 153 (tradução minha):

Sendo a ciência do governo, portanto, tão prática em si mesma, e destinada a tais propósitos práticos, uma matéria que requer experiência, e ainda mais experiência do que uma pessoa pode adquirir em toda a sua vida, por mais sagaz e observador que possa ser, é com infinita cautela que qualquer homem deve aventurar-se a demolir um edifício que tenha respondido em qualquer grau tolerável, durante épocas, aos propósitos comuns da sociedade, ou a reconstruí-lo novamente sem ter modelos e padrões de utilidade aprovados perante os seus olhos.

 

(também publicado aqui.)

publicado às 21:09

Os rebeldes conservadores e burkeanos de Star Wars

por Samuel de Paiva Pires, em 10.10.16

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 Cass R. Sunstein, The World According to Star Wars:

What do Martin Luther King Jr. and Luke Skywalker have in common?

 

They’re both rebels, and they’re rebels of the same kind: conservative ones. If you want a revolution, you might choose to follow them, at least in that regard. Conservative rebels can be especially effective, because they pull on people’s heartstrings. They connect people to their past, and to what they hold most dear.

 

Some people, like Leia Organa, seem to be rebels by nature, and whenever a nation is run by Sith or otherwhise evil or corrupt, they might think that rebellion is a great idea. They might well be willing to put their own futures on the line for the cause. But in general, even rebels do not like to “reboot” – at least not entirely. This is true whether we are speaking of our lives or our societies.

 

Of course some people want to blow everything up and start over. That might be their temperament, and it might be what their own moral commitments require. But human beings usually prefer to continue existing narratives – and to suggest that what is being written is not a new tale but a fresh chapter, a reform to be sure, but also somehow continuous with what has come before, or with what is best in it, and perhaps presaged or foreordained by it. That’s true for authors of Episodes of all kinds, and not just Lucases and Skywalkers.

 

Consider the words of Edmund Burke, the great conservative thinker (and admittedly no rebel), who feared the effects of “floating fancies or fashions,” as a result of which “the whole chain and continuity of the Commonwealth would be broken.” To Burke, that’s a tragedy, a betrayal of one of the deepest human needs and a rejection of an indispensable source of social stability. Burke spoke with strong emotion about what would happen, should that break occur: “No one generation could link with the other. Men would become little better than the flies of a summer.”

 

Pause over those sentences. Burke insists that traditions provide connective tissue over time. That tissue helps to give meaning to our lives, and it creates the closest thing to permanence that human beings can get. This is a conservative thought, of course, but even those who do not identify as conservative like and even need chains and continuities. That’s part of the appeal of baseball; it connects parents with their children, and one generation to another. The same thing can be said about Star Wars, and it’s part of what makes the series enduring. It’s a ritual.

 

In the Star Wars series, what the rebels seek is a restoration of the Republic. In that sense, they are real conservatives. They can be counted as Burkeans – rebellious ones, but still. They’re speaking on behalf of their own traditions. By contrast, Emperor Palpatine is the real revolutionary, and so are the followers of the First Order. Luke, the Rebel Alliance, the Resistance want to return to (an idealized version of) what came before. They look backward for inspiration. In fact that’s kind of primal.

 

Martin Luther King Jr. was a rebel, unquestionably a Skywalker, with a little Han and more than a little Obi-Wan. He sought fundamental change, but he well knew the power of the intergenerational link. He mande claims of continuity with traditions, even as he helped to produce radically new chapters.

 

From King’s speech about the Montgomery Bus Boycott:

 

If we are wrong, the Supreme Court of this nation is wrong. If we are wrong, the Constitution of the United States is wrong. If we are wrong, God Almighty is wrong. If we are wrong, Jesus of Nazareth was merely a utopian dreamer that never came down to earth. If we are wrong, justice is a lie. Love has no meaning.

publicado às 23:31

A perda como essência do conservadorismo (2)

por Samuel de Paiva Pires, em 22.09.16

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 Andrew Sullivan, A Alma Conservadora:

Não constitui, pois, grande surpresa que o primeiro grande texto sobre o conservadorismo anglo-americano, as Reflections on the Revolution in France (Reflexões sobre a Revolução Francesa) de Edmund Burke, verse todo ele sobre a perda. Trata-se de um longo discurso desesperado e eloquente em relação à injustificada destruição da velha ordem. Quando os revolucionários franceses tomaram de assalto a Bastilha e deitaram abaixo uma monarquia e a Igreja, refizeram o calendário e executaram milhares de dissidentes em nome de uma nova era para a humanidade, Burke sentiu, antes de mais, uma enorme tristeza. O seu primeiro impulso foi ficar de luto pelo que se perdera. Ficou de luto embora nada daquilo lhe pertencesse. Não era a mesma coisa do que, na verdade, defender a velha ordem, a qual a muitos títulos era indefensável, tal como Burke acaba por admitir. Era simplesmente para lembrar aos seus companheiros humanos que a sociedade é uma coisa complicada, que as suas estruturas se desenvolvem não por meio de acidentes mas por meio da evolução, e que mesmo os laços mais imperfeitos que unem os indivíduos não podem ser cortados à toa em nome de uma ideia de perfeição que ainda nem sequer tomou forma.

