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Maria do Rosário Gama, a nova referência do confisco

por João Pinto Bastos, em 28.11.13

É por estas e por outras que este regime é um besteirol dificilmente reformável. Já agora, por que não aumentar os impostos desta ilustríssima senhora, atingindo, por exemplo, a fasquia dos 100%? Estou certo que, com o dinheiro que deste modo se granjearia, o segundo resgate ficaria, decerto, a léguas de distância do território português. Ademais, não tenho a menor dúvida de que Maria Rosário da Gama não ofereceria, num cenário de míngua de recursos financeiros, quaisquer entraves a uma taxação absoluta dos seus rendimentos, dado que, benemérita como é e sempre foi, seria, bem vistas as coisas, o paradigma máximo do contributo que todos os portugueses, amantes dos impostos como ela, deveriam dar à nobre causa da recuperação nacional. Em resumo, e deixando de lado a ironia, é triste, muito triste, um país chegar ao ponto em que uma representante dos "pensionistas" (que pensionistas, já agora?) defende os privilégios da sua "classe", exigindo, em troca, o confisco geral do povo português. Mais do que triste, é lamentável. 

publicado às 01:05

Sobre as pensões de viuvez

por Samuel de Paiva Pires, em 10.10.13

Henrique Raposo, "Greves no Metro e a víuva abonada: a farsa do estado social":

 

«A história das pensões de viuvez é outro exemplo. Viúva não é escalão do IRS. Num país onde a média das pensões ronda os 400 euros, viúvas com reformas abonadas não podem receber um suplemento. É injusto. A senhora x deve receber a "pensão de sobrevivência" se a sua dignidade ficar em risco após a morte do marido. Mas, se recebe uma reforma de 1000, 1500 ou 2000 euros, a dignidade da senhora x não fica afectada num país onde o salário mínimo não chega aos 500 e onde o salário médio está entre os 800 e os 900 euros. Na verdade, esta ideia justa (apoiar a viuvez) está a ser deturpada por milhares de abusos. Já conheci "pensões de sobrevivência" superiores à reforma combinada dos meus padrinhos. Ou seja, além de reformas abonadas bem acima dos 2000 euros, as senhoras y e w tinham um bónus de viuvez superior a 600 euros. Que justiça social é esta? E quantos viúvas continuam a ser viúvas mesmo depois de viverem décadas com um segundo marido?

 

Para se proteger quem realmente precisa, é necessário impor um tecto máximo a partir do qual a senhora x não tem direito a pensão de viuvez. Não é uma questão financeira, é uma questão de moral pública. O único debate aceitável está na definição do valor do tecto. Sempre considerei que o valor oscilante do salário médio (não o mínimo) é um bom início de conversa.»

publicado às 13:54

Imigração qualificada

por Samuel de Paiva Pires, em 09.09.13

 

(foto daqui)

 

No seguimento deste post do John Wolf e deste do Nuno Castelo-Branco, permitam-me dizer que não tenho uma visão tão pessimista como a do John. Não vejo em que é que a criação de uma agência governamental destinada a atrair imigrantes qualificados esbarre com a ideia de self-made man, e muito menos me parece que possa dizer-se que isso andaria perto de práticas de regimes nacional-socialistas. Creio que a visão do John enferma de um igualitarismo extremo de que não partilho. Estando a União Europeia de portas abertas há já vários anos, a existência de programas que atraiam um tipo específico de imigração apenas complementará esta política. Há que ser pragmático e interiorizar aquilo que o Nuno escreve"Há que atrair os investimentos, facilitar procedimentos legais - burocracia, impostos, justiça -, oferecer perspectivas de actividades empresariais e garantias de segurança." 

 

Não é por acaso que Austrália e Canadá têm programas desenhados especificamente para atrair imigrantes qualificados que suprimam as necessidades de trabalho em determinadas áreas, que França e Inglaterra criam condições para investimentos por parte de elites financeiras da Rússia, países árabes e outros, e que um dos grandes segredos da renovação interna e do domínio internacional dos Estados Unidos da América, como muito bem aponta Fareed Zakaria em O Mundo Pós-Americano, é precisamente a atracção de estudantes, cientistas e académicos que ali desenvolvem os seus trabalhos, muitos acabando por se tornar parte integrante da sociedade norte-americana, como é o exemplo do próprio Fareed Zakaria, de origem indiana. 

 

Já não vivemos no tempo da migração da mala de cartão, mas sim num mundo globalizado em que boa parte das relações laborais, empresariais e académicas extravasa fronteiras administrativas e suprime limitações nacionais de outros tempos, tendo o Ocidente que apostar muito mais na qualidade do que na quantidade, sob pena de não conseguir competir com a Ásia. Da mesma forma que muitos jovens e quadros portugueses qualificados, em virtude do ajustamento económico português e, consequentemente, do mercado de trabalho nacional, têm saído do país para rumar a outros destinos onde existe bastante procura pelas suas capacidades e competências, e da mesma forma que o tecido empresarial português tem vindo a reorientar-se, em larga medida, para o estrangeiro, o que tem potenciado o assinalável crescimento das exportações, também Portugal deve adoptar políticas que permitam atrair jovens, quadros e investimentos estrangeiros. Esta é precisamente uma das principais formas de, como o Nuno escreve em relação aos portugueses da África do Sul, "trazer claros benefícios à nossa economia e tão importante como isto, (...) alguma segurança à solvência do Estado Social e ao sempre sibilinamente mencionado défice demográfico."

publicado às 13:26

 

