Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



O martírio dos Estêvãos

por João Pinto Bastos, em 11.01.13

Cheio de graça e força, Estêvão fazia extraordinários milagres e prodígios entre o povo. Ora alguns membros da sinagoga chmada dos Libertos, dos cireneus, dos alexandrinos e dos da Cilícia e da Ásia vieram para discutir com Estêvão: mas era-lhes impossível resistir à sabedoria e ao Espírito com que ele falava (...) depois à uma, atiraram-se a ele e, arrastando-o para fora da cidade, começaram a apedrejá-lo. As testemunhas depuseram as sua capas aos pés de um jovem chamado Saulo. E, enquanto o apedrejavam, Estêvão orava, dizendo: "Senhor, Jesus, recebe o meu espírito". Depois, posto de joelhos, bradou com voz forte:" Senhor, não lhes imputes este pecado". Dito isto, adormeceu."

 

Actos dos Apóstolos, 6, 8-51

 

A história de Estêvão, o apóstolo helenista martirizado pela sanha farisaica do judaísmo colonizado, tem vários ingredientes que, até certo ponto, assemelham o seu percurso biográfico ao de Jesus Cristo: o mesmo apostolado radical e descomprometido, a Graça divina esparramada na vocalização do exemplo evangélico, o martírio cristãmente arrostado, encarando a Morte como o passamento para a casa de Deus. Estêvão foi, com temeridade e sentido de Justiça, um dos precursores do movimento religioso que doravante cresceria em vigor e dimensão, arrastando o Império Romano na sua vaga ouriçada. A narrativa de Estêvão é, em grande medida, uma metáfora da incompreensão humana. Da incompreensão que tolhe e desquebra, da razão que falha e obscurece. O Homem, o animal racional por excelência, pouco dado amiúde às virtudes da perfeição e da ponderação, é o paradigma mais cristalino da derrota. Talvez não tenhamos sido feitos para a derrota, como disse o derrotado Hemingway, talvez a perda e o temor ao desastre não sejam mais do que um tropo do triunfo iminente, talvez nós sejamos um ameno, e escondido, princípio da Morte, talvez e muitos talvez, porém, a vida, na sua imensidão de veredas e caminhos díspares, dispõe o alvedrio do Homem no seu justo lugar. Nós escolhemos o nosso caminho, mas, nada nem ninguém, é capaz de recolher-nos do Mal. Deus fez-nos com os princípios da Vida e do Bem conglobante, mas o Homem é livre de escolher o seu projecto vital. Fá-lo, e no fundo, é derrotado. Derrotado na dureza encrespada dos desígnios gorados, na perda dos referentes orientadores de todo um percurso, no esgotamento do amor e da amizade. Estêvão, o pioneiro da martirização infligida aos esperançosos, ensinou-nos que, por mais que a derrota imponha o seu véu sobre nós, o livre alvedrio, a escolha conscienciosa e o amor descomprometido, são mais do que uma opção, são uma realidade que cabe-nos a nós agarrar e segurar. Podemos perder a partida, mas não a alfombra de dignidade que ainda nos resta. E essa dignidade é o verbo do amor e da amizade. Puras ilusões ou não, e muitas vezes são-no, com incompreensões e isolamentos inelutáveis, o amor e a amizade são a única ilusão que nos resta, porque, no fundo, a vida é, como dizia Lucas, "mais que o alimento e o corpo mais que o vestuário" (Lucas, 12, 23-24).

publicado às 12:46






Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2013
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2012
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2011
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2010
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2009
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2008
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2007
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D

Links

Estados protegidos

  •  
  • Estados amigos

  •  
  • Estados soberanos

  •  
  • Estados soberanos de outras línguas

  •  
  • Monarquia

  •  
  • Monarquia em outras línguas

  •  
  • Think tanks e organizações nacionais

  •  
  • Think tanks e organizações estrangeiros

  •  
  • Informação nacional

  •  
  • Informação internacional

  •  
  • Revistas