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Estávamos em 1983, na fase final da Guerra Fria. Não costumo falar das minhas experiências, mas neste caso abrirei uma excepção. Fui convidado pelo então deputado Borges de Carvalho, para participar num seminário da NATO a realizar-se em Pont-à-Mousson, nas cercanias de Nancy, numa abadia magnífica e adaptada para este tipo de encontros. Um serviço onde a gastronomia e civilidade francesa era acompanhada por um horário de trabalho intenso com professores e militares provenientes de alguns dos países-membro da coligação ocidental. Como colegas portugueses tive um sobrinho do presidente da A.R. de então e o actual primeiro-ministro António Costa.
Naquele momento a NATO encontrava-se sob esmagadora pressão militar, política e mediática após uma fase de refluxo da presença do ocidente em todo o mundo, perda de influência à qual não foi estranha a derrota americana no Vietname e mais importante ainda, como então sublinhei a quem pacientemente quis ouvir-me, a catastrófica perda de todas as possessões de um dos países fundadores da Aliança Atlântica, deixando assim oaqueles que deveriam ter sido os interesses euro-americanos perigosamente fragilizados nas vias de acesso do grande comércio internacional marítimo, para além da evidente segurança militar que a existência de portos, costas e ilhas amigas representavam. Abertamente o afirmei a quem do outro lado do Atlântico ali chegou para um misto de doutrinação, aulas e talvez prospecção de futuros quadros de confiança. Nunca mais fui convidado para coisa alguma e muitos anos mais tarde percebi o porquê, mea culpa, quando os outros dois portugueses, então muito mais parcos nas palavras, bem depressa chegaram aos lugares que pretenderam. Nestas reuniões aparentemente procuravam alguns yes, Sir! e a minha personalidade não lhes pareceu cumprir este requisito.
O que lhes terei dito que tenha soado tão mal aos seus ouvidos?
Começando por criticar rispidamente toda a política norte-americana quanto ao seu relacionamento institucional com um aliado formal como era, sempre foi e é Portugal, foi em silêncio que escutaram a minha longa lista de protestos plenamente justificados com números e factos e sempre em termos comparativos com as outras prioridades internacionais das administrações que teoricamente se sucederam na Casa Branca. A posição dos EUA na Indochina, os erros crassos, quando não abusos descarados, na relação americana com todos os países da zona, confirmando o fetiche soviético pelo dominó; o disparatado boicote do esforço de guerra português na guerra em África, precisamente em três frentes onde o ocidente poderia ter feito a diferença; o estranho caso da quase gratuita Base das Lajes, sempre em comparação com o despejar de biliões de dólares para sempre irremediavelmente perdidos em Subic Bay e Cam Rahn; a total falta de informações relevantes, obrigatoriamente no âmbito da aliança a fornecer a Portugal e bem pelo contrário, a passagem delas para o campo adversário por intermediários vizinhos dos portugueses.
Em algumas conversas fora das salas, dois dos militares então presentes concordaram com praticamente tudo o que lhes dissera e encolhendo os ombros - não encontro imagem mais apropriada - disseram-me que não podiam corrigir o mal já feito e ultrapassado em quase uma década. O pior é que estes reconhecidos erros terão durado o tempo suficiente para serem corrigidos ou minorados, atendendo à evolução claramente negativa do conflito na Indochina e a duas consecutivas guerras no Médio Oriente, onde Israel em 1973 seria salvo in extremis, mercê de uma massiva ponte aérea na qual os Açores jogaram uma parte muito relevante, sem que por isso Washington sequer aconselhasse o seu preferencial aliado a moderar a retórica anti-portuguesa nas Nações Unidas. Retorquiu um deles que para o Pentágono, Portugal apenas era uma landing beach a saturar com bombas e mísseis antes do desembarque dos G.I. Assim mesmo, a seco e um tanto ou quanto já sem paciência para a repetição do reconhecimento dos apontados erros.