Está um porta-aviões norte-americano em Lisboa, o USS Dwight Eisenhower. Amanhã vou visitá-lo, a convite da Embaixada dos EUA. Sim, para algumas mentes brilhantemente mentecaptas, sou um ultra-neo-liberal-capitalista-fássista-imperialista-militarista-atlantista, ou seja, um filho do Demónio. O mesmo é dizer que não me queixo hipocritamente do capitalismo que produz as armas que os moderninhos revolucionários de sofá tanto gostam de utilizar, e muito menos me indigno selectivamente e aplaudo alguns eleitos como Steve Jobs, embora não deixe de notar, como Chesterton, que o conceito de propriedade foi corrompido pelos grandes capitalistas e que estamos, como Tiago Caiado Guerreiro fazia notar há dias, a viver num sistema cada vez mais semelhante ao feudalismo em que a maioria das pessoas são meros servos da gleba. Afinal, não consta que os grandes senhores neo-feudais sejam propriamente defensores do liberalismo e do capitalismo que pugna pelo mercado livre, aquele onde as empresas (como os bancos) mal geridas vão mesmo à falência, não sendo resgatadas por dinheiro dos contribuintes obtido através de uma sempre crescente carga fiscal. Num tempo em que o debate político se deixa enredar pelo economês e as partes em contenda tendem a barricar-se em trincheiras com categorias pouco ou mal definidas e/ou que dificilmente correspondem às realidades que pretendem explicar, vale a pena citar José Adelino Maltez:


«Um liberal não precisa de ser anarco-capitalista para reconhecer que o Welfare State sofre de raquitismo, quando se admitiram estruturas adiposas de gordura sem adequado músculo e calcificada ossatura, que puseram em causa as articulações e a própria estrutura óssea do corpo social. Contudo, ao mesmo tempo que fala em menos Estado, relativamente aos intervencionismos anteriores, também clama por um melhor Estado, isto é, por uma nova intervenção da esfera pública em domínios como os da qualidade de vida, do ambiente e da descentralização, visando responder, com justiça, às novas questões sociais.

Ser liberal não significa ceder às forças reivindicadoras do capitalismo autenticamente selvagem e multinacional que, mantendo a justiça e a dimensão ética dentro dos respectivos espaços político-culturais, exportam, para os terceiros e quatros mundos, essas vias super-liberalistas para a construção de um laboratório do mercado da concorrência perfeita.

Mas esta não passa de um mero exercício mental daqueles ideologismos economicistas que não foram, nem serão, aplicados em qualquer lugar e em qualquer tempo, salvo nos exercícios de imaginação teórica dos modelos académicos e dos manuais pedagógicos, dado que os povos, feitos de homens concretos, de carne, sangue e sonhos, não podem ser cobaias de experimentação para tais tratamentos de choque.»

publicado às 15:59

Parece que há quem não só nunca tenha lido Hayek como desconheça as contradições deste e o veja como um Papa infalível, pareça não ter lido grande coisa para além de meia dúzia de economistas e pseudo-filósofos e, pior, seja tolhido pelo dogmatismo e fanatismo redutores que fazem com que se classifique como socialismo qualquer tipo de políticas sociais, a safety net a que o próprio Hayek se refere e da qual usufruiu. O Estado Social é uma criação anti-socialista, originada por quem realisticamente percebia o que é o rastilho das revoluções e quem é que tende a ser tolhido pelo comunismo, mas para perceber isto é preciso realmente ler um bocadinho mais que meia dúzia de coisas. Talvez um dia certos liberais, especialmente os desprovidos de subtileza e intelecto para compreender o poder, percebam como é ideológica e politicamente suicida este tipo de dogmatismo. 

 

P.S.: Aqui fica o essencial sobre Bismarck.

publicado às 10:20

O Reich reabilitado pela esquerda

por Nuno Castelo-Branco, em 22.04.13

Num  post oportunamente aqui deixado pelo Samuel, foi sem surpresa que li o excerto de uma crónica de Soromenho Marques. A guerrilha mediática contra a chanceler alemã está no auge e é assim compreensível o recurso a todos os argumentos susceptíveis de convencerem a sempre facilmente impressionável opinião pública.

 

O texto de Soromenho é fantástico, apelando à memória de Bismarck e ao seu legado na construção do Estado Social. Dentro de dias e em desespero de causa, o distinto professor bem poderá apelar à memória de Sua Majestade o Kaiser Guilherme II, o soberano das massas com quem Bismarck teve sérios dissabores e que ao chanceler imporia inéditas medidas no campo da protecção social. Aliás, logo no início do seu reinado, o Kaiser afirmaria que "o assunto mais urgente é o alargamento da lei da protecção do trabalhador", projecto que foi aprovado em 1891, através dos Actos de Protecção dos Trabalhadores que em muito melhoraram as condições de trabalho, regularam as relações laborais e protegeram as mulheres e crianças.

 

Esta é uma constante da Alemanha que na Europa surgiu como um Estado após a derrota da França em 1871. Os pensadores que como Soromenho apontam a idade de ouro do alvorecer do Estado Social, deviam também explicar o porquê do inabalável apoio que mais tarde, as massas prestariam ao regime de Hitler. Uma das principais razões, consistiu na manutenção das inovações que vinham dos tempos de Bismarck e de Guilherme II, tendo o regime nacional-socialista habilidosamente envolvido os grandes princípios consagrados pela lei, em roupagens tecidas por uma propaganda incessante - e pela azáfama laborista da Kraft durch Freude - que muito desagradou aos liberais e conservadores alemães. Assim sendo, Soromenho vem involuntariamente apelar à memória do II e III Reich e precisamente daquilo que a par de umas potentes forças armadas - hoje bastante diminuídas na RFA -  melhor caracterizava a desaparecida Alemanha que ia do Reno ao Niémen.