publicado às 21:12

Um resumo do pensamento político de Edmund Burke

por Samuel de Paiva Pires, em 20.04.16

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 Peter Berkowitz, "Debate Club":

Burke’s thinking is informed by an opinion about nature very different from Paine’s conception of solitary and asocial man. For Burke, man is by nature a social animal: Human beings are always living in a complex web of relations to other human beings and bound by obligations that tie each individual not only to the living but also to the dead and those not yet born. Political society does not derive its legitimacy from consent but rather from its ability to satisfy human needs. Individual liberty may be the highest need satisfied by politics, but satisfying it does not consist primarily in the enumeration of rights but in respecting duties, exercising restraint, maintaining soundly structured institutions, and adjusting laws to the habits, sentiments, and passions of the people. Political analysis is led astray by the search for abstract principles of reason; it should rely instead on study of “the history and character of one’s own society.” Principles of justice are embedded in long-standing practices and traditions, discerned on the basis of experience, and implemented by prudence or practical judgment. Since “change is the most powerful law of nature,” statesmen must constantly adjust, balance, and calibrate, crafting reforms that proceed gradually, incrementally, and in keeping with the spirit of the people and the principles that have served them well. While Burke believed in human equality, he thought that preparation for the hard task of governing required the kind of leisure and education typical of a natural aristocracy within a free society. Because of the limits of human reason—both its inability to resolve the deepest philosophical issues and its weakness in directing the passions and disciplining the imagination—a large role in political life must be reserved for “prescription,” or the presumption in favor of the long-standing institutions of civil society, particularly family and faith, that mold morals. Political parties “must ever exist in a free country” since citizens uniting around their favored principles is the best way to nurture the variety of principles on which freedom depends. Revolution of the sort seen in France is always wrong; it undermines the freedom in whose name it is undertaken by destroying the manners, mores, and attachments that restrain the human lust for power.

publicado às 09:00

Com infinita cautela

por Samuel de Paiva Pires, em 20.10.15

Há dias, expressei aqui a minha preocupação com as mudanças estruturais que as movimentações de António Costa podem impor ao sistema partidário português, cujo principal prejudicado, a longo prazo, será o próprio PS, que poderá ficar refém do BE e CDU e dificilmente conseguirá restabelecer o acordo de cavalheiros que impera há décadas entre os partidos do arco da governação e que tem permitido a existência de governos saídos de maiorias relativas no parlamento. Ora, a este propósito, temos assistido a um não surpreendente rol de declarações e comentários de quem não possui uma disposição conservadora, de quem é cego em relação às consequências imprevisíveis dos ímpetos de António Costa, de quem parece ter a mente toldada pela sede de poder a todo o custo. Permitam-me, por isso, relembrar uma das minhas citações favoritas de Edmund Burke:

The science of government being therefore so practical in itself, and intended for such practical purposes, a matter which requires experience, and even more experience than any person can gain in his whole life, however sagacious and observing he may be, it is with infinite caution that any man ought to venture upon pulling down an edifice, which has answered in any tolerable degree for ages the common purposes of society, or on building it up again, without having models and patterns of approved utility before his eyes.

publicado às 10:52

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Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France:

You see, Sir, that in this enlightened age I am bold enough to confess, that we are generally men of untaught feelings; that instead of casting away all our old prejudices, we cherish them to a very considerable degree, and, to take more shame to ourselves, we cherish them because they are prejudices; and the longer they have lasted, and the more generally they have prevailed, the more we cherish them. We are afraid to put men to live and trade each on his own private stock of reason; because we suspect that this stock in each man is small, and that the individuals would do better to avail themselves of the general bank and capital of nations, and of ages. Many of our men of speculation, instead of exploding general prejudices, employ their sagacity to discover the latent wisdom which prevails in them. If they find what they seek, (and they seldom fail) they think it more wise to continue the prejudice, with the reason involved, than to cast away the coat of prejudice, and to leave nothing but the naked reason; because prejudice, with its reason, has a motive to give action to that reason, and an affection which will give it permanence. Prejudice is of ready application in the emergency; it previously engages the mind in a steady course of wisdom and virtue, and does not leave the man hesitating in the moment of decision, sceptical, puzzled, and unresolved. Prejudice renders a man's virtue his habit; and not a series of unconnected acts. Through just prejudice, his duty becomes a part of his nature.

