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Hugh Hefner foi um político de vulto. Nunca dormiu com os adversários. Nunca se deitou na cama de interesses alheios. Soube alimentar as expectativas de tantos seguidores erectos perante o magistério das suas promessas, da ilusão. O fundador da Playboy foi um verdadeiro democrata. Procurou repartir o entusiasmo pessoal pelo comum dos mortais - mas não era socialista. O monopólio das mulheres era a sua igreja. A revolução sexual de muitos países foi atrasada devido ao poder de censura dos seus regimes. Portugal não foi excepção. Mas temos de ter algum cuidado com a nova estirpe de moralismo de género que parece ter assolado o país. Para muitos Hefner foi o promotor da ideia de mulher-objecto, o anfitrião da sexualidade comercial desconexa das emoçoes, dos afectos, do amor. Não concordo. Nos EUA, o papel da publicação é inegável. A América sempre teve a tendência para os dilemas do pudor, o mamilo que se mostra ou não, o sexo explícito no filme prontamente rasurado pela brigada de costumes. Enfim, Hefner soube ler a textura sociológica daquele país e construiu um modelo de negócio baseado na líbido. A revista Gina, o erotismo de um Vilhena ou as loiças das Caldas da Rainha, nunca conseguiram alcançar o estatuto mainstream, e o salto indutivo, de "quando a fome é muita", levou a que o processo descambasse para os compêndios de teor pornográfico, sem arte, sem escola. No caso da Playboy, Hefner foi a doce flor num jardim de rosas entesadas. Hugh foi o menino na loja de brinquedos sem hora de fecho. Mas a Playboy é mais ampla no seu rol de consequências e efeitos secundários. As indústrias de entretenimento e lazer, o sector das farmacéuticas, a moda e o design, souberam aproveitar o fenómeno de um modo estrutural e continuado. Os media construíram novelas, filmes e enredos sublinhando o glamour das curvas sensuais. Tornaram a linguagem directa, sem rodeios. A pílula e os comprimidos azuis vendidos mundo fora também podem agradecer à Playboy - fizeram milhões e fizeram milhões de gente feliz à p()la do imaginário de Hefner. Foram tantos os que foram como os que vieram...abraçar esta religião. Os designers de moda, aproveitando a tendência para destapar, reinventaram modos de expor a nádega e sugerir o sexo protuberante. Enfim, todos nós temos uma pequena dívida para com Hugh Hefner. Mesmo os clientes de outras sortes sexuais puderam exprimir a sua contra-libido, as suas preferências. Na fase final da sua caminhada enquanto editor, Hefner soube, mais uma vez, ler o mundo em que vivia. O advento da pornografia acessível pela via digital, e sem restrições, quase que matava a ideia da sugestão de "o que está por detrás do sorriso maroto?", quase que aniquilava o flirt dos derradeiros românticos encostados ao bar de um hotel, quase que desbastava a linda flor colhida de um imaginário toldado pelo excessivo aquecimento da genitália onde impera o tendão e cada vez menos o lirismo. Hugh Hefner merece o prémio móvel da paz e amor. Mexeu com muito. Não existe político que lhe chegue às virilhas. Prometem, mas não cumprem. Hefner nada jurou, mas tantas das suas preces foram cumpridas.
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Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«Por outro lado, segundo se depreende do seu artigo, para Volpi ler consiste só em ler, isto é, em ficar a conhecer o conteúdo do que lê e não há dúvida de que o seu caso é o de imensos leitores. Porém, na polémica com Vicente Molina Foix que o seu artigo gerou, este último recordou a Volpi que, para muitos leitores, «ler é uma operação que, além de informar sobre o conteúdo das palavras, significa também, e talvez sobretudo, ter prazer, saborear aquela beleza que, as palavras, tal como os sons de uma bela sinfonia, as cores de um quadro insólito ou as ideias de uma argumentação sagaz, emitem unidas ao seu suporte material. Para este tipo de leitor ler é, ao mesmo tempo que uma operação intelectual, um exercício físico, algo que, como diz muito bem Molina Foix «acrescenta ao acto de ler uma componente sensual e sentimental infalível. O tacto e a imanência dos livros são para o amateur, variações do erotismo do corpo trabalhado e manuseado, uma maneira de amar.»