 

O Estado Social não parece estar em risco na Alemanha, nem os alemães admitiriam tal coisa. Dizer o contrário, é não conhecê-los. De lá surgem propostas de contratação de médicos portugueses, enfermeiros, assistentes sociais e outros trabalhadores destinados a garantirem a qualidade desse privilegiado e bem cuidado sector da sociedade alemã. 

 

O caso alemão não pode surgir isolado e como oportuno bode expiatório para erros cometidos por outros e também, é fácil reconhecê-lo, pela degradação da qualidade dos políticos que sucederam a Helmut Kohl. No combate político "pela Europa" - que afinal sempre foi uma das obsessões alemãs, inclusivamente durante a II Guerra Mundial -, recorrer-se a sugestões de revanchismo hitleriano, é uma indecência que descridibiliza quem o faz. Outro aspecto a considerar e sem o qual qualquer tipo de análise pecará por muito parcial, consiste na situação de abissal desigualdade com que a Europa se bate no plano económico. Os tratados de comércio livre - a globalização - não atendem à concorrência desleal por parte de potências onde os "pressupostos sociais Bismarck-Guilherme II", são apenas uma miragem, quando não totalmente desprezados. Há uns dias, um intelectual dizia numa entrevista que  ao chegar a Nova Iorque há uns meses, teve a estranha sensação de de se encontrar num local onde "algo está a terminar". Pelo contrário, ao visitar países asiáticos, verificou que esse algo era inverso, precisamente o início de um outro mundo. Resta-nos saber se a venenosa farpa lançada por um militante das lapidações de 1968, ao indisfarçadamente exultar com o sempre anunciado fim do odiado Ocidente a que pertence, poderá contribuir para um hiper-capitalismo global à chinesa. Contra isto, nem mil Panzerdivisionen de blindados Merkel, Kohl, Schmidt, Brandt, Adenauer, Bismarck ou Guilherme II poderão fazer seja o que for. 

 

Para alguns a Europa ideal seria um espaço onde não existisse a Alemanha, mas este é apenas um sonho que bem depressa se tornaria num pesadelo. Devido aos humores franceses que sempre foram tão expansivos como os gases que fazem saltar as rolhas das garrafas de champanhe, Bismarck unificou a Alemanha pelo ferro e pelo sangue. Há que compreender que em pleno século XIX, outra solução não existia. Soromenho esquece-se desse pequeno detalhe, ficando-se nas entrelinhas pelo mercado comum alemão - o Zollverein - e pelos progressos legislativos da Época Guilhermina. Devia então divulgar alguns factos relativos à organização do trabalho e contratação, o ensino técnico e a formação profissional, o equilíbrio das contas públicas, os benefícios da poupança e a cuidadosa ponderação das políticas de investimento estatal. É que se não o fizer, Soromenho Marques arrisca-se a ser colocado naquele regimento de combativos militantes pelos cheques em branco passados a ineptos líderes políticos portugueses - até o sr. Sócrates que quando exerceu o poder foi um bem conhecido aliado de Merkel, vem agora dizer que há que colocar um travão aos alemães! -  e claro está, a essa artificiosa forma de extorsão que são estes tão cobiçados mas mal explicados eurobonds, a mutualização da dívida. Tente dizer o que pretende aos alemães, talvez lhe ofereçam um pickelhaube. Evocar Bismarck supõe a sugestão de um Estado autoritário e Soromenho não hesita em apresentar a ameaça de um "marxismo de legítima defesa", afinal o bicho-papão que a Europa já experimentou e que o filósofo talvez entenda como solução: um ansiado regresso ao passado. 

 

A questão será sempre a mesma: onde pensam ir buscar o dinheiro? Às rotativas? 

publicado às 01:56

Coisas simples que muita gente parece não entender

por Samuel de Paiva Pires, em 21.04.13

Viriato Soromenho Marques, "O Estado social da Europa de Merkel":

 

«Até o chanceler Bismarck, conservador e antissocialista, teria vergonha desta "Europa alemã", baseada na criação da discórdia e da inveja entre os europeus, com base na desinformação, promovendo o aumento da pobreza e a concentração da riqueza dentro de cada país da Zona Euro. Bismarck, muito pelo contrário, foi o pioneiro do Estado social moderno com as suas leis de 1883 (seguros de saúde), de 1884 (seguro de acidentes de trabalho) e de 1889 (seguro de velhice e invalidez). Schröder iniciou o desmantelamento dessa herança de uma política de responsabilidade social do Estado, iniciada por Bismarck. Merkel, por seu turno, pretende agora levar essa política ativa de desigualdade social ao maior número possível de países europeus. Os europeus não se devem deixar enganar. A ameaça para a paz e a prosperidade europeias não está no lado de lá das fronteiras. O perigo vem de dentro. Das elites incompetentes e egoístas - e dos burocratas que as servem cegamente, como o ministro português Gaspar - que a degradação das nossas democracias representativas segregou como uma perigosa doença. Os que querem destruir a herança de Bismarck arriscam-se a despertar, na Europa inteira, o fantasma de um marxismo de legítima defesa.»

publicado às 13:53

A grandeza passou a ser coisa do passado

por João Quaresma, em 09.04.13

Por nenhuma razão em especial (mas coincidindo com a notícia de ontem) por estes dias lembrei-me da Ally e do Galfried, um casal inglês amigo da família. Conheceram os meus pais quando, de mapa de Lisboa na mão, lhes pediram indicações e, conversa puxa conversa, ficou uma amizade que durou anos, até à morte de ambos. Para mim, ficaram como a referência dos ingleses no seu melhor: simpáticos, educados e apreciadores do que de bom as outras nações têm para oferecer, por muito diferentes que sejam da Grã-Bretanha (o que nem sempre acontece com os seus conterrâneos).

