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Há, hamletianamente falando, um método na loucura. Esse método é particularmente visível no debate económico sobre as grandes variáveis do Orçamento do Estado. Se os caríssimos leitores prestarem atenção ao que se vai escrevendo e dizendo sobre a política financeira do estadão, decerto repararão que, amiúde, o tema do socialismo bancário é chutado para um canto muito recôndito. A razão é simples de captar: não convém, de modo algum, incomodar o baronato bancário com perguntas dúbias. Vejamos, por exemplo, o seguinte dado: é sabido que o défice público comunicado pelas Finanças ao Instituto Nacional de Estatística no final de setembro, quantificado em 5,5% do produto interno bruto, não inclui os 700 milhões de euros dispendidos na "ajuda" ao Banif. Perante isto, o que é que a opinião publicada tem salientado nas suas croniquetas domingueiras? A resposta é sintomática e preocupante: as resmas de páginas escritas sobre este assunto versam exclusivamente sobre o incumprimento da meta acordada com a troika. Não há, como certamente já repararam, uma única página sobre o facto de o Estado continuar a entregar de bandeja os dinheiros públicos a meia dúzia de sátrapas bancários, cuja gestão obedece a critérios estranhos ao normal funcionamento de uma economia de mercado. Não há, pois, ninguém, com relevo, vá, que questione na praça pública o porquê de a banca continuar a ser bafejada pelos ventos quentes de um Estado absolutamente desrespeitador da propriedade privada. Como escrevi no início desta posta, há, efectivamente, um método nesta loucura. Os responsáveis deste monstro das bolachas obedecem, em primeira mão, ao sindicalismo financista, e aí quedarão até que um vento contrário os leve a procurar um novo porto de abrigo. A propriedade privada funciona, para esta gente, em circuito fechado. Se alguém cai, levando consigo as poupanças de milhões de aforradores, o poder público acorre imediatamente, qual Estado-providência dos Salgados e Roques necessitados. Quando o alvo é o zé povinho, a propriedade privada é uma asneirola a ser prontamente corrigida pelo bastão macerado da administração. É assim que a mundividência da República abrileira encara quem produz e empreende a expensas próprias. Portanto, o conselho que vos dou é que abram, o quanto antes, um banco. Se precisarem de ajuda, recorram aos Rendeiros e aos Oliveiras e Costa. Eles acederão sem demora.
Não há dúvida que os observatórios em Portugal são uma realidade vasta e complexa. Devia existir um Observatório dos Observatórios.
Um momento de televisão que diz muito do estado de espírito dos norte-americanos: desilusão com a situação actual e a consciência de que estão num momento decisivo em que ou recuperam ou se afundam na decadência. E recuperar significará retornar às referências e aos valores que trouxeram os sucessos passados de que hoje se sente a falta. Uma reflexão que também podemos fazer em Portugal. Como foi possível deixar um belíssimo país como nosso, com potencialidades e condições excepcionais e invejadas por outros, que bastaria ser gerido de acordo com os seus interesses para ser um dos melhores da Europa, chegar a este ponto? Quando foi que nos deixámos de preocupar? A quem é que demos ouvidos e não devíamos ter dado?
João Miranda, no Blasfémias:
«O Pavilhão Atlântico foi mais um dos muitos investimentos ruinosos feitos pelo Estado. Os 50 milhões investidos nunca renderam mais do que 2% ao ano, tendo rendido na maior parte dos anos cerca de 0,5%. Em 2011 renderam 0,4%. Renderam menos que a inflação e bastante menos que um depósito a prazo. Se os 50 milhões tivessem sido colocados no banco a render a uma taxa de 5% hoje o Estado teria 100 milhões de euros na conta. Em vez disso tem um pavilhão que foi avaliado pelo mercado em 22 milhões de euros (note-se que no concurso público realizado ninguém deu mais). Feitas as contas, entrando ainda com os lucros miseráveis obtidos ao longo dos anos, o Estado deve ter perdido cerca de 70 milhões de euros a preços actuais. Mas note-se que o que foi ruinoso não foi a venda do Pavilhão Atlântico. Ruinosa foi a decisão de o construir.»