Your literary men, and your politicians, and so do the whole clan of the enlightened among us, essentially differ in these points. They have no respect for the wisdom of others; but they pay it off by a very full measure of confidence in their own. With them it is a sufficient motive to destroy an old scheme of things, because it is an old one. As to the new, they are in no sort of fear with regard to the duration of a building run up in haste; because duration is no object to those who think little or nothing has been done before their time, and who place all their hopes in discovery.

publicado às 18:50

 

Roger Scruton, "Identity, family, marriage: our core conservative values have been betrayed":

 

«Burke was a great writer, a profound thinker and a high-ranking political practitioner, with a keen sense both of the damage done by the wrong ideas, and the real need for the right ones. Political wisdom, Burke argued, is not contained in a single head. It does not reside in the plans and schemes of the political class, and can never be reduced to a system. It resides in the social organism as a whole, in the myriad small compromises, in the local negotiations and trusts, through which people adjust to the presence of their neighbours and co-operate in safeguarding what they share. People must be free to associate, to form "little platoons", to dispose of their labour, their property and their affections, according to their own desires and needs.

 

But no freedom is absolute, and all must be qualified for the common good. Until subject to a rule of law, freedom is merely "the dust and powder of individuality". But a rule of law requires a shared allegiance, by which people entrust their collective destiny to sovereign institutions that can speak and decide in their name. This shared allegiance is not, as Rousseau and others argued, a contract among the living. It is a partnership between the living, the unborn and the dead – a continuous trust that no generation can pillage for its own advantage.

 

(...)

 

Our situation today mirrors that faced by Burke. Now, as then, abstract ideas and utopian schemes threaten to displace practical wisdom from the political process. Instead of the common law of England we have the abstract idea of human rights, slapped upon us by European courts whose judges care nothing for our unique social fabric. Instead of our inherited freedoms we have laws forbidding "hate speech" and discrimination that can be used to control what we say and what we do in ever more intrusive ways. The primary institutions of civil society – marriage and the family – have no clear endorsement from our new political class. Most importantly, our parliament has, without consulting the people, handed over sovereignty to Europe, thereby losing control of our borders and our collective assets, the welfare state included.»

publicado às 17:15

«O nosso presente civil» (1)

por Samuel de Paiva Pires, em 15.07.12

Roger Scruton, As Vantagens do Pessimismo (o titulo do post é o do capítulo de onde estas passagens foram transcritas):

 

«Ao discutir a teoria austríaca do mercado, notei a semelhança entre essa teoria e a abordagem da tradição que foi articulada pela primeira vez em Reflexões sobre a Revolução em França, de Burke. Ambos os argumentos dependem da ideia de que as soluções racionais para problemas sociais podem evoluir e de que a solução evoluída será sensível à informação respeitante às necessidades e às carências dos estranhos. Essa informação será destruída pelo planeamento de cima para baixo, o que fará progredir no sentido de resultados imprevistos e imprevisíveis, mas sem a informação que podia influenciar esses resultados para o bem comum. Para Burke, o principal dom da tradição foi o estado mental a que chamou «preconceito», pelo qual significava uma forma de pensamento que evolui das experiências reunidas de gerações ausentes. O preconceito evita soluções abstractas e serve de barreira contra a ilusão de que podemos fazer tudo de novo, segundo um plano idealmente racional. Não é irracional: pelo contrário, abre caminho para uma racionalidade colectiva. Pelo contrário, o plano racional, que importa um objectivo colectivo para onde não se prevê coerentemente qualquer objectivo, e que não consegue adaptar-se a mudanças das carências e das necessidades dos agentes individuais, será irracional na sua execução, tal como no seu fim. O planeamento pode ser a resposta adequada a emergências e a conflitos de soma zero, como na guerra. Mas não pode resolver os conflitos da sociedade civil nem proporcionar governo com um objectivo.

 

Esses argumentos, que constituem o núcleo intelectual de um certo tipo de conservadorismo, não são meros movimentos num debate político. Apontam para a emergência nas sociedades históricas, de uma nova espécie de racionalidade colectiva – não a racionalidade do «eu» de um líder e dos seus planos, mas a racionalidade do «nós» de uma comunidade consensual. É a essa racionalidade do «eu» que o pessimista cauteloso se refere quando tenta neutralizar falsas esperanças. Embora, como argumentei no capítulo nove, a espécie humana tenha herdado defesas ferozes e muitas vezes assustadoras contra aqueles que lhe frustrem as ilusões, a tendência subjacente de civilização e, na verdade, a sua característica definidora é dar uma oportunidade a essas pessoas. A abertura da comunidade à dúvida e à hesitação, a concessão de voz ao profeta – é esse o princípio da sabedoria. E daí emerge uma nova espécie de ordem em que a lei descoberta substitui as ordens reveladas, a negociação substitui a dominação e a livre troca substitui a distribuição centralizada de acordo com o planoem vigor. Essaé a ordem da cidade e é uma ordem que combina liberdade individual com uma genuína primeira pessoa do plural. É vulnerável ao regresso súbito da racionalidade do «eu» e ao frenesim da soma zero dos ressentidos – e assistimos muitas vezes a isso nos últimpos tempos. Mas também tem a capacidade de se manter em existência através das instituições e dos costumes de uma comunidade livre. Parece-me que o nosso actual confronto com os islamitas devia ter-nos despertado para o facto de haver algo precioso em jogo e de essa coisa preciosa ser precisamente o que nos permitiu viver como uma comunidade livre de estranhos, sem nos submetermos a intimidades tribais e a ordens de cima para baixo. Em conclusão, parece certo rever algumas das características distintivas, tanto institucionais como individuais, que nos tornaram possível viver lado a lado em liberdade sem investir os nossos sentimentos sociais nas falsas esperanças que com tanta frequência trouxeram o desastre à espécie humana.»