Em especial o Galfried. Pessoa extremamente culta, que conhecia bem as artes e a História de vários países (até a da Índia antes da colonização britânica), incluindo a de Portugal. Bom conversador, com uma educação irrepreensível, maneira de estar e aparência de um cavalheiro inglês de boa linhagem, entre quem o visse e ouvisse ninguém diria que toda a sua vida tinha sido um bobby: um simples polícia londrino. Não tinha sido educado em Eton, Oxford ou Cambridge mas tão simplesmente na escola pública e a sua bagagem cultural tinha sido adquirida nas bibliotecas públicas, nos documentários da BBC e nas viagens, depois de se reformar. Era o exemplo do melhor do elitismo britânico: aproximar as classes populares dos níveis educacionais e culturais das elites.

Ambos gostavam bastante de Portugal, voltando várias vezes e ficando numa casa nossa. Também recebemos amigos deles, ingleses e um casal de professores universitários australianos a quem disseram: «Não se pode conhecer bem a Europa sem conhecer Portugal». Ao Galfried, intrigava-o o 25 de Abril, e o facto de Portugal ter estado à beira de uma guerra civil: «Como foi possível num país tão antigo, um povo que nos maus momentos esteve sempre tão unido e foi sempre tão forte? Em Inglaterra, é impossível os comunistas tomarem o poder. Para o fazerem teriam de nos virar uns contra os outros, e isso é muito, mas mesmo muito difícil de fazer. Somos muito unidos, como se fôssemos uma família. E em parte devemos isso ao Sr. Hitler».

Durante a guerra, Galfried tinha estado na artilharia anti-aérea, defendendo a sua Londres contra os bombardeiros alemães. Dizia que os meses que durou o Blitz tinham mudado muito os ingleses na maneira de pensar e de se relacionarem. Toda a gente compreendeu que tinham todos de trabalhar em conjunto e de se ajudarem uns aos outros, de aceitar sacrifícios e esquecer diferenças e divergências. Londres era ela própria um campo de batalha e todos, de uma maneira ou de outra, tomaram parte nesse combate, da jovem enfermeira auxiliar Ally à princesa (e futura rainha) Isabel. Todos entenderam que cada dia e cada noite podiam ser os últimos, que a próxima bomba a cair podia ser a sua, e que se devia fazer o máximo pelo país e pelo próximo, e o possível para aproveitar a vida. Quando uma família perdia a sua casa, os vizinhos acolhiam-na o tempo necessário. Quando uma criança ficava órfã ou um idoso ficava só, havia sempre um lar disposto a recebê-lo, fosse num quarto em Londres ou num castelo na Escócia. Todos tomavam a iniciativa e ninguém ficava à espera que o Estado viesse ajudar. Maridos e mulheres separados pela distância escreviam-se dizendo que não se importavam que se relacionassem com outras pessoas, se isso as fizesse sentir melhor. Todos entenderam que eram um só povo e todos puxaram para o mesmo lado.

Esse Reino Unido, valente, determinado e unido, em parte desapareceu ontem com a morte de Margaret Thatcher, o último primeiro-ministro que trabalhou para que o país fosse assim. E como diz Miguel Castelo Branco, «a Europa, ou o que dela resta, morreu hoje um pouco mais». A Europa feita de nações com energia própria, rica na sua diversidade e liberdade de acção, foi substituida por um condomínio de mercados e de plutocracias, onde os povos foram castrados de poder e vontade própria, reduzidos a moles de consumidores e contribuintes, bananizados e viciados em satisfacções rasteiras. O Reino Unido era uma das nações que lhe servia de alicerce e que, mesmo pelo seu distanciamento, mais a influenciou. Hoje já não faz Austins nem Rovers, os bobbies podem vir a ser privatizados, as caçadas à raposa foram substituidas pela caça ao "politicamente incorrecto" e, mesmo com a Rainha e a libra estrelina, está em muitos aspectos irreconhecível.

Londres voltou a arder em 2011 não por obra dos bombardeiros da Luftwaffe mas dos incendiários sustentados pelo welfare state, instruídos como carneiros pela Educação Inclusiva, educados na mesquita mais próxima e cujas noções de cidadania foram obtidas no fast food mais barato. O elitismo saudável e construtivo foi banido pelo populismo destruidor, que tudo reduz ao mínimo denominador comum e ao culto da infantilização tutelada pelo Estado (nem nas olimpíadas de Moscovo, em 1980, nem de perto nem de longe se assistiu a algo de tão ridiculamente ideológico como a homenagem ao Serviço Nacional de Saúde na abertura dos jogos de Londres). É uma decadência que todos constatam mas a que uns se resignaram e outros, por entre as recordações trazidas por Downton Abbey, os discursos inflamados de Nigel Farage, e a utopia actual de Midsomer Murders (de uma Inglaterra inglesa em pleno Século XXI) não conseguem travar. Lamentavelmente, da glória do Blitz à futilidade das corridas de Ascot, cada qual à sua maneira, a grandeza e a identidade própria passaram a ser vistas como coisas do passado.

publicado às 20:05

Notícia no Jornal de NotíciasUm especial agradecimento aos regimentais que nos desgovernam há várias décadas e continuam a esbulhar-nos para pagar os seus vícios e desmandos, expropriando-nos dos frutos do nosso trabalho e cortando nas funções sociais do Estado enquanto vamos alegremente pagando BPNs e PPPs como se não houvesse amanhã - e parece não haver mesmo, já que a partir de 2014 e durante 40 ou 50 anos vamos pagar estas brincadeiras, como fica patente pelo que evidencia o Juiz Carlos Moreno no seu livro Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro. Já dizia Keynes que no longo prazo estamos todos mortos, portanto não se preocupem, rapaziada da minha geração, basta fazermos como manda o subnutrido mental Fernando Ulrich, o tal que, citando o Rui A., «gere um banco tecnicamente falido, que só restitui os depósitos que lhe foram incautamente confiados à custa dos impostos dos cidadãos portugueses e europeus», e aguentarmos, aguentarmos... Até um dia.

