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O argumentário que tem por base a insuficiência do dinheiro tem, a miúdo, uma larga precedência sobre os restantes argumentos utilizados no debate público, mais que não seja pelo facto de, como sói dizer-se, não se fazerem omeletas sem os indispensáveis ovos. Para que fique bem claro para o grosso dos leitores que me acompanham, não pertenço, como decerto já repararam, ao campo dos que preconizam o envolvimento do poder estadual em tudo o que gira em torno do sol, mas há, em certas circunstâncias e em certos contextos, excepções à regra. O caso dos 85 Miró em mãos do BPN é, a este respeito, um magnífico exemplo das sobreditas excepções à regra. Como foi extensamente noticiado nos media, o Estado português, representado pelo discretíssimo Jorge Barreto Xavier, entende que a colecção de Miró pertencente ao BPN, que irá brevemente a leilão, não é, sublinhe-se, uma prioridade. Reparem que não estou, propriamente, a advogar uma política global de subsidiação da arte ou do património artístico, mas a verdade é que a saída desta colecção para o estrangeiro, feita, como se sabe, com o objectivo de colmatar financeiramente as roubalheiras dos antigos patrões do BPN, é, atendo-me à mais pura das verdades, uma asneira de proporções diluvianas. A venda desta colecção é, no fundo, o resumo perfeito de uma gestão criminosa que, não obstante a indignação social que legitimamente gerou, permanece judicialmente intocada. Porém, o que verdadeiramente releva desta venda bêpêneira é o total descaso que os nossos governantes fazem da cultura artística. Hoje, a política quotidiana faz-se, as mais das vezes, com uma folha de excel mui polida, na qual as contas dos teres e haveres de cada um surgem assepticamente bem esgaravatas. Num universo deste calibre, não há, manifestamente, espaço para prioridades mais comezinhas. É certo que este problema não é um exclusivo de Portugal, pois em Espanha, para dar um pequeno exemplo, os responsáveis políticos governativos têm-se debatido, ultimamente, com problemas similares, devido ao facto de colecções artísticas de alto gabarito estarem, sem a menor oposição pública e privada, a "fugir" para cantos financeiramente mais desafogados. Há quem diga que isto é a globalização do mercado coleccionista, em que uns, inteligentemente, põem e dispõem, e outros, sobretudo os arruinados, comem e calam. A lógica é pungente, mas oblitera um aspecto fundamental: a saída destas colecções é, inegavelmente, um estupro na identidade cultural dos países afectados por esta contabilidade mecanicista. O que mais irrita no caso destes Miró é a leviandade com que se utiliza o argumento económico, deixando automaticamente de lado considerações de outra ordem. Se a secretaria de Estado da cultura servisse, realmente, para algo de útil, é óbvio que esta colecção, pertencente a uma instituição nacionalizada (logo, pública), estaria, neste preciso momento, a ser reconduzida para algum museu nacional. Mas não, Barreto Xavier, trazendo à liça, pela enésima vez, a sua crudelíssima irrelevância política, prefere dizer que o Estado português dispõe de outras prioridades. E assim se vai desfazendo o acervo cultural de um país.
Portugal, não tendo princípios, ou não tendo fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes.
Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó.
Este caldo é o Estado. Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade.
Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiotagem; e a dívida, a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.
Tudo é pobre: a preocupação de todos é o pão de cada dia.
Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade.
Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse.
in O primitivo prólogo das Farpas. – Estudo social de Portugal em 1871
Eça de Queiróz