Neste período cheio de incertezas, a Base das Lajes vai sendo notícia de forma discreta, não procurando - e bem - as autoridades de Lisboa agitar oceanos que apenas poderão muito prejudicar o nosso país no seu todo territorial. Tem alguém a mais pequena dúvida disso? A viagem de Costa à China não serviu apenas para o estreitamento de relações comerciais luso-chinesas, disso deveremos estar tão certos como o Sol despontar a leste todos os dias.
Existe um facto incontornável que pela sua perenidade de imediato deverá estar sempre presente a quem, seja quem for o partido que domine o poder em Lisboa, se encontre em qualquer tipo de negociações em relação à preciosa possessão portuguesa situada em pleno Atlântico norte: mesmo que os EUA retirem todo o pessoal que tem povoado a Base das Lajes, decerto Washington ali manterá um corneteiro e um soldado que ali diariamente hasteie a bandeira estrelada. Os símbolos conformam toda a importância que têm e neste caso, a Base é de facto um local privilegiado no preciso momento em que o alargamento do Canal do Panamá promete intensificar ainda mais as ligações marítimas do resto do mundo com a até hoje abastada Europa, agora, apesar da censura dos media, sob um ataque total proveniente do exterior. Poderão argumentar os portugueses e os seus hipotéticos convidados, venham eles de onde vierem, com intenções meramente científicas ou comerciais, mas deverão sempre ter em conta que os americanos jamais admitirão um único corneteiro, para além do seu, naquelas ilhas. Muito menos ainda, aviões, navios, blindados, mísseis, soldados ou técnicos militares que sequer de longe possam representar uma passagem de testemunho. Esta é a realpolitik com que temos de nos conformar e se são totalmente desejáveis e imprescindíveis as novas relações de comércio e troca de conhecimentos entre Portugal, a China, a Índia, a Rússia, o Brasil e até outros países europeus que connosco ainda participam na bastante incerta U.E., a questão da posse militar do arquipélago açoriano é um escolho imenso, intransponível. Para além da praticamente segura perda dos Açores, o nosso país não pode ser um alvo de qualquer tipo de campanha hate ou ter Lisboa a servir de alvo como foi Belgrado.
Hoje a NATO tal como existe é questionável, urge mesmo a sua rápida reforma após as colossais decepções decorrentes da queda do comunismo soviético. Há que avisar todos os nossos aliados acerca desta urgência incontornável e de preferência, numa reunião magna, diante do mundo.
Previa-se a anexação do território da zona soviética da Alemanha e a neutralização ao estilo finlandês dos países do Pacto de Varsóvia, outrora servos de Moscovo. Não foi isso o que aconteceu, para grande desilusão russa, preparada como estava para aceitar a retirada do território da RDA, mas que hoje vê com legítima inquietação a grotesca, aberrante tentativa de incluir a Ucrânia numa aliança que parece cada vez mais tentacular e devemos dizê-lo sem rebuços, unilateral e capa de desculpa para acções que apenas a um dos seus membros interessam. Muito legitimamente, os russos sentem-se ameaçados directamente e para isso bastará passarmos nós, os aliados ocidentais, as nossas vistas sobre a lista de bases ocidentais espalhadas de ocidente a leste e a sul da Rússia. Em política, a psique funciona e nalguns casos é mesmo um factor determinante.
A NATO surgiu com propósitos defensivos, até de garantia de progresso material e liberdade numa Europa destruída pela guerra e ódios seculares. Cumpriu plenamente o seu papel e obteve, graças à persistência e claras insuficiências e contradições internas do sistema soviético, uma vitória certamente esperada. Nos anos de 1989, 1990 e 1991 bateram-se palmas de alegria, cantaram-se hinos, unificou-se uma nação dividida arbitrariamente e num ápice desapareceram os Estados totalitários que oprimiam os próprios povos, mantendo-os numa abjecta sujeição a um suserano externo, fatalmente incompetente no que interessava - o conforto material, a liberdade de expressão e circulação - e brutalmente impiedoso.