publicado às 17:17

"40% dos gastos com pensões vão para os 10% mais ricos"

por Samuel de Paiva Pires, em 19.01.13

O João Pinto Bastos já aqui se referiu a este assunto. Fica à atenção dos Medinas Carreiras deste país, isto é, os que clamam contra o Estado Social per se, levando tudo por atacado, como se se pudesse tratar tudo e todos por igual, quando importa cada vez mais ter uma perspectiva qualitativa exaustiva sobre os grandes números e agregados macroeconómicos com que muitos acenam propagandisticamente, como se não fossem certos abusos dos que mais poder tiveram e têm que nos trouxeram ao estado a que chegámos.

publicado às 14:32

Portugal não se recomenda. Ponto. Custa-me dizer isto, mas, ao ver e ler o que se passa no país a minha reacção é um profundo desalento. O primeiro-ministro desta país, para lá da sua inépcia estridente, é um pato-bravo que, em virtude da sua ignorância atroadora, não sabe comunicar. Expele meia dúzia de trivialidades sobre assuntos seriíssimos e, depois, acossado e ameaçado por tudo e por todos recua covardemente. Em vez de lançar um debate sério e abrangente sobre o futuro da Segurança Social, explicando, reflectindo e ponderando os custos e benefícios de uma reforma que solucione a insustentabilidade do actual modelo, Passos, a despeito do que seria exigível, voltou mais uma vez a claudicar e a patentear o seu desconhecimento sobre uma matéria pouco atreita a facilitismos. Mas, ao que parece e para mal dos nossos já gigantescos pecados, a incompetência de Passos foi replicada por outro estarola do seu partido. Falo, pois, de Nuno Morais Sarmento. Pelos vistos, o antigo ministro e eminência parda das deputações acolitadas na advocacia das negociatas acha, vejam bem, que os cortes orçamentais devem abranger as funções de soberania. Ou seja, o não-pensamento da JSD, estrutura conhecida pela promoção da ignorância e da bovinidade celeradas, é, afinal, partilhado por ilustres membros do PSD. Corte-se já nas funções de soberania, dizem estes senhores, mas, reformar e tocar no nervo do Estado, nas funções sociais do Estado, bem, isso não, ou melhor, nunca. Quando o discurso político assenta na falácia de que as funções de soberania, o núcleo inarredável de um Estado decente - sim, as funções de soberania não incluem a educação e a saúde -, podem ser tocadas em detrimento de outra funções secundárias estamos conversados. Merecemos definitivamente a ruína. Com palradores políticos desta qualidade qualquer troika é insuficiente. 

publicado às 00:42

Caridade e solidariedade

por Samuel de Paiva Pires, em 15.12.12

Depois de já ter referido o post de José Pacheco Pereira, recomendo ainda a leitura deste artigo de João Cardoso Rosas, que aqui deixo na íntegra:

 

«Acompanhei com distanciamento a polémica sobre as declarações de Isabel Jonet, no mês passado, acerca da necessidade do empobrecimento em Portugal.


Afinal de contas, ela tem feito um trabalho admirável no Banco Alimentar contra a Fome e todos devíamos estar-lhe gratos por isso. Uma pessoa que faz um trabalho de natureza prática não tem de ter um pensamento sofisticado sobre a pobreza e a desigualdade. Não devemos esperar que Isabel Jonet, depois de um dia de trabalho no Banco Alimentar, passe os serões a ler John Rawls ou Amartya Sen. Por isso, as críticas que então lhe foram dirigidas pareceram-me claramente excessivas e mesmo deslocadas. Agora, mudei de opinião.

 

Jonet dá esta semana mais uma entrevista, desta feita ao jornal i, onde declara: "Sou mais adepta da caridade do que da solidariedade social". De forma cuidadosa, admite que necessitamos tanto de uma coisa como da outra e até considera errada a diminuição dez algumas prestações sociais. Na verdade, se Jonet tivesse dito que precisamos tanto de caridade como de solidariedade, eu concordaria. Mas ela disse algo subtilmente diferente, ou seja, que a caridade é preferível à solidariedade. Isto é, que a benevolência individual trata melhor os problemas da pobreza e da injustiça do que a solidariedade socialmente organizada através do Estado.

 

Estas declarações - que Jonet dirá sempre que foram mal interpretadas, como se quem fala publicamente tivesse o monopólio da interpretação daquilo que diz - recordaram-me aquilo que se contava aqui há uns anos sobre as aulas do filósofo libertarista (ou neoliberal) Robert Nozick. Este escreveu uma famosa obra, intitulada "Anarquia, Estado e Utopia", na qual atacava a ideia de justiça social considerando que, na verdade, qualquer esquema solidário ou distributivo implicava interferir na propriedade e liberdade dos mais ricos, o que significava tratá-los instrumentalmente e isso era indefensável de um ponto de vista moral. Pois bem, enquanto ensinava estas teorias, Nozick faria correr entre os estudantes uma caixa-mealheiro onde estava escrito "Contribuições para a pobreza em África". A ideia era clara: a caridade substituía com vantagem a solidariedade.

 

Quando Isabel Jonet vem agora dizer que a caridade é preferível não podemos desligar-nos de um contexto político no qual o Governo pretende impor um corte devastador no Estado social, em especial nas prestações sociais. Ou seja, os discursos de Jonet e do Governo funcionam em tandem. Eles fazem cada um por si aquilo que Nozick fazia em simultâneo na sua sala de aula. Ao dizer que a caridade é preferível, Jonet está também a dizer, de forma sub-reptícia, que o Governo tem razão em cortar na solidariedade.» 