Muito bem: então vamos seguir essa lógica de tratar equipamentos culturais como investimentos financeiros e vender também outros investimentos ruinosos como o Teatro Nacional D. Maria II, o São Carlos, o Museu de Arte Antiga, o Panteão Nacional, a Biblioteca Nacional, a Torre do Tombo e tudo o mais que não der lucros acima dos juros que a banca daria pelo montante equivalente ao valor de mercado. Ninguém duvidará que, por muito pouco que alguém esteja disposto a pagar por eles, o negócio nunca será ruinoso. Isso sim é gerir racionalmente o património do Estado. Não há dúvida que ao longo de séculos andámos sempre governados por gente completamente estúpida, sem capacidade de julgamento. Felizmente que agora saímos das trevas e vimos a luz: nós não somos cidadãos de um país nem existe Estado, somos meros clientes de uma empresa pública que liquida a nossa massa falida.
Não sou propriamente um defensor habitual do governo, deste ou de qualquer outro, embora me pareça que o Pedro exagera um pouco neste post, especialmente porque aquilo que está a acontecer tem causas diversas e, entre estas, está principalmente o consulado socrático, contra o qual o senhor do lacinho do Expresso nunca se insurgiu (bem pelo contrário), que provocou o pedido de ajuda externa e negociou o memorando de entendimento que este governo está obrigado a cumprir.
Mas se a minha expectativa após a nomeação do governo de Passos Coelho e Paulo Portas era bastante positiva, logo esta se desvaneceu quando pouco tempo depois percebi ao que vem Passos Coelho. E entre ontem e hoje, duas notícias mostram bem como este governo nada tem de liberal e pouco pudor e sensibilidade tem para lidar com a situação social vigente.
A primeira dá-nos conta de que a redução do défice é feita em 75% pelo lado da receita. Talvez assim os eurocratas que se mostram surpreendidos com a taxa de desemprego percebam o que se passa. A continuarmos nesta senda, sem reformas estruturais e reduções significativas da despesa estatal, todo o esforço a que os portugueses estão a ser obrigados será meramente circunstancial e corre o risco de não servir para nada, podendo até agravar as nossas circunstâncias políticas internas e externas. Aliás, o FMI já vai avisando (via Eduardo F.), fazendo notar esta preocupação com a falta de reformas estruturais no relatório da 3.º avaliação: «The reforms to date, however, are at best a down payment towards the comprehensive set of reforms needed to address Portugal’s growth and competitiveness problems»; «The policy framework in particular remains constrained by the absence of supply-side reforms with a near-term payoff.»
A segunda, parece-me uma brincadeira de mau gosto e levou-me a esfregar os olhos várias vezes para acreditar que não se trata de uma mentira de 1 de Abril: "Parlamento vai dar sobras alimentares aos pobres". Isto entra directamente para o primeiro lugar das coisas mais repulsivas que a AR já fez nos últimos tempos. A este respeito, transcrevo na íntegra o que escreve o Joaquim no Portugal Contemporâneo (os negritos são meus):
«Porque é que há tantos carenciados em Portugal? Porque é que temos 15% de desempregados? Porque é que há uma onda de emigração que atinge dezenas de milhares de portugueses?
Nós não somos mais estúpidos nem mais ociosos do que os outros povos. Porquê, então?
Porque o nosso sistema político foi capturado, ao mais alto nível, por interesses particulares que espoliaram o País até à bancarrota e à perda da soberania nacional. E o símbolo desse sistema político, o símbolo deste fenómeno reside aonde? Na Assembleia da República, na casa que devia ser da democracia e que na realidade pertence a uma oligarquia partidária, autoritária e sem pudor.
Ainda na recente legislatura, a criminalização de erros no fornecimento de informações ao fisco e a lei do enriquecimento ilícito testemunham o abuso sobre a população.
Assim, não deixa de ser irónico que a Assembleia da República, a maior fábrica de miséria de Portugal, dê as sobras das refeições dos deputados aos mais carenciados.
De certo modo, é o que a Assembleia da República tem vindo a fazer desde o 25 de Abril, encher a mula aos amigos e distribuir as sobras pela população.»
No passado dia 9 de Junho, dirigi-me ao IMTT, pretendendo renovar a carta de condução. Cinco horas de espera, uma sala apinhada de gente justificadamente nervosa e quase em histeria e depois, uma guia provisória. Válida para quatro meses, mas ..."um simples pro forma, porque em Setembro receberá em casa um aviso do Correio para ir levantar a sua carta". Furibundo e exausto, de lá saí com a "guia" no bolso. Mais um papelinho dobrado em quatro.