publicado às 14:29

Edmund Burke sobre a dívida pública

por Samuel de Paiva Pires, em 19.06.12

 

Uma passagem mais do que actual das Reflexões sobre a Revolução em França, citada por Rui Bertrand Romão, na conferência de ontem:

 

«Nations are wading deeper and deeper into an ocean of boundless debt. Public debts, which at first were a security to governments, by interesting many in the public tranquillity, are likely in their excess to become the means of their subversion. If governments provide for these debts by heavy impositions, they perish by becoming odious to the people. If they do not provide for them, they will be undone by the efforts of the most dangerous of all parties; I mean an extensive discontented monied interest, injured and not destroyed.»

publicado às 17:49

O Estranho Iluminismo do Liberal Burke

por o corcunda, em 17.04.12

A apresentação desta tarde de João Pereira Coutinho sobre as Reflexões sobre a Revolução em França teve alguns pontos que se destacaram. O carácter da ideologia, o carácter iluminista de Burke e o fundamento marcadamente liberal do conservadorismo foram temas aflorados e que merecem alguma reflexão.

À primeira vista nada disto destoa de uma certa interpretação britânica das Reflexões. A uma segunda também. Mas há algumas questões que permanecem por esclarecer e que assolam a interpretação de JPC, assim como a de certo conservadorismo contemporâneo.

 

Burke fala da Revolução como “armed doctrine”. Como é evidente Burke considera que essa doutrina, aquilo a que chamamos hoje ideologia, é uma ideia com uma finalidade própria, a subversão da sociedade com vista a uma finalidade. Mas ao contrário do que é afirmado por JPC, o problema macro de Burke não é o facto de a sociedade dispor de uma finalidade (ao contrário de Hayek ou Oakeshott, em que a comunidade bem organizada é desprovida de finalidade, em Burke a finalidade é sempre a justiça e esta um reflexo de Deus), mas o facto de se dispor voluntariamente dessa finalidade, subvertendo o justo à vontade do povo ou do governo.

 

Essa questão levanta um problema mais profundo. Se se acreditar que Burke escreve contra a instauração de um governo ideológico, como pode defender um governo liberal? Como é evidente há duas opções. Pode considerar-se que o liberalismo não é uma ideologia, o que é manifestamente errado, uma vez que este se encaixa na perfeita definição de ideologia (um conjunto de ideias com suposta independência da religião e validade filosófica). Pode considerar-se, por outro lado, que o liberalismo não é uma ideologia, uma vez que esta é dependente de uma ideia que lhe é superior. O liberalismo seria assim uma fracção mais pequena de uma ideia maior, essa sim com valor normativo. Só dessa forma o liberalismo poderia não ser uma ideia entre as muitas da Modernidade. Só assim Burke poderá não se tornar irrelevante enquanto um ideólogo que escreve contra a ideologia. Parece-me certo que JPC não terá reflectido sobre este contra-senso.

 

Há ainda outros problemas profundos na interpretação de JPC. Afirma que Burke se inscreve na perspectiva do Iluminismo Escocês. Há, contudo, um conjunto de problemas que esta posição acarreta. Segundo JPC, Burke teria uma visão instrumental da Religião, assemelhando-se a Hume e outros autores dessa formulação filosófica. Segundo este, Burke dispensaria a Religião em favor de um liberalismo e de uma sociedade ordenada segundo princípios liberais. O problema desta visão é a torrente de escritos de Burke que são dirigidos contra Hutcheson e Hume. O Philosophical Enquiry into the Origins of the Sublime and Beautiful é uma obra que pretende resgatar a filosofia da irreligiosidade de ambos os autores desse “Iluminismo Escocês”. São profusas as referências depreciativas ao cepticismo filosófico de Hume e à sua proximidade, também filosófica, com Rousseau (o maior alvo das Reflexões). Mesmo em matérias constitucionais divergência entre ambos não poderia ser maior, criticando Burke com veemência as posições de Hume sobre a Monarquia. Interessa saber como poderá uma forma de Iluminismo Britânico mover-se contra a sua própria fundamentação. Filosófica ou constitucionalmente Burke e Hume são mutuamente excludentes. Ambos o sabiam. O tempo tratou de fazer com que os nossos contemporâneos o não percebessem.

