Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Texto integral de João Gonçalves;
O verbo "matar" é indistintamente utilizado nas capas dos jornais de hoje. Uma, mais colorida, apresenta mesmo o produto de tanta morte de forma tão brutal quanto insensata: "polícias mataram 31 pessoas entre 2006 e 2016". Um marciano cursado em "novas oportunidades" que leia isto pode julgar que, em Portugal, a polícia ocupa o lugar do bandido e o bandido o lugar do morto. Uma operação polícial que envolva perseguição é, por natureza, uma operação de risco. Em Almada, em Nova Iorque ou em Moscovo. Esta, em que foi atingida mortalmente (esta é a expressão correcta) uma criatura que aparentemente não fazia parte da perseguição, era-o especialmente porque a polícia foi alvo de tiros disparados da viatura dos assaltantes que perseguia. O outro carro, conduzido por indocumentado para o efeito, foi mandado parar na zona de continuidade da perseguição policial e não obedeceu. Para mais, foi confundido com o carro dos assaltantes. O princípio da proporcionalidade da acção policial ditará se eram necessários tantos disparos. Alguns certamente eram. Um deles foi fatal, mas quando se dispara para um alvo em movimento, uma viatura, o risco aumenta para o alvo. Não se pode avaliar serenamente uma acção policial concreta "condenando" mediaticamente os agentes policiais como vulgares assassinos. Nunca dou por semelhante semântica punitiva quando agentes policiais são agredidos ou, para usar o verbo do dia, mortos. Esta é a minha polícia porque um Estado de Direito tem a capacidade jurídica e ética de avaliar sem preconceitos as acções policiais. Sem necessidade de ser panfletário à míngua de assunto.
Num país civilizado, num estado de direito, Fábio, o presidente da Junta de Freguesia de Carnide já teria sido acusado de vandalismo, de instigar a desordem pública e seria prontamente constituido arguido. Os media, dos quais destaco a SIC e a TVI, acham piada ao evento, à rebelião de bairro. Hoje parquímetros, porque não agradam aos moradores, amanhã taxímetros porque os táxis cheiram mal. A população, que julga sumariamente na praça pública, e que arremessa pedras e destrói propriedade pública, ofende a Democracia que lhe dá pão para a boca da liberdade de expressão. Ao arrancarem a ferros a portagem da calçada, todos os argumentos racionais e credíveis escorrem pelo ralo, pela mesma sarjeta de uma Idade Média contemporânea. Amanhã mais parquímetros serão plantados. Assim não vão lá. Não usam a cabeça. Perderam-na.
Hoje José Sócrates na inauguração do túnel do Marão, amanhã Paulo Pedroso na abertura de um centro de estágios para jovens. Já tinhamos indícios da estirpe ética e moral de António Costa, mas agora sabemos, de um modo inequívoco, que um processo de limpeza político e judicial está em curso. Um primeiro-ministro (auto-sacado a ferros!) não pode arrastar um arguido para uma cerimónia do domínio da soberania de Estado. Ao realizá-lo implica uma nação inteira num processo de submissão do sistema de justiça e seus trâmites processuais. Mina os alicerces de um Estado de Direito. Goza com os portugueses. Faz pouco dos tribunais. Arrasta para a lama o nome de Portugal e apropria-se da política como se também fosse dono da lei que é inexistente. Certamente que haverão muitas mais obras (algumas intensamente questionáveis) que foram lançadas durante o consulado de José Sócrates. Porquê o túnel do Marão? Porque será o evento perfeito para António Costa esfregar a sua arrogância na quase totalidade do espectro político e partidário de Portugal dos últimos 8 anos. Se eu fosse um dos outros convidados, recusava sentar-me à mesa com alguém sobre o qual recaem intensas suspeições de ter roubado um país. A cerimónia oficial, na sua acepção de Estado, sai enfraquecida com o convite que António Costa endereça a José Sócrates. À falta de uma lei clara a este respeito - que determinasse a abstenção compulsiva de ex-titulares de cargos públicos em cerimónias oficiais (de arguidos em processos judiciais) -, deveria imperar um intenso sentido ético. E o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português onde andam? Fazem parte do acordo de geringonça? Então deveriam pronunciar-se sobre a guest list de António Costa. Mas não os vejo em parte alguma. O túnel é a obra pública perfeita para enfiar muita coisa. Portugal sai mal na fotografia tirada por António Costa, mas ele quer lá saber.
No seguimento do meu post de ontem, e das discussões geradas na caixa de comentários daquele e de um post do André Azevedo Alves em referência ao meu (que muito agradeço) n'O Insurgente, deixo à apreciação algumas passagens de Liberalism in the Classical Tradition, de Ludwig von Mises:
«There is, to be sure, a sect that believes that one could quite safely dispense with every form of compulsion and base society entirely on the voluntary observance of the moral code. The anarchists consider state, law, and government as superfluous institutions in a social order that would really serve the good of all, and not just the special interests of a privileged few. Only because the present social order is based on private ownership of the means of production is it necessary to resort to compulsion and coercion in its defense. If private property were abolished, then everyone, without exception, would spontaneously observe the rules demanded by social cooperation.