Hoje, 9 de Novembro, cinco meses depois da primeira visita, voltei ao IMTT, pretendendo saber o que fazer com a "guia" já obviamente caducada.
- "Ah... não há problema, tire uma senha, espere um bocadinho e lá dentro colocam um carimbo para mais quatro meses".
- "Pois sim, mas primeiro quero ir ao gabinete onde possa escrever uma reclamação!"
E reclamei. Devido à oportuna greve dos transportes - feliz ideia num país à beira do que se sabe -, fui atendido uma meia hora depois e como resposta ao meu protesto pela demora na entrega da carta de condução, a senhora funcionária respondeu:
- "O senhor nasceu no estrangeiro e por isso estamos agora a instalar um novo sistema para resolver estas questões... e a emissão das cartas é da competência da Casa da Moeda!"
Reparando no meu súbito franzir de sobrolho ao ouvir a palavra "estrangeiro", logo acrescentou muito lampeira:
- "Pois... bons tempos... ainda era um território português!" (grande sorriso que desarma qualquer um).
Cinco horas de espera, cinco meses sem carta e cinco andares para fazer uma reclamação.
Conclusão. Tal como ainda há uns anos éramos recambiados para a fila dos "estrangeiros" no Arquivo de Identificação de Lisboa (hoje sede da P.J.), pelos vistos, os nefandos "retornados" - que na sua maioria não o são - ainda servem de desculpa para várias tolices calãzeiras de alguns departamentos do omnipotente funcionaleirismo público.
Uma brilhante e trágica análise de Helena Matos, sobre a geração de 60 que nos trouxe ao estado a que chegámos, de que aqui deixo alguns parágrafos:
"Contudo creio que a geração de 60 nunca admitirá que falhou. Está-lhes na génese culpar os outros por tudo o que acontece: primeiro culparam os pais porque tinham perpetuado um modelo de família que achavam caduco e baseado na mentira. E quando eles mesmos amaram, odiaram, traíram e fizeram compromissos, como acontece a todo o Sapiens sapiens desde que o mundo é mundo, culparam o pai e sobretudo a mãe porque muitos anos antes não lhes tinham dito as palavras que eles achavam certas. Depois culparam o sistema das guerras e o capitalismo da pobreza. Enfim, no quotidiano, fosse ele o sexo ou a economia, havia sempre uma culpa que tudo explicava. Quanto ao mundo, havia essa culpa original do homem branco que estava sempre por trás dos massacres e das fomes. E ela, a tal geração de 60, assumiu-se como a apontadora de culpas."
(...)
"Quando a realidade se lhes impôs buscaram novos culpados que acrescentaram aos antigos: os culpados tanto podiam ser os grandes capitalistas como, no dia seguinte, os empresários de vão de escada. Os mercados cegos ou os investidores sem gosto pelo risco. A ânsia do lucro ou o atavismo da mediocridade do q.b. A defesa da competitividade ou o egoísmo a sobrepor-se ao igualitarismo. A falta de Europa ou o excesso dela. As decisões da senhora Merkel ou as indecisões da senhora Merkel. Os bancos que se endividaram para emprestar dinheiro a quem não podia pagar tais créditos sem avaliar os riscos dessas operações e os bancos que não querem correr o risco de nos emprestar dinheiro. Os pessimistas que influenciam negativamente as agências de rating sobre Portugal e as agências de rating que não se deixam influenciar pelos optimistas.
Todos os dias, semanas, meses e anos nos apontaram novos culpados. Aos culpados de sempre somaram ameaças globais – como as alterações de clima, a gripe A ou a escassez dos alimentos – e promoveram cruzadas que procuraram fazer de cada um de nós um convertido aos seus novos dogmas e que tanto abarcam aquilo a que chamam questões de género como o sal que se põe no pão.
No fim, acabámos cansados. Estourados de apontar tanta culpa alheia e perplexos perante o caos que entretanto se instalara à nossa volta. Tudo o que nos prometeram está agora em causa. E como é óbvio já o sabiam há muito tempo.
A geração de 60 será em Portugal uma das primeiras em décadas e décadas a ser sucedida por outras que viverão pior. O ano que agora acaba é aquele em que se tornou óbvio que falharam a vida, meninos. O que nos espera de agora em diante é constatar que para lá desse falhanço também lixaram a vida daqueles que vieram depois."
