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Albert Camus, A Queda:
«Era de origem honesta mas obscura (meu pai era oficial), e no entanto, certas manhãs, humildemente o confesso, sentia-me filho de rei ou sarça ardente. Tratava-se, repare bem, de algo bem diferente da certeza em que eu vivia de ser mais inteligente do que ninguém. Tal certeza, aliás, é inconsequente que é partilhada por tantos imbecis. Não, à força de ser cumulado, sentia-me, hesito em confessá-lo, um eleito. Eleito pessoalmente, entre todos, para este longo e constante êxito. Aí estava, em suma, um efeito da minha modéstia. Negava-me a atribuir este êxito unicamente aos meus méritos e não podia acreditar que a reunião, numa só pessoa, de qualidades tão diferentes e tão opostas fosse apenas o resultado do puro acaso. Eis porque, vivendo feliz, eu me sentia, de certa maneira, autorizado a fruir desta felicidade por algum decreto superior. Se lhe disser que não tinha qualquer religião, perceberá ainda melhor o que havia de extraordinário nesta convicção. Extraordinária ou não, ela ergueu-me, durante muito tempo, acima do ramerrão quotidiano, e pairei, literalmente, durante anos, dos quais, para dizer a verdade, ainda tenho saudades.»