 

Leitura complementar: O mito do viver acima das possibilidadesMarx a rirDuas petiçõesPobreza intelectualVamos brincar à caridadezinhaA indecorosa leveza da ideologia da caridadezinhaRaiva; Ainda Isabel Jonet

publicado às 18:12

Eu prefiro retornar a Burke, Oakeshott ou Scruton, para moderar excessos de racionalismo e forçar-me a olhar mais para a realidade e menos para os dogmas ideológicos. Simultaneamente, e para bem da minha sanidade intelectual, não deixo de me religar ao ponto de referência liberal, que encontra em Hayek um saudável realismo. Talvez por isto mesmo, Hayek é um dos autores mais vilipendiados por muitos dos ditos liberais. Nestes tempos em que muitos continuam a clamar pela destruição do Estado Social per se, sem qualificar aquilo a que se referem quando falam em Estado Social, esquecendo-se das raízes liberais e anti-socialistas do Estado Social, e deixando ainda de lado aquilo que a coberto do manto do Estado Social é o que está em larga medida na origem da crise que vamos vivendo, talvez por cegueira ideológica, obsessão, fetiche ou, no caso de alguns, por usufruírem ou pretenderem usufruir directamente das sinecuras do regime - há aspirantes a conselheiros de príncipe que não se dão conta das figuras que fazem -, vale bem a pena voltar a Hayek, no caso, a The Constitution of Liberty:



«Unlike socialism, the conception of the welfare state has no precise meaning. The phrase is sometimes used to describe any state that "concerns" itself in any manner with problems other than those of the maintenance of law and order. But, though a few theorists have demanded that the activities of government should be limited to the maintenance of law and order, such a stand cannot be justified by the principle of liberty. Only the coercive measures of government need be strictly limited. We have already seen (in chap. xv) that there is undeniably a wide field for non-coercive activities of government and that there is a clear need for financing them by taxation.

 

Indeed, no government in modern times has ever confined itself to the "individualist minimum" which has occasionally been described, nor has such confinement of governmental activity been advocated by the "orthodox" classical economists. All modern governments have made provision for the indigent, unfortunate, and disabled and have concerned themselves with questions of health and the dissemination of knowledge. There is no reason why the volume of these pure service activities should not increase with the general growth of wealth. There are common needs that can be satisfied only by collective action and which can be thus provided for without restricting individual liberty. It can hardly be denied that, as we grow richer, that minimum of sustenance which the community has always provided for those not able to look after themselves, and which can be provided outside the market, will gradually rise, or that government may, usefully and without doing any harm, assist or even lead in such endeavors. There is little reason why the government should not also play some role, or even take the initiative, in such areas as social insurance and education, or temporarily subsidize certain experimental developments. Our problem here is not so much the aims as the methods of government action.

 

References are often made to those modest and innocent aims of governmental activity to show how unreasonable is any opposition to the welfare state as such. But, once the rigid position that government should not concern itself at all with such matters is abandoned - a position which is defensible but has little to do with freedom - the defenders of liberty commonly discover that the program of the welfare state comprises a great deal more that is represented as equally legitimate and unobjectionable. If, for instance, they admit that they have no objection to pure-food laws, this is taken to imply that they should not object to any government activity directed toward a desirable end. Those who attempt to delimit the functions of government in terms of aims rather than methods thus regularly find themselves in the position of having to oppose state action which appears to have only desirable consequences or of having to admit that they have no general rule on which to base their objections to measures which, though effective for particular purposes, would in their aggregate effect destroy a free society. Though the position that the state should have nothing to do with matters not related to the maintenance of law and order may seem logical so long as we think of the state solely as a coercive apparatus, we must recognize that, as a service agency, it may assist without harm in the achievement of desirable aims which perhaps could not be achieved otherwise. The reason why many of the new welfare activities of government are a threat to freedom, then, is that, though they are presented as mere service activities, they really constitute an exercise of the coercive powers of government and rest on its claiming exclusive rights in certain fields.»

publicado às 03:15

Ainda Isabel Jonet

por Samuel de Paiva Pires, em 14.12.12

Pacheco Pereira está cheio de razão sobre as intervenções de Isabel Jonet. Se muitos conseguissem sair da redutora e primária posição de defender as patetices proferidas por Isabel Jonet, que têm uma carga ideológica e um pensamento sobre a sociedade - ainda que rudimentar - evidentes, e com que estou em absoluta discordância, apenas porque a sua obra é meritória, talvez pudessem então vislumbrar a "bigger picture". Mas para isso era preciso que também deixassem de acreditar no mito do "viver acima das possibilidades", muito em voga para os lados do Governo. Ler este artigo talvez ajude.

 

Leitura complementar: O mito do viver acima das possibilidadesMarx a rirDuas petiçõesPobreza intelectualVamos brincar à caridadezinhaA indecorosa leveza da ideologia da caridadezinha; Raiva.