José Adelino Maltez, no Sobre o Tempo que Passa:
Há uma gerontocracia de falsos reformados que continuam no activo da conspiração de avós e netos, só porque meteram os papéis no tempo certo... Mas também poderiam denunciar-se as acumulações, os prémios de mérito para a mulher do chefe, os prémios e subsídios, as ajudas de custo, as bolsas e os subsídios do "outsourcing" das empresas falsamente majestáticas...
Se o populismo com êxito costuma transformar-se em maioria absoluta, importa compreender a revolta que vai lavrando contra a injustiça geracional deste Estado Social marcado pela falta de autenticidade, como é comprovado pelos jovens qualificados sem emprego ou condenados à emigração, para que se mantenham os privilégios de certos inactivos que deram o golpe na janela de oportunidades...
Aqui fica na íntegra esta peça do Público em que a professora do ISCSP dá conta de algumas das conclusões a que chegou na sua recentemente publicada tese de doutoramento:
Portugal tem uma sociedade civil anestesiada, os partidos estão longe do povo e as suas direcções controlam a constituição das listas eleitorais, cujo processo é o jardim secreto da política
O sistema político português está bloqueado e uma larga maioria dos cidadãos deixou de se reconhecer nos partidos políticos existentes, que funcionam de forma oligárquica e sonegaram a soberania popular, que lhes é delegada pelo voto e que deveriam representar. Este diagnóstico é a conclusão que ressalta da obra O Povo Semi-Soberano. Partidos Políticos e Recrutamento Parlamentar em Portugal, que identifica e analisa as especificidades portuguesas da crise dos sistemas políticos representativos.
"Vivemos uma democracia de audiência, feita de comunicação social, sondagens e líderes, em que há uma espécie de sondocracia, de videocracia e de lidercracia", resume Conceição Pequito, explicando as novas condições em que é exercida a política: "As sondagens funcionam como um escrutínio permanente ao eleitorado e é desse escrutínio que saem as ofertas políticas que os partidos direccionam, como produtos no mercado, para rentabilizar votos. Depois há a questão da videocracia, com o peso da comunicação social, que personaliza, por sua vez, os líderes. Tudo isto se vai afunilando, até que torna a sociedade civil claustrofóbica".
Esta situação é geral, mas Conceição Pequito considera que "nos outros países é menos preocupante, porque há sociedade civil". E explica que "nas democracias consolidadas a crise dos partidos tem sido compensada com o alargamento do repertório das formas de participação política, que reforça a participação na representação".
Mas em Portugal "a componente participativa só começa a existir com a introdução do referendo na Constituição em 1997". A democracia nasceu "com uma componente de democracia participativa nula, a que há é recente e os cidadãos não se mostraram receptivos. Até à data, não tem corrido muito bem". E lembra a história dos referendos e a altíssima abstenção que os tornou não-vinculativos.
"Envelhecimento precoce"
As "tendências transversais" a todos os sistemas políticos europeus são agravadas em Portugal pelo facto de ser "uma democracia demasiado jovem, mas com traços de envelhecimento precoce". Conceição Pequito considera que "é preocupante" que o sistema político português esteja "a dar saltos qualitativos para limitações do sistema democrático consolidado, mas em fase precoce". Ou seja, a sociedade está distanciada dos partidos e o povo não se sente neles representado.
Apontando as causas da especificidade portuguesa, Conceição Pequito refere em primeiro lugar a "democratização tardia", que fez com que os partidos políticos fossem "criados de cima para baixo nessa altura ou próximo, "à excepção do PCP, que existe desde 1921 com um longo passado de clandestinidade". Ora, prossegue esta investigadora, o processo é assim inverso ao dos partidos europeus que "nascem para dar voz a grupos ou classes sociais pré-existentes, para politizar clivagens que existem na sociedade, são na esfera institucional uma espécie de correia de transmissão do tecido social".
Em Portugal, "os partidos são autores e actores da democracia, todo o sistema é feito pelos partidos", vão para o Governo, vão para o Parlamento, vão para o poder local e, "só depois de instalados na esfera institucional, vão à procura da representação popular", em meados dos anos 80.