Tenho dificuldade em imaginar que as tablets electrónicas, idênticas, anódinas, intermutáveis, funcionais ao máximo, possam despertar esse prazer táctil prenhe de sensualidade que os livros de papel despertam em certos leitores. Mas não estranho que numa época que tem entre as suas proezas ter acabado com o erotismo se esfume também esse hedonismo refinado que enriquecia o prazer espiritual da leitura com o físico de tocar e acariciar.»
Leitura complementar: O mito do individualismo extremo do nosso tempo; A insustentável leveza da literatura do nosso tempo; A banalização da política; Da arte moderna; Do erro da equivalência entre culturas à difusão da incultura; Da proliferação de Igrejas à substituição da religião pela alta cultura e aos escapismos contemporâneos; Da libertação sexual ao erotismo como obra de arte; A ausência dos intelectuais da civilização do espectáculo; Da subversão da autoridade dos professores e da escola pública à perpetuação das divisão de classes a partir das salas de aula
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«A suposta libertação do sexo, um dos traços mais marcantes da modernidade nas sociedades ocidentais, dentro da qual se inscreve esta ideia de dar aulas de masturbação nas escolas, talvez consiga abolir centos preconceitos parvos sobre o onanismo. Em boa hora. Mas também poderá contribuir para desferir outra punhalada no erotismo e, talvez acabe com ele. Quem é que sairia a ganhar? Não os libertários nem os libertinos, mas sim os puritanos e as Igrejas. E continuaria o delírio e a futilização do amor que caracterizam a civilização contemporânea no mundo ocidental.»
(...)
O sexo só é saudável e normal entre os animais. Foi-o entre os bípedes quando ainda não éramos totalmente humanos, quando o sexo era em nós alívio do instinto e pouco mais do que isso, uma descarga física de energia que garantia a reprodução. A desanimalização da espécie foi um longo e complicado processo e nele teve papel decisivo o que Karl Popper chama «o mundo terceiro», o da cultura e da invenção, o lento aparecimento do indivíduo soberano, a sua emancipação da tribo, com tendências, disposições, desígnios, anseios, desejos, que o diferenciavam dos outros e o constituíam como ser único e intransferível. O sexo desempenhou um papel de destaque na criação do indivíduo e, como mostrou Sigmund Freud, nesse domínio, o mais recôndito da soberania individual, forjam-se as características distintivas de cada personalidade, o que nos é próprio e nos torna diferentes dos outros. Esse é um domínio privado e secreto e deveríamos procurar que continue a sê-lo se não quisermos tapar uma das fontes mais intensas do prazer e da criatividade, isto é, da civilização.
Georges Bataille não se enganava quando alertou contra os riscos de uma permissividade desenfreada em matéria sexual. O desaparecimento dos preconceitos, algo libertador, efectivamente, não pode significar a abolição dos rituais, o mistério, as formas e a discrição graças aos quais o sexo se civilizou e humanizou. Com sexo público, são e normal, a vida tornar-se-ia mais aborrecida, medíocre e violenta do que é.
Há muitas formas de definir o erotismo, mas, talvez, a principal seja chamar-lhe a desanimalização do amor físico, a sua conversão, ao longo do tempo e graças ao progresso da liberdade e da influência da cultura na vida privada, da mera satisfação de uma pulsão instintiva numa ocupação criativa e partilhada que prolonga e sublima o prazer físico rodeando-o de uma encenação e uns refinamentos que o convertem em obra de arte.»
Leitura complementar: O mito do individualismo extremo do nosso tempo; A insustentável leveza da literatura do nosso tempo; A banalização da política; Da arte moderna; Do erro da equivalência entre culturas à difusão da incultura; Da proliferação de Igrejas à substituição da religião pela alta cultura e aos escapismos contemporâneos.