publicado às 14:00

A esquerda dândi

por João Pinto Bastos, em 11.12.12

Quando oiço e leio as boutades de São Boaventura de Sousa Santos recordo-me instantaneamente de Vergílio Ferreira. Dizia o célebre escritor, na sua Conta-Corrente, que a nossa política é composta por "uma gentalha execranda, parlapatona, intriguista, charlatã, exibicionista, fanfarrona, de um empertigamento patarreco — e tocante de candura". Boaventura dispõe destas características em doses superlativas. Fala, trombeteia, esperneia e, no fim, não fica nada. Nem uma simples ideia, uma ideia que seja, vá, legível, compreensível ao comum dos mortais. Que ainda haja gente que pensa que o Estado Social é eterno não é nada que seja particularmente surpreendente. A solidariedade forçada, erigida em modelo universal e universalizante, criou um exército de dependentes que não fazem mais nada a não ser exigir a sucção dos recursos da comunidade em prol de devaneios gastos. O que surpreende é a desfaçatez com que certa intelligentsia, fortemente acolitada no Estado, dispara em todas as direcções, dizendo o indizível. Mas, e como eu não gosto de ser excessivamente crítico, talvez Boaventura tenha razão. Afinal de contas se houvesse alternativa ao Estado Providência o intelectualóide conimbricense não poderia dispor do seu tão querido CES. É que o dandismo da esquerda só se manifesta quando o maná do Leviatã despeja o dinheiro, extraído aos contribuintes, em instituições inúteis e estupidificantes. Talvez seja este o preço a pagar pela existência de uma democracia enviesada por complexos de esquerda.

publicado às 00:26

Vamos brincar à caridadezinha

por Samuel de Paiva Pires, em 02.12.12

Já não sei onde foi que li alguém que, citando a Bíblia, expunha um pensamento que subscrevo na íntegra: a caridade não é para se exibir, é para se fazer. E acrescento, com a caridade não se faz política, apesar de muitos insistirem em ir por aí. Mas gosto de ver várias pessoas satisfeitas consigo próprias por andarem a brincar à caridadezinha. Presumo que será pedir muito que se calem? Ou perguntar se não entendem como é ostensivo e ofensivo para muitos portugueses esse exibicionismo de um sentimento de satisfação por ajudarem os outros?  Como escreveu Camus, «Um homem é um homem mais pelas coisas que cala do que pelas que diz». E este exibicionismo é revelador quanto baste do pensamento de muitos. Pelo meio, muitos destes continuam a clamar pela destruição do Estado Social per se, sem qualificar aquilo a que se referem quando falam em Estado Social, esquecendo-se das raízes liberais e anti-socialistas do Estado Social. É que muitos adeptos da caridadezinha são também os que andam há décadas a aproveitar a "caridade" do Estado Social degenerado em Estado Socialista. Que façam bom proveito enquanto podem.

 

publicado às 18:17

Sempre o Estado Social

por João Pinto Bastos, em 11.11.12

 

Até Adriano Moreira caiu no logro imorredouro do Estado Social. Tenho a maior estima e respeito pelo antigo ministro do Ultramar, mas, sustentar que a eliminação do Estado Social da Constituição corresponde à eliminação do alicerce que servirá de base à construção do futuro é, convenhamos, um tanto ou quanto temerário. Cada vez mais me convenço que Marcelo Caetano deve estar, no interior da sua tumba, a rir-se a bandeiras despregadas dos despropósitos que os nossos venerandos senadores vêm proferindo sobre uma construção cuja autoria deveu-se, em grande medida, à sua fecunda imaginação. Afinal de contas foi ele o criador do conceito de Estado Social em solo nacional. Uma espécie de Bismarck português mal amado. Mal imaginava ele, nos idos anos 60, que a sua obra mais marcante acabaria por ser abastardada pela democracia.

publicado às 15:56

Separados à nascença

por Samuel de Paiva Pires, em 09.07.12

Passos Coelho equacionou ontem cortes na despesa pública com cortes na educação e saúde. Mais um PM a alinhar pela chantagem ao chamado Estado Social como forma de manter intocável o Estado Socialista. O último que fez o mesmo está a cursar filosofia em Paris. Ou de como este país não se endireita enquanto continuarmos a ser governados pelo bloco central de interesses.

publicado às 15:29

Hayek, PJ Harvey e a "Broken Britain"

por Samuel de Paiva Pires, em 20.03.12

 

(Sugestão musical para acompanhar a leitura deste texto)

 

Inspirado pelo meu post, o Filipe Faria escreveu um excelente texto, cuja leitura é indispensável, em que ele, como bom português à solta, observando directamente a realidade britânica contemporânea, onde o multiculturalismo coloca em risco as tradições culturais e políticas da Inglaterra, nos revela, entre várias ideias, esta: "Conhecendo bem a realidade de ambos os países, neste momento arrisco dizer que Portugal usufrui de uma maior liberdade de expressão."

 

Neste texto, o Filipe coloca em causa a defesa da democracia por Hayek, que se insere na tradição anglo-saxónica do liberalismo clássico, como forma de limitar o governo, consubstanciada na observação que faz do que se passa no Reino Unido. Mas Hayek estava alerta para os perigos advindos da miragem da justiça social (e do alargamento dos poderes do estado ao abrigo deste, como fiz notar no ponto 4 do meu post "Equívocos a respeito do liberalismo"), das coligações de interesses organizados que negoceiam com e sustentam os partidos políticos, e do positivismo legalista - que confunde a lei (Direito Natural) com legislação, em detrimento da primeira -, cujos efeitos combinados denomina por perversão democrática.