 

Na ânsia de autonomizar e a si adaptar o conservadorismo, os liberais transformam-no naquilo que ele pretendia combater, numa ideologia. Para isso recorrem à obliteração do carácter eminentemente cristão de Edmund Burke, algo que torna o autor das seguintes linhas (as últimas da quarta das Cartas sobre uma Paz Regicida, um dos últimos escritos de Burke) totalmente incompreensível.

 

“That the Christian Religion cannot exist in this country with such a fraternity, will not, I think, be disputed with me. On that religion, according to our mode, all our laws and institutions stand as upon their base. (…)

 

It is a great evil, that of a civil war. But in that state of things, a civil war which would give to good men and a good cause some means of struggle, is a blessing of comparison that England will not enjoy.”

 

O mito do Burke que vê a Religião como algo dispensável cai, assim e por via do próprio, por terra. A ideia de que Burke aceitaria a irreligiosidade da constituição em favor do expediente, de uma teoria liberal ou de qualquer forma de cepticismo (uma posição muito liberal contra os "reaccionários" que nunca se sentariam à mesa com a Revolução) é nada mais que isso. Um mito. E nem sequer dos mais bem construídos...

publicado às 02:13

 

Edmund Burke, "Discurso sobre a reforma da representação na Câmara dos Comuns":

 

«É verdade que dizer que a nossa Constituição é o que sempre foi não é uma defesa que satisfaça aqueles que dizem que é uma má Constituição. É uma resposta àqueles que dizem que é uma Consituição degenerada. Àqueles que dizem que é má, respondo: olhai para os seus efeitos. Em todos os mecanismos morais, os resultados morais são a prova.

 

A que fundamentos recorreremos para restituir a nossa Constituição ao que já foi num dado período, ou para a reformar e reconstruir sobre princípios mais conformes com uma sensata teoria do governo? Um governo consuetudinário, tal como o nosso, nunca foi obra de um legislador, nunca se fez com base numa teoria anterior. Parece-me um modo desarrazoado de raciocinar e uma perfeita confusão de ideias, aceitar as teorias que homens eruditos e especulativos formaram desse governo e supor que este se fez com base nessas teorias elaboradas a partir daquele para acusar o governo de não corresponder a essas mesmas teorias. Não estou a vilipendiar a teoria nem a especulação - não, pois isso seria vilipendiar a própria razão. Neque decipitur ratio, neque decipit unquam (A razão nunca engana nem é enganada). Não, sempre que falo contra a teoria, viso sempre uma teoria fraca, errónea, falaciosa, infundada ou imperfeita - e uma das maneiras de descobrir que é uma falsa teoria é compará-la com a prática. É esta a pedra de toque de todas as teorias atinentes ao homem e aos assuntos humanos - serve à sua natureza em geral, serve à sua natureza modificada pelos seus hábitos?»

publicado às 22:52

(Artigo publicado no n.º 4 do Lado Direito, jornal da Juventude Popular de Lisboa)

 

Liberalismo e conservadorismo são duas das mais importantes correntes da teoria política, cujos pontos em comum, pese embora algumas divergências, são de salientar. Para este propósito, nada melhor do que analisar Edmund Burke, o chamado pai do conservadorismo, e Friedrich Hayek, um dos mais importantes liberais do século XX, que em muito se inspirou em Burke. Aliás, mais do que catalogar os autores de acordo com categorias por nós atribuídas a posteriori, importa realmente estudar as ideias destes, já que os pontos coincidentes são muitos.

 

Burke e Hayek subscrevem a mesma filosofia política, havendo uma partilha de valores comuns. Embora existam diferenças entre alguns dos seus pontos de vista, partilham “visões similares quanto à natureza da sociedade, o papel da razão na conduta humana e as tarefas do governo, bem como, até certo ponto, quanto à natureza das regras morais e legais”1. As parcas diferenças parecem ficar a dever-se ao credo religioso, sendo Burke um seguidor do cristianismo e Hayek um agnóstico. 

 

De certa forma, Hayek tentou completar o pensamento de Burke com uma base científica, para além da espiritual, o que fica patente no entendimento hayekiano quanto à natureza da sociedade que, tal como o entendimento de Burke, deriva das ideias dos iluministas escoceses que contribuíram para desenvolver a doutrina Whig (partido político britânico de que Burke foi a figura maior). Para Adam Ferguson, David Hume e Adam Smith, a sociedade e as suas instituições são o resultado de um processo de crescimento cumulativo em que a ordem social é um produto da interacção entre instituições, hábitos, costumes, lei e forças sociais impessoais. Tanto Burke como Hayek possuíam uma visão idêntica, de que as instituições sociais são o produto de um complexo processo histórico, caracterizado pela experimentação, ou seja, por tentativa e erro. Para ambos, as condições para que uma sociedade floresça consubstanciam-se no necessário respeito e compreensão pelas forças que mantêm a ordem social, que não deve ser alvo de manipulação e controlo por parte de teorias que pretendam acabar com ela, sendo o desejo de apagar o que existe e desenhar a sociedade de novo apenas a demonstração de uma profunda ignorância quanto à natureza da realidade social. Esta mesma acepção inspira a forma como encaram o papel da razão, considerando que a civilização não é uma criação resultante de uma construção racional, mas o imprevisto e não intencionalmente pretendido resultado da interacção espontânea de várias mentes numa matriz de valores, crenças e tradições não racionais ou supra racionais, o que não significa que o liberalismo e conservadorismo sejam irracionais, mas apenas que não o são no sentido cartesiano, socialista, preferindo reconhecer limites ao poder da razão humana e considerando o “homem não como um ser altamente racional e inteligente mas sim muito irracional e falível, cujos erros individuais são corrigidos apenas no decurso do processo social”2.

