Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Um dia de desemprego de cada vez

por John Wolf, em 03.11.13

Eu sei que é mais fácil falar do que fazer. Eu sei que é mais fácil imaginar o fogo real do que queimar as mãos. Eu sei que provavelmente produzo reflexões de barriga cheia, corpo meio-cheio que mesmo assim transborda de reclamações, amparado pelo conforto da relativa segurança. Mas prossigo com o meu intento de escrutinar o guião do desemprego. Tento, sem grande aval, reproduzir os passos dessa condição de agrafo. O simulacro da abstinência laboral não passará disso mesmo, de um exercício incompleto -  a ficção mais distante que próxima, da substância, um dia na vida de um dispensado. Se a depressão atrasa os movimentos e retarda o despertador como pilha falida, a fala que não sai, anula o gosto dos outros e do café. E as horas, essas que custam mais, agora passam mais vagarosas e ostentam outra tarifa - encarregam-se de arrastar o calendário para um outro temporal. A cara, salpicada pela neblina ranhosa da noite, já não carece da lavagem porque ninguém verá a rosada, a bochecha - a barba áspera tratará do resto. Camufla o mal-estar e uma parte da comichão, do bicho que tomou a floresta como sua lua. E a mãe brada do corredor que já são horas de levantar. O café já abriu para os rotos enquanto o pão chegou de véspera, fermentado pela dureza, agrafado pelo dente que sobreviveu à mordedura de uma sobra. O matutino que sobeja serve para a descasca da batata, mas ainda se vislumbra o craque da bola, o brilho dos olhos que condiz com o brinco, o resultado da taça. A fila que rodopia o quarteirão é totalmente dele. É dele. É ele que é ela que é ele que já foi ele - agora mero elo. Como linhas. Como linhas cruzadas ao almoço. Esparguete que se contorce como engodo de si - morde-se. E há tardes também habilitadas a idêntico desfecho, alinhadas debaixo de um sexto do quadrante, a parte da bússola que aponta para uma alvorada anunciada em sessões contínuas de desavindos com o engano. A luz está ao virar da esquina - dizem eles. A luz aprendeu a dobrar as curvas - garimpam eles. E a conversa faz parte do desmaio, da ocasião tornada obesa, dominante. Escuto apenas gargarejos de palavras, oiço a proveniência duvidosa, vejo as naturezas quase mortas de um juízo acertado, acartado às costas para aquecer a noite ferida que se avizinha. Mas ainda fala sobre a força para a derradeira bomba de ar - quer encher os pneus da pedaleira para rumar, sem assentar os pés em terra. Quase voar, quase voltar a ter razões que chegam, sobressalentes. O pedido do outro passa a ser religião. A encomenda para durar uma época apenas.  Mais tarde chegará outro desejo, aquele foi adiado pelo freio - o travão de emergência onde a mão se enforca, a mão anónima que puxa a alavanca e trava o eléctrico, e o que escapa por entre o dia é mais um não igual ao anterior, semelhante ao não que se segue. Como mandar recados na volta do correio.

publicado às 21:14

Estado de espírito

por Samuel de Paiva Pires, em 18.10.10
Viva a Maria da Fonte
Com as pistolas na mão
Para matar os cabrais
Que são falsos à nação

Quando é que nos tornámos medricas? Como é que um povo que fez quatro impérios ao longo de séculos, que passou por tantas crises bem mais graves que a actual, se deixou enredar nesta ladaínha que nos tolhe a coragem? Sinto uma profunda revolta, mas olho à volta e vejo que nos tornámos medricas. Quer os líderes que nos desgovernam, quer os portugueses em geral. E como assinalou o João Gomes Almeida, "em Portugal, o governo apresenta um orçamento de estado que vai pedir ao seu povo o maior sacrifício financeiro das últimas décadas. Os nossos dedicados sindicatos convocam uma greve geral para daí a um mês, os dirigentes estudantis continuam a embebedar-se e a suplicar notas aos docentes e o povo não se preocupa, afinal daqui a poucos minutos dá o directo diário da Casa dos Segredos".

 

A extorsão que este OE nos impõe, o descurar das principais áreas de actuação do Estado Social, tudo para manter uma ineficiente e parasita máquina estatal, é de uma injustiça gritante. É óbvio que não serão os partidos, os comensais interesses vigentes que se sentam à mesa do orçamento, que irão ter a coragem de ser justos e reformar profundamente o Estado português, colocando em causa as clientelas partidárias e a subsistência das Mota-Engil e das Ascendi do regime. E eu que nos últimos anos me tornei um convicto democrata liberal, começo a crer que talvez Manuela Ferreira Leite tivesse razão quando disse que mais vale suspender a democracia durante uns meses - até porque nós não temos uma democracia mas sim uma oligarquia de gente mal formada a dirigi-la. Se vamos ter ditadura do FMI, daqui a um mês ou daqui a seis, não valerá mais sermos nós a limpar a casa e colocar à frente dos nossos destinos verdadeiros patriotas e gente que saiba o que faz?

 

Estamos adormecidos nesta catarse colectiva. Até os estudantes, que noutros países sempre foram uma classe social a ter em consideração, se deixam extorquir (as novas regras e a falta de pagamento das Bolsas de Acção Social assim o demonstram), sem tugir nem mugir. Desde 1820, e até 1926, ao menos os portugueses lutavam na rua pelo que acreditavam ser melhor para o país, em especial quando se sentiam particularmente injustiçados. Estamos a ser roubados por gente que ainda se ri na nossa cara, e nada fazemos. Quando, mas quando raio é que nos tornámos medricas???

publicado às 23:51

Bom fim-de-semana: Johnny Nash - I Can See Clearly Now

por Samuel de Paiva Pires, em 21.12.08

 

 

 

publicado às 05:02






Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2013
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2012
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2011
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2010
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2009
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2008
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2007
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D

Links

Estados protegidos

  •  
  • Estados amigos

  •  
  • Estados soberanos

  •  
  • Estados soberanos de outras línguas

  •  
  • Monarquia

  •  
  • Monarquia em outras línguas

  •  
  • Think tanks e organizações nacionais

  •  
  • Think tanks e organizações estrangeiros

  •  
  • Informação nacional

  •  
  • Informação internacional

  •  
  • Revistas