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A emergência do populismo no seio das democracias liberais, a perda de hegemonia dos EUA no sistema internacional, a ascensão da China e o ressurgimento da Rússia, ambas potências revisionistas e claras ameaças à zona de paz liberal, o Brexit e o futuro de uma União Europeia dominada por uma Alemanha encantada com Putin, as alterações climáticas, a crise dos refugiados, a cibersegurança e as guerras de informação e desinformação no ciberespaço fomentadas pela Rússia e China e nós o que discutimos? Petições a favor e contra um museu dedicado a Salazar, já depois da crise dos combustíveis, dos incêndios sempre reveladores da nossa aversão ao planeamento sistematizado, da importação dos espantalhos racistas dos estudos pós-coloniais, da sempre presente ideologia de género e da restante espuma dos dias alimentada pelos ciclos noticiosos e pelas shitstorms nas redes sociais. Sem embargo de a esfera pública numa sociedade livre dever comportar os mais diversos temas, entretanto, num mundo cada vez mais globalizado e perigoso, cá continuamos, neste cantinho à beira-mar plantado dominado por certa sociedade de corte composta por caciques e carreiristas partidários e umas quantas dúzias de famílias, sem darmos prioridade à política externa e andando essencialmente a reboque dos parceiros europeus. Já dizia Rodrigo da Fonseca que "nascer entre brutos, viver entre brutos e morrer entre brutos é triste”.
E nem sequer é para falar sobre Sócrates e os crimes pelos quais está a ser investigado, mas sim para notar que, da generalidade dos jornalistas a comentadores como Sousa Tavares e Clara Ferreira Alves, dos indefectíveis socráticos a Mário Soares, passando pela Bastonária da Ordem dos Advogados, outros intervenientes no espaço público e até alguns populares que têm aparecido na televisão literalmente a chorar por Sócrates, boa parte do país parece ter sido acometida por um histerismo tão deplorável quanto risível, mas que me leva a retirar uma conclusão preocupante: temos demasiadas pessoas com responsabilidades políticas e públicas, demasiados comentadores e intervenientes no espaço público cuja cultura democrática deixa muito a desejar.
Basta atentar na visível irritação de Mário Soares à porta do Estabelecimento Prisional de Évora e na sua posterior entrevista a Constança Cunha e Sá para perceber que o conceito de democracia do ex-Presidente da República é, no mínimo, dúbio e assenta mais no amiguismo que na igualdade perante a lei e a separação de poderes (afinal, como diria Jorge Coelho, "quem se mete com o PS leva"). Ou um exemplo ainda melhor, aquele momento, há alguns dias, em que Pacheco Pereira explicava a Sousa Tavares que a igualdade perante a lei em termos abstractos não substituía a desigualdade material, já que Sócrates é uma pessoa influente e poderia tentar destruir provas e influenciar a investigação caso não fosse detido preventivamente, ao que Sousa Tavares respondeu com uma absurda afirmação de que Pacheco Pereira estava a partir do pressuposto que Sócrates era culpado, mostrando assim como lhe escapam (a Sousa Tavares) as mais elementares regras de lógica e/ou qualquer noção de democracia que não se coadune com a sua lendária falta de isenção.
No meio do histerismo, os líderes da coligação governamental e o líder da oposição mostram ser dos poucos a ter um mínimo de bom senso, não deixando que a amizade ou inimizade por Sócrates lhes tolde a mente. De resto, não só não entro na barricada dos que pensam que o regime está em risco - se há algo que o passado recente do nosso país nos mostra, é que, pelo menos, algumas instituições estão a funcionar como se espera num regime demoliberal -, como também não me atrevo a vaticínios sobre o futuro próximo do PS e o embate eleitoral do próximo ano. Como explicava Manuel Meirinho ontem à noite, na RTP Informação, o tempo da política é muito curto. Daqui a umas semanas a detenção de Sócrates fará parte da normalidade quotidiana e deixará de ter interesse mediático, tal como já aconteceu com Armando Vara ou Ricardo Salgado. As eleições são apenas em Outubro de 2015. Tenham calma, que até lá muita coisa pode acontecer.
Jorge Miranda, Expresso, 3 de Janeiro de 2014
Reparem que não obstante o facto de desconhecer as propostas do Governo, Jorge Miranda não tem o menor pejo em opinar sobre as medidas que o Governo acaba de anunciar para circundar o recente chumbo do santíssimo Tribunal Constitucional. Mais: é particularmente tocante saber que, no debate público, há personalidades que dizem x porque, pessoalmente, acham que a verdade está ínsita nesse x - não vem daí um grande problema -, independentemente de conhecerem ou não (por norma, não conhecem) as propostas em questão. Não importa nem sequer é relevante o facto de, por vezes, as ideias em debate não corresponderem às máximas dos ditos decanos, pois, para esta gente, a verdade é um conceito muito maleável. E assim se vai fazendo, com muitas "inverdades" cinicamente inoculadas, a opinião no Portugalório democrático.
Muitos fervorosos ideólogos seguidores de um qualquer livro de princípios doutrinários que se lhes afiguram quase redentores, ou seja, socorrendo-me de Oakeshott, gente desprovida de educação para o exercício do poder e de intelecto e subtileza para entender a política como uma conversação, afinando pelo diapasão do dogmatismo ideológico, têm, naturalmente, dificuldade - chamemos-lhe assim, para sermos simpáticos - em lidar com a diferença e com opiniões divergentes. Isto tanto ocorre à esquerda, como à direita. Não admira, por isso, que o mais das vezes procurem contrariar opiniões e posições contrárias às suas quase exclusivamente por meio de ataques ad hominem, ou que, quando falamos de grupos, procurem realizar purgas e saneamentos.
Parece-me que, na base deste tipo de atitude, está também uma certa preguiça mental e intelectual, que nem cura de ser coerente. Por isso, em vez de se atacar Mário Soares pelas suas ideias, ataca-se pela sua idade, ao mesmo tempo que se enaltece a idade de Adriano Moreira, mesmo quando este toma posições mais próximas de Soares do que dos seus partidários; em vez de se criticar as ideias liberais, ataca-se os liberais apenas porque são liberais - e, como se sabe, o mesmo é dizer neoliberais e, logo, fascistas, plutocratas e afins epítetos -, da mesma forma que em vez de se criticar as ideias comunistas, ataca-se os comunistas apenas porque são comunistas ou os conservadores apenas porque são conservadores; ou, numa modalidade que é cada vez mais um desporto nacional, ataca-se Pacheco Pereira apenas porque é Pacheco, não curando sequer de procurar refutar as suas opiniões.
Acresce ainda a este fanatismo a crendice nas ideias do sector ideológico a que se pertence, encaradas como se fossem os Dez Mandamentos que conduzirão à salvação ou à felicidade eterna. No fundo, temos um espaço público composto por barricadas ideológicas e/ou sociológicas de ardentes militantes que nao só não conseguem discutir com aqueles de quem discordam, como não conseguem sequer sair da sua zona de conforto ideológico ou doutrinário. O mesmo é dizer que a política se assemelha cada vez mais ao futebol. E é por isso que, como escrevi há tempos, cada vez menos creio naquela muy liberal ideia de que a razão nasce da discussão. Do debate num espaço público caracterizado pela cacofonia, onde a discussão é quase sempre dominada por surdos que sofrem de hemiplegia moral, nas palavras de Ortega y Gasset, aos gritos uns com os outros, não pode surgir razão alguma.