           

Este ponto de partida perpassa os edifícios teóricos burkeano e hayekiano no que à política e à economia diz respeito. Ambos são defensores do mercado livre e objectores à manipulação por parte do governo dos processos do mercado, dado que viola as regras e princípios do comércio livre, sendo, por isso, uma intervenção arbitrária corrosiva da liberdade e da justiça.

           

No que à já referida divergência concerne, se no entendimento de Burke a sociedade civil fundamenta-se no cristianismo e, logo, também o estado, instituição sagrada providenciada pela Vontade Divina, Hayek, por seu lado, sendo agnóstico, não partilhava da mesma acepção por temer a antropomorfização da Vontade Divina, em que uma particular vontade humana – ou várias – ficaria a dirigir o curso da vida social, inspirando esforços equivocados para controlar o processo social espontâneo através da direcção consciente.

           

Esta divergência, contudo, não constitui obstáculo a uma defesa da tradição e do mercado, que ambos realizam, inclusivamente em termos morais. Em Hayek encontramos a defesa da tradição, do costume e de uma moralidade baseada no senso comum, de índole prática, como aponta Roger Scruton. Este filósofo conservador britânico assinala que Hayek encara o mercado livre como sendo parte de uma ordem espontânea alargada, fundada na livre troca de bens, ideias e interesses – o jogo da cataláxia, na terminologia hayekiana. Este jogo acontece ao longo do tempo e para além dos vivos tem nos mortos e nos ainda por nascer os restantes jogadores, como Burke também havia afirmado, que se manifestam através das tradições, instituições e leis. A assertividade dos argumentos apresentados por Scruton quanto à compatibilidade entre a tradição, a moral e o mercado é por demais evidente: “Aqueles que acreditam que a ordem social exige restrições ao mercado estão certos. Mas numa verdadeira ordem espontânea as restrições já lá estão, sob a forma de costumes, leis e princípios morais. Se essas coisas boas decaem, então de forma alguma, de acordo com Hayek, pode a legislação substituí-las, pois elas surgem espontaneamente ou não surgem de todo, e a imposição de éditos legislativos para a “boa sociedade” destrói o que resta da sabedoria acumulada que torna tal sociedade possível. Não é, por isso, surpreendente que pensadores conservadores britânicos – notavelmente, Hume, Smith, Burke e Oakeshott – tendam a não ver qualquer tensão entre a defesa do mercado livre e uma visão tradicionalista da ordem social. Eles puseram a sua fé nos limites espontâneos que o consenso moral da comunidade coloca ao mercado. Talvez este consenso esteja agora a quebrar-se. Mas esta quebra resulta, em parte, da interferência estatal, e é certamente improvável que venha a ser reparada pela mesma”3.

           

Por tudo isto, nada como terminar subscrevendo José Adelino Maltez, quando este afirma que partilhamos de “uma concepção do mundo e da vida anti-construtivista, anti-revolucionária e anti-estadista, segundo a qual não é a história que faz o homem, mas o homem que faz a história, mesmo sem saber que história vai fazendo.”



1 - Linda C. Raeder, Linda C. Raeder, “The Liberalism/Conservatism Of Edmund Burke and F. A. Hayek: A Critical Comparison”, in Humanitas, Vol. X, N.º 1, 1997. Disponível em http://www.nhinet.org/raeder.htm.

2 - F. A. Hayek, “Individualism: True and False”, in Individualism and Economic Order, Chicago, The University of Chicago Press, 1996, pp. 8-9.

3 - Roger Scruton, “Hayek and conservatism”, in Edward Feser (ed.), The Cambridge Companion to Hayek,Cambridge, Cambridge University Press, 2006, p. 219.

publicado às 19:06

O rol de colunistas do i é de facto invejável. A seguir com atenção os ensaios de João Carlos Espada aos sábados. Aqui fica na íntegra o de hoje:

 

 

(Edmund Burke, imagem roubada ao i)

 

"No mundo de língua inglesa, Burke é venerado por todos os quadrantes políticos civilizados. O socialista Harold Laski considerou-o um dos maiores pensadores políticos britânicos. O presidente norte-americano Woodrow Wilson, um homem situado à esquerda, citava-o como seu mestre. Raymond Plant definiu-o como inspirador do New Labour de Tony Blair. Simultaneamente, à direita, Burke é visto como o fundador do moderno conservadorismo de Disraeli, Salisbury, Churchill e Margaret Thatcher. Como explicar esta versatilidade de Burke? E, o que é ainda mais difícil, como explicar que no continente europeu Burke seja visto como um mero reaccionário ultrapassado que nunca compreendeu a Revolução Francesa?