It has already been pointed out that this doctrine is mistaken in so far as it concerns the character of private ownership of the means of production. But even apart from this, it is altogether untenable. The anarchist, rightly enough, does not deny that every form of human cooperation in a society based on the division of labor demands the observance of some rules of conduct that are not always agreeable to the individual, since they impose on him a sacrifice, only temporary, it is true, but, for all that, at least for the moment, painful. But the anarchist is mistaken in assuming that everyone, without exception, will be willing to observe these rules voluntarily. There are dyspeptics who, though they know very well that indulgence in a certain food will, after a short time, cause them severe, even scarcely bearable pains, are nevertheless unable to forgo the enjoyment of the delectable dish. Now the interrelationships of life in society are not as easy to trace as the physiological effects of a food, nor do the consequences follow so quickly and, above all, so palpably for the evildoer. Can it, then, be assumed, without falling completely into absurdity, that, in spite of all this, every individual in an anarchist society will have greater foresight and will power than a gluttonous dyspeptic? In an anarchist society is the possibility entirely to be excluded that someone may negligently throw away a lighted match and start a fire or, in a fit of anger, jealousy, or revenge, inflict injury on his fellow man? Anarchism misunderstands the real nature of man. It would be practicable only in a world of angels and saints.
Liberalism is not anarchism, nor has it anything whatsoever to do with anarchism. The liberal understands quite clearly that without resort to compulsion, the existence of society would be endangered and that behind the rules of conduct whose observance is necessary to assure peaceful human cooperation must stand the threat of force if the whole edifice of society is not to be continually at the mercy of any one of its members. One must be in a position to compel the person who will not respect the lives, health, personal freedom, or private property of others to acquiesce in the rules of life in society. This is the function that the liberal doctrine assigns to the state: the protection of property, liberty, and peace.
(…)
It is incorrect to represent the attitude of liberalism toward the state by saying that it wishes to restrict the latter's sphere of possible activity or that it abhors, in principle, all activity on the part of the state in relation to economic life. Such an interpretation is altogether out of the question. The stand that liberalism takes in regard to the problem of the function of the state is the necessary consequence of its advocacy of private ownership of the means of production. If one is in favor of the latter, one cannot, of course, also be in favor of communal ownership of the means of production, i.e., of placing them at the disposition of the government rather than of individual owners. Thus, the advocacy of private ownership of the means of production already implies a very severe circumscription of the functions assigned to the state.
The socialists are sometimes wont to reproach liberalism with a lack of consistency, It is, they maintain, illogical to restrict the activity of the state in the economic sphere exclusively to the protection of property. It is difficult to see why, if the state is not to remain completely neutral, its intervention has to be limited to protecting the rights of property owners. This reproach would be justified only if the opposition of liberalism to all governmental activity in the economic sphere going beyond the protection of property stemmed from an aversion in principle against any activity on the part of the state. But that is by no means the case. The reason why liberalism opposes a further extension of the sphere of governmental activity is precisely that this would, in effect, abolish private ownership of the means of production. And in private property the liberal sees the principle most suitable for the organization of man's life in society.
Liberalism is therefore far from disputing the necessity of a machinery of state, a system of law, and a government. It is a grave misunderstanding to associate it in any way with the idea of anarchism. For the liberal, the state is an absolute necessity, since the most important tasks are incumbent upon it: the protection not only of private property, but also of peace, for in the absence of the latter the full benefits of private property cannot be reaped.»
Porque há um Portugal para lá da austeridade e porque não podemos continuar a permitir o regabofe que foram as últimas décadas do Estado português, cuja degenerescência cleptocrática, mercê de socialistas e sociais-democratas empedernidos (com Cavaco Silva à cabeça) que sob o manto do Estado Social disfarçaram suicidárias opções políticas que custam milhares de milhões ao contribuinte, gerou o estado de necessidade que infelizmente vivemos e que de uma maneira ou de outra somos forçados a sanear, importa começar desde já a ter noção que a política em Portugal não pode continuar a roçar o grau zero da indigência moral e intelectual, sob pena de fragmentarmos ainda mais a sociedade portuguesa e a nossa soberania e independência que em primeiro grau derivam directamente da nossa viabilidade financeira, pelo que subscrevo inteiramente o que o Rui A. escreve em Modos de vida, salientando ainda que esta prosa deveria estar clarinha como água nas mentes de todos, a começar pelos governantes:
«Num Estado de Direito, não é legítimo cortarem-se salários, subsídios de trabalho ou reduzir-se o valor de qualquer uma dessas prestações remuneratórias, a não ser que isso decorra do que for livremente contratado e convencionado pelas partes. Num verdadeiro Estado de Direito, daqueles em que o comportamento do governo é previsível e fundade na lei constitucional, estes cortes são ainda mais ilegítimos, se forem impostos unilateralmente pelo estado com a finalidade de tapar os buracos financeiros da sua gestão desregrada e irresponsável. Isto é e será sempre um ataque à propriedade privada e à liberdade, um roubo, em suma, por mais “legal” que seja, isto é, ainda que suportado pela lei do orçamento ou por outra lei qualquer. No caso português, também não vale a pena argumentar que os portugueses viveram “uma vida desregrada e desafogada” durante décadas e estão agora a pagar a factura. Isso não é verdade. Quem viveu muito acima das suas possibilidades foi o estado, a generalidade da classe política, a alta burocracia, os gestores públicos, os amigos dos governantes que se encostaram ao orçamento do estado, etc. O português comum tem vivido muito abaixo do nível médio do europeu ou do norte-americano, e foi tolerando estes abusos por ignorância e desconhecimento, sempre convencido que quem lhe prometia mais e melhor era capaz de lho dar. O que, então, tem agora que terminar não é o modo de vida dos portugueses comuns, de resto, muito fraco nos últimos anos, mas o modo de vida do estado e de quem o dirige.»