Exemplo é a ligação que os dois maiores partidos têm com as organizações sindicais ou patronais. "O PCP entra na CGTP e o PSD e o PS ficam ali dois anos hesitantes para criar um movimento representativo dos trabalhadores para responder ao avanço do PCP", lembra, prosseguindo: "E tiveram de concordar numa criação conjunta da UGT, porque a UGT é uma espécie de prestação de serviços; quando o PSD está no Governo, presta-se a assinar os acordos, e com o PS o mesmo".
Recorda o facto de "o PS e o PSD nascerem já como partidos de eleitores" que pretendem acesso ao poder, fazendo-o com a conquista do voto e através de um apelo transversal, "procurando não estar muito à esquerda, não estar muito à direita, estar ao centro". Daí "falar-se de bloco central de interesses, quando se fala da partilha dos despojos do poder político entre o PS e o PSD", o que, "ao nível da sociedade, teve um efeito perverso, que foi situar o eleitorado muito ao centro, o eleitorado moderado que está mais disponível para um discurso mais ambíguo, mais definido por factores de curto prazo como sejam a situação económica o desempenho do Governo, o apelo carismático do líder".
A segunda especificidade portuguesa é que os partidos foram também criados "em torno das figuras dos líderes e cada saída de um líder dá quase uma crise de sucessão e de perda de eleitorado e de descaracterização", o que "mostra a fragilidade, como os partidos acabam por ser quase sinónimo dos líderes conjunturais e não instituições com implantação social e ideologia sólida". Alem disso, os partidos portugueses nascem "em época mediática" e a "mediatização da política junta-se à personalização, são fenómenos que se alimentam mutuamente". E Conceição Pequito pergunta: "Quando o que interessa é o líder e os dirigentes de topo e o palco é a TV, os partidos servem para quê?"
Há uma outra particularidade portuguesa que é "um funcionalismo público partidarizado", o que, aliás, é tradição da história portuguesa e não uma particularidade da democracia pós-25 de Abril. "Há os despojos de partido, há um clientelismo partidário e estatal que dá a possibilidade de colocar pessoal no aparelho de Estado", afirma Conceição Pequito, acrescentando que Portugal "não é como a Inglaterra, que tem um serviço público autónomo da classe política".
O Povo Semi-Soberano. Partidos Políticos e Recrutamento Parlamentar em Portugal, publicada pelas Edições Almedina, divulga para o grande público a tese de doutoramento em Ciência Política defendida em 2008 por Maria da Conceição Pequito Teixeira. Esta investigadora de 37 anos é professora de Ciência Política do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa e da Universidade Aberta. A tese foi elaborada sob orientação de Adriano Moreira, professor catedrático jubilado, ex-ministro da Educação e do Ultramar de Salazar e antigo líder do CDS, que, aliás, é autor do prefácio. O co-orientador foi Julían Santamaria Ossorio, director do Departamento de Ciência Política na Universidade Complutense de Madrid.
As reformas
Como, "institucionalmente, não há democracia sem partidos", é preciso procurar ultrapassar o impasse criado pelo afastamento dos cidadãos da política. Para isso, Conceição Pequito defende que há muito a mudar no funcionamento dos partidos, em passos firmes, mas sem radicalismos. "A reforma que está por fazer em Portugal tem de começar primeiro pelos partidos, depois pelo sistema eleitoral" e finalmente é preciso "discutir o sistema de Governo", declara esta investigadora. "Só assim podemos querer aliciar a sociedade civil" para a participação partidária.
Primárias para as listas
A adopção pelos partidos de eleições primárias internas para todos os cargos electivos, "sistema que é já usado na Europa", é defendida por Conceição Pequito. "Quem escolhe os candidatos são os directórios nacionais e, quando muito, locais", mediante regras que não são transparentes e critérios que são desconhecidos, afirma. Ora isto dá "espaço de manobra a tudo o que é patrocínio e clientelismo". E frisa que "a constituição das listas é o jardim secreto da política, é onde tudo se decide, o alinhamento é calculado ao milímetro tendo em conta a constituição do Governo e as nomeações políticas".
Por isso propõe que haja "descentralização da decisão para os militantes" e que o processo "se torne mais institucional, mais formal, mais transparente". E logo mais apelativo para a militância: "O militante diria: eu escolho os candidatos à Assembleia da República, ao Parlamento Europeu, ao poder local, ou seja, eu tenho uma palavra a dizer no meu partido sobre o pessoal político e as estratégias de recrutamento do pessoal político que exercem cargos públicos electivos. Era um sinal que os partidos davam à sociedade. Era um novo direito, um novo poder de decisão, de participar na decisão sobre quem governa."