Por outras palavras, Edmund Burke está no centro do "mistério inglês" que procuramos decifrar nestes ensaios - o mistério do mais antigo regime liberal que assimilou todas as revoluções modernas sem nunca recorrer à revolução.

Um enigma que vem de longe
. Quando a Revolução Francesa começou, em 1789, todos esperavam que Edmund Burke a apoiasse. Ele era o líder parlamentar dos Whigs, os antepassados aristocratas dos liberais. Durante toda a sua ilustre carreira parlamentar, Burke distinguira-se na oposição aos Tories, os antepassados dos conservadores (que ainda hoje usam aquele nome). Defendera os direitos dos católicos irlandeses; defendera os direitos dos colonos americanos, considerando que a Declaração de Independência das 13 colónias fora produto da intransigência Tory; condenara os abusos britânicos na Índia e liderara o processo de impugnação de Warren Hastings, governador da Índia e líder Tory; finalmente, condenara o chamado "governo de corte" do rei Jorge III e defendera o controlo parlamentar sobre os governos.

Em suma, os Tories detestavam Edmund Burke. Os Whigs, por seu lado, viam-no como o seu líder intelectual. Assim, quando Burke fez um primeiro discurso parlamentar exprimindo sérias reservas face à Revolução Francesa, um pesado silêncio caiu sobre a Câmara dos Comuns. "Como é possível?", perguntavam os Whigs. "Que estará este agora a tramar?", perguntaram os Tories. E o silêncio daria lugar à estupefacção. Burke acentuou as suas críticas à revolução gaulesa e, em 1990, publicou a sua obra-prima - "Reflexões sobre a Revolução em França" - um ataque demolidor ao projecto revolucionário. Do lado liberal choveram os ataques e ele foi acusado de ter perdido o juízo. Do lado conservador, a admiração crescia - mas em silêncio.

Desta forma, tudo indicava que Edmund Burke ia terminar a sua longa e brilhante carreira em total isolamento. Só que, em 1793, Luís XVI é executado e tem início o Reino do Terror em nome da República da Virtude - uma adaptação intencional do Reino da Virtude de Jean-Jacques Rousseau. De súbito confirmavam-se as previsões de Burke acerca do destino anárquico e despótico da Revolução Francesa. Alguns dos críticos, embora não todos, reconheceram publicamente que Burke tivera razão. Os Whigs começaram a aceitar a tese principal burkiana: que a revolução em França era fundamentalmente diferente da revolução inglesa de 1688 e da revolução americana de 1776. E as elites de língua inglesa - incluindo os conservadores e os liberais - iniciaram uma espécie de exame de consciência para tentarem assimilar a mensagem de Burke sobre a especificidade da liberdade ordeira no mundo de língua inglesa.

Três teses
. Podemos resumir os argumentos de Burke em três teses essenciais.

Em primeiro lugar, disse que a ideia de revolução total é absurda e que nunca estivera presente na tradição liberal inglesa, mesmo quando esta tivera de recorrer à revolução.

Em segundo lugar, disse que a chave da liberdade política é um governo limitado que presta contas aos contribuintes, não um governo activista que quer "libertar" os cidadãos dos seus próprios "preconceitos e disposições".

Em terceiro lugar, observou que para limitar o governo não é preciso recorrer a uma filosofia que faça depender tudo da escolha dos indivíduos. Recordou que o sentido do dever não depende da vontade ou da escolha de cada um, que "o dever e a vontade são até termos contraditórios". Finalmente, sustentou que a liberdade não será duradoura entre os povos que ignorem o sentido do dever.

O absurdo da revolução total. A crítica de Burke à ideia de revolução total é extraordinariamente moderna. Antecipou a epistemologia falibilista de Karl Popper e as teorias de Hayek e Oakeshott sobre a natureza tácita e descentralizada de uma boa parte do nosso conhecimento. Basicamente, Burke não criticou a revolução total em nome de manter tudo na mesma. Criticou-a por assentar no pressuposto ingénuo de que podemos desenhar o futuro, em vez de simplesmente tentar influenciá-lo. Disse que todas as acções humanas produzem alguns efeitos que não podem ser previstos. Afirmou que o melhor plano central será sempre corrigido por não especialistas que têm um conhecimento directo das circunstâncias particulares. Logo, não é possível saber com certeza o que trará uma mudança total. Isso não significa que tudo deva permanecer como está. Significa que deve haver uma interacção permanente entre tradição e mudança, e que esta deve ser gradual, por ensaio e erro, de forma a poder ser corrigida e mesmo revertida quando as suas consequências se revelarem indesejáveis.