 

Assim como estão vários autores britânicos, como John Gray e Roger Scruton, que entre o liberalismo e o conservadorismo, com destaque para a inspiração em Hayek e Oakeshott, alertam para os perigos destas acepções modernas. Permitindo-me fazer corresponder a ordem espontânea de Hayek à civil association de Oakeshott, e a ordem de organização à enterprise association, e sabendo que os elementos dos dois tipos de ordem ou de associação se misturam na prática, podendo ser encontrados em vários estados, torna-se útil salientar que para Oakeshott a civil association não necessita de ser culturalmente homogénea mas apenas respeitar a lei acima da identidade cultural, ou seja, a comunidade deverá fundamentar-se no respeito a princípios abstractos e formais. Acontece que, segundo Gray, esta acepção kantiana é profundamente questionável e um calcanhar de Aquiles para o liberalismo e para o conservadorismo. A História recente mostra como é difícil que o estado sustente a sua autoridade apenas sob concepções de lei formais, abstractas e processuais, que assim se torna fragmentada e fraca. Esta ideia surgiu numa altura em que a identidade cultural era dada como garantida, quer por Kant quer pelos Founding Fathers americanos, sendo a identidade em causa a da Cristandade Europeia. Com o Iluminismo francês, a Revolução Francesa e a fragmentação desta identidade, tornou-se mais fraca a autoridade do estado com base em concepções abstractas (veja-se precisamente o caso do Reino Unido, com comunidades muçulmanas que desafiam constantemente o estado e rejeitam as normas tácitas de tolerância características dos britânicos, ou ainda o caso dos EUA, em que uma horda de minorias vai progressivamente tornando o estado cativo, tendo apenas o legalismo a uni-las)[1]. Roger Scruton assinala esta fraqueza e os seus reflexos práticos sob a denominação de falácia da agregação, em que dando o exemplo do Reino Unido evidencia como o multiculturalismo e o Estado Social se combinam de uma forma que é potencialmente destrutiva para a comunidade[2]. E também Hayek faz notar que a modernidade produziu um enquadramento que é altamente destrutivo das tradições intelectuais e morais europeias, que através do racionalismo construtivista e do relativismo produz morais inviáveis, ou seja, sistemas de pensamento moral incapazes de sustentar qualquer ordem social estável, que através de teorizações sociológicas contemporâneas e da corrupção da arquitectura e das artes (como Scruton e Gray demonstram) criam um clima cultural que é profundamente hostil à tradição e também à sua própria existência. Confrontamo-nos, assim, com uma cultura que tem ódio à sua própria identidade, tornando-se, em larga medida, efémera e provisória.[3]

 

Inspirados pelo Projecto Iluminista, os autores modernos e pós-modernos desenvolveram um caos moral, em que o abuso da razão, o objectivismo e o relativismo criaram um ambiente cultural, social e intelectual que é inimigo da tradição. Ao proporem ancorar a moralidade no racionalismo, o positivismo, o cientismo, o historicismo e o cepticismo conduziram naturalmente ao niilismo, construtivismo e planeamento social, e, consequentemente, ao utilitarismo e emotivismo. A rejeição de qualquer tipo de instituição ou código de comportamento que não seja racionalmente justificado parece ser uma característica distintiva da modernidade[4], o que talvez possa ajudar a explicar o que se passa no Reino Unido, já que os costumes britânicos são completamente postos em causa por este quadro.

 

Por outro lado, esta discussão relembrou-me um texto que escrevi por altura dos motins em Inglaterra em Agosto de 2011, e de várias discussões que surgiram na blogosfera sobre estes, em que às tantas o Bruno Garschagen colocou uma hipótese que me parece particularmente útil recuperar, e que vai no sentido do pensamento de Scruton a que aludi acima: Os criminosos de Londres são filhos do Welfare State e do multiculturalismo? Não se encontrará aqui também parte da explicação para o que se passa em Inglaterra? E mais, daqui lanço o repto ao caríssimo Filipe, caso ache(s) por bem, de elaborar(es) sobre algo que conhece(s) muito bem (ao contrário de mim), a Escola de Frankfurt, que em larga medida se faz sentir na academia britânica, e de nos ajudar(es) a perceber se e de que forma as ideias desta não são também em grande parte responsáveis por este ambiente.

 

Só para finalizar, quanto a Hayek, este propôs uma reforma das instituições democráticas em Law, Legislation and Liberty. Para além de demonstrar a vacuidade do conceito de justiça social, para tentar recuperar e/ou evitar a confusão entre lei e legislação e os efeitos nefastos do positivismo legalista, propõe que os parlamentos sejam compostos por duas câmaras, em que uma trataria da lei (as regras de justa conduta da ordem espontânea, descobertas e em linha com a opinião pública), e outra da legislação (correspondente aos comandos específicos da ordem de organização, ou seja, à noção de vontade), o que seria complementado por um Tribunal Constitucional que teria como missão evitar a confusão entre lei e legislação, para que as duas assembleias não entrem em conflito relativamente às suas respectivas competências. Até que ponto isto será praticável, não sei. Mas fica a sugestão.



[1] John Gray, “Oakeshott as a liberal”, in John Gray, Gray’s Anatomy, Londres, Penguin Books, 2009, pp. 83-84.

[2] Roger Scruton, As Vantagens do Pessismismo, Lisboa, Quetzal, 2011, pp. 151-163.

[3] John Gray, “Hayek as a Conservative”, in John Gray, Gray’s Anatomy, op. cit., p. 131.

[4] Edward Feser, “Hayek on Tradition”, in Journal of Libertarian Studies, Vol. 17, No. 1, 2003, p. 17.

publicado às 21:52

Não é preciso ser uma águia

por Eduardo F., em 25.01.12
para antecipar o triplo desastre que resultará da extensão da escolaridade obrigatória até aos 18 anos de idade. Primeiro: "enjaular" criaturas em salas contra a sua vontade para nada aprenderem e tentarem que os outros nada aprendam é, no mínimo, idiota e talvez mesmo criminoso. Segundo: protelar ainda mais as já de si parcas possibilidades de quem queira entrar no mercado de trabalho, mesmo que mal remunerado, ganhando autonomia para daí desenvolver a sua cidadania, é criminoso. Terceiro: transformar em delinquentes todos aqueles que venham a escolher, livremente, não ir à escola é uma enormidade própria de pietistas e puritanos, uma grave  violação da liberdade.

publicado às 00:39






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