Referendos internos
"Os referendos internos para as questões programáticas" deviam ser adoptados, sublinha esta investigadora, como forma de promover o debate programático e dar "combate à fulanização da política". Conceição Pequito defende que os partidos usem as novas tecnologias de informação, mas não dando a estas um papel redutor, já que o acesso ao computador cria novas clivagens sociais e exclusões. Contudo, diz que "não faz sentido" a eleição directa do líder pelos militantes. "Muitos partidos europeus estão a voltar ao congresso, pois a eleição directa é uma guerra de personalidades, sem discussão programática".
Círculos menores e listas abertas
Defende a manutenção do sistema proporcional mas com diminuição dos círculos eleitorais e a adopção de listas plurinominais abertas, em que o eleitor escolha o partido e, se quiser, escolha o seu candidato. Sendo que esta indicação serve para ordenar a entrada em primeiro lugar dos mais votados nominalmente. Uma reforma idêntica à proposta por André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira no estudo Para uma melhoria da Representação Política, editado pela Sextante, e realizado por encomenda do PS.
Não aos independentes
A investigadora opõe-se frontalmente às candidaturas de independentes à Assembleia da República. "Isso era um risco muito grande de populismo", afirma, alertando: "Nós, em Portugal, não estamos sequer preparados para governos de coligação, como é que estamos preparados para a balbúrdia de partidos com independentes? Não acredito que tenhamos sociedade civil preparada para isso nem classe política para o efeito."
E, veemente, insiste: "Temos um legado histórico com uma sociedade civil muito fraca, que vem da Monarquia Constitucional, vem da Primeira República, vem do Estado Novo, com o seu paternalismo que é conhecido. E no pós-25 de Abril, com as maiorias absolutas ou quase absolutas, anestesiou-se a sociedade civil." Este legado histórico levou a que para a maioria dos portugueses "a estabilidade é sinónimo de governos maioritários ou monocolores", quando, "por essa Europa fora, o que mais existe são governos de coligações, às vezes até promíscuas, juntando forças partidárias que não têm nada a ver e que conseguem o milagre de governar legislaturas completas", argumenta Conceição Pequito, acrescentando que em Portugal, "quando, nos estudos, se pergunta ao eleitorado se prefere governos de maioria absoluta ou de coligação, a maioria responde de maioria e de um só partido".
E questiona, contundente: "Quem são os candidatos independentes no poder local? São pessoas que de independente têm muito pouco, são pessoas que tiveram vida partidária e que se desentenderam com o partido." Prosseguindo no diagnóstico, afirma: "E desentenderam porquê? Porque não obtiveram o que queriam e entram em ruptura, são dissidentes e rebeldes de partidos. Veja Helena Roseta, em Lisboa, Isaltino Morais, em Oeiras, Valentim Loureiro, em Gondomar, Fátima Felgueiras, em Felgueiras." Sublinhando que estes candidatos "não emanam da sociedade civil", garante que "considerá-los da sociedade civil é ser um pouco simpático", uma vez que "eles se agarram à sociedade civil quando os partidos os deixam cair".
Aumentar fiscalização do Governo
"Os partidos na Europa têm optado pela americanização" e "o sistema político tem evoluído para presidencialismo", afirma Conceição Pequito, sublinhando que, "nas legislativas, na prática, é eleito o primeiro-ministro" e o sistema parlamentar está a ser "desvirtuado".
Ou seja, "não se discute o sistema de governo, o Governo é que manda e o Parlamento é uma caixa de eco", considera Conceição Pequito. "Há governamentalização do Parlamento. Os outros partidos fazem oposição para a televisão. No Orçamento do Estado foram viabilizadas duas propostas da oposição em mais de quinhentas.
E temos um Governo que é refém da figura do primeiro-ministro, temos ministros amestrados, que seguem à linha um guião que lhes é ditado pelo primeiro-ministro, que é uma espécie de chanceler. O próprio partido que apoia o Governo desaparece. Sendo que o Governo ainda determina os cargos de nomeação política", frisa de forma crítica, questionando: "Portanto, o que temos? Executivo, executivo, executivo. Não temos mecanismos de fiscalização, estes poderes do Parlamento desaparecem. Mas não vejo discutir esta questão."