O melhor regime político é, pelas razões acima referidas, aquele que garante uma interacção ordeira entre tradição e mudança. Esse é o regime misto inglês - fundado na interacção entre um princípio monárquico (o rei), um princípio aristocrático (a Câmara dos Lordes) e um princípio democrático (a Câmara dos Comuns), todos sob o governo comum da "common law", que protege a vida, a liberdade, a propriedade e os contratos. Foi para manter este equilíbrio que a revolução de 1688, tendo efectivamente afastado o rei Jaime II, preferiu declarar que o rei abdicara e procurou uma sucessão dinástica. A Revolução Francesa, pelo contrário, quis apagar o passado e até o calendário resolveu mudar. O resultado só poderia ser a anarquia e, depois, a tirania.

Despotismo activista. Burke condenou o vanguardismo activista dos revolucionários franceses e reiterou o que sempre dissera: que a chave da liberdade política é um governo limitado que presta contas aos contribuintes. A ideia francesa de um governo que quer libertar os cidadãos dos modos de vida em que estes se sentem confortáveis - dos seus hábitos, da sua religião, das suas famílias - é uma ideia despótica abominável, "ainda pior que a república visionária de Platão". Referindo-se a este novo despotismo, Burke escreveu que não podia admirar "a troca de uma espécie de barbárie por outra. [Não podia] congratular-se com a destruição de uma monarquia, mitigada pela civilidade, respeitadora das leis e dos costumes e atenta, talvez demasiado atenta à opinião pública, em prol de uma tirania de uma massa licenciosa, feroz e selvagem, sem leis, civilidade ou moral, e que, em vez de respeitar o entendimento geral da humanidade, se empenha insolentemente na modificação de todos os princípios e opiniões que até ao momento orientaram e moderaram o mundo, e em obrigá-los a uma conformidade com as suas concepções e acções (carta a Sir Hecules Langrishe, 1792).

Esta vertigem "libertadora" só podia degenerar em tirania, porque os novos inquilinos do poder veriam no seu governo uma missão nova, transformadora, que os velhos governos - mesmo as monarquias absolutas - nunca tinham imaginado. Querendo mudar tudo, o novo poder não poderia aceitar instituições intermédias e descentralizadas, como a família, as igrejas ou outras associações voluntárias. "É da natureza do despotismo - tinha dito Burke sobre os governos de corte de Jorge III - detestar o poder mantido por qualquer meio que não seja o seu próprio prazer momentâneo; e extinguir todas as posições intermédias entre a força ilimitada da sua parte e a debilidade absoluta por parte das pessoas." Este vício do velho absolutismo real iria ser incrivelmente potenciado pelo novo despotismo revolucionário, avisou Burke. Robespierre foi a prova de que Burke tivera razão.

Liberdade e dever.
Finalmente, Burke atribuiu as origens deste novo despotismo à intoxicação francesa com ideias filosóficas abstractas. "O mundo de fadas da filosofia não pode dirigir a acção política porque esta não é uma ciência a priori." Em particular, Burke irritou-se com a ideia inovadora de que um regime liberal teria de se basear no princípio de que tudo depende da escolha do indivíduo. Desde logo, observou Burke, "os deveres não são voluntários". E acrescentou que "o dever e a vontade são até termos contraditórios". Acontece que, sem sentido do dever, não existe autodomínio. Ora, prosseguiu Burke, "todas as sociedades precisam algures de um poder de autodomínio. Quanto menos ele vier de dentro, mais terá de vir de fora." Assim, Burke sustentou que "entre um povo geralmente corrupto a liberdade não pode existir por muito tempo". E acrescentou que "as maneiras são mais importantes do que as leis. As maneiras corrompem ou purificam, exaltam ou rebaixam, barbarizam ou refinam, através de uma operação constante, persistente, uniforme e insensível, tal como o ar que respiramos". Por isso também, Burke escreveu que "o rei pode fazer um nobre, mas não um gentleman".

A liberdade inglesa persiste - continuou Burke, antecipando a "corrente de ouro" de Winston Churchill que aqui referimos no sábado passado - porque não se deixou contagiar pela "doença infecciosa da Revolução Francesa". A tradição liberal inglesa não foi intoxicada pelas ideias abstractas e inovadoras da filosofia francesa. Burke elogiou o espírito inglês de continuidade e de herança, "o qual fornece um princípio seguro de conservação e um seguro princípio de transmissão; sem de todo excluir um princípio de melhoramento [?] Esta ideia de uma descendência liberal inspira-nos com um sentido de dignidade habitual e nativa [?] Desta forma a nossa liberdade torna-se uma liberdade nobre".

O mistério inglês e a corrente de ouro. Começa talvez agora a revelar-se a chave do "mistério inglês". Edmund Burke está no seu centro. Foi em Burke que Winston Churchill se inspirou quando disse que "é esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden chain], nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa"."

publicado às 14:40






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