Hoje começamos a ouvir ao longe o inconfundível rufar dos tambores da guerra. Num momento em que os russos nunca viajaram tanto, num momento em que os russos livremente lêem e escrevem tudo o que entendem, num momento em que os russos são uma sociedade de consumo muito exigente e valiosa para o conjunto europeu, num momento em que os russos investem, compram e viajam na Europa, estamos perante aquilo que durante os anos de chumbo que foi a Guerra Fria jamais sucedeu: a iminência de um conflito militar de larga escala, onde, queiram ou não queiram os mais optimistas, as armas nucleares serão usadas, mesmo que pontualmente. Não serão apenas utilizadas na Europa, mas também além Atlântico, ...precisamente onde mais lhes dói, segundo o dizer de um conhecido russo. A Síria será então um pretexto tão ínfimo como o Caso Gleiwitz.
Em 1939, o governo então presidido por Salazar encontrou-se perante o dilema de se situar entre a potência tutelar, o então enfraquecido Reino Unido que connosco fazia fronteiras na África e na Ásia e uma Alemanha plena de vigor e espírito expansionista. Salazar sabia que não podia quebrar com os ingleses como sempre prepotentes na chantagem sobre o nosso império e em simultâneo, também tinha a plena consciência do que poderia advir para Portugal ao antagonizar-se com o Reich.
Declarada a guerra a 3 de Setembro, o Presidente do Conselho foi à Assembleia Nacional e ali manifestou a fidelidade portuguesa à Velha Aliança e em simultâneo declarou a neutralidade. Pois é disso mesmo que os nossos aliados têm a imperiosa necessidade de recordar e que o então meu colega de três semanas, António Costa, hoje primeiro ministro, deverá, em caso de inopinada e impensável necessidade, integralmente copiar. Mesmo morrendo, salvaremos a face em relação aos poucos que ficarem para contar a história.
Contrariamente ao que muitos pretendiam, o caso ucraniano parece ter passado para um plano muito secundário nas preocupações da imensa maioria dos europeus. Sem de forma alguma questionar-se a independência da Ucrânia, a situação tem evoluído para um estado de ponto morto sem grandes avanços ou recuos por parte de qualquer um dos contendores. Esta é a situação que agora mais interessa ao Kremlin, para já assoberbado com problemas económicos e pressões das facções que se digladiam em torno de V. Putin.
No ocidente, poucos quiseram entender quais os limites que deveríamos impor à nossa Aliança no superior interesse da paz na Europa e na evidente necessidade de podermos contar com a colaboração russa noutras áreas geográficas que constituem a vizinhança próxima e ameaçadoramente instável, ou seja, todo o Magrebe, a zona do Suez e o Médio Oriente. De nada serviram as advertências passíveis de retirar de qualquer manual básico de história, fazendo-se pouco ou nenhum caso de eventos que para o bem e para o mal, continuam muito presentes na psique russa. A natural sugestão de uma finlandização da Ucrânia - ou seja, a progressiva adopção de uma economia e de um tipo de organização política do Estado - que a aproximasse da UE, em simultaneidade com uma certa neutralização que tranquilizaria Moscovo, foi loucamente ignorada no quadro dos principais decisores na Aliança Atlântica. Cometeram-se flagrantes erros, concederam-se demasiados incentivos ou informais garantias a responsáveis políticos como Sikorski - e inacreditável audiência à sua sempre enervada cônjuge em ambicionado tirocínio para a Secretaria de Estado -, num plano tal, que muitos apontaram de imediato um recôndito desejo de revisionismo de fronteiras. Tal será possível, mas apenas com o recurso ao desencadear de uma guerra muito diferente daquela que temos em Donetsk e Lugansk. É impossível encontrar qualquer consenso europeu para uma catástrofe desta dimensão.
A ninguém passa despercebida a evocação do período imediato a 1919, com tudo o que isso significa em termos de reordenamento territorial e demarcação de áreas de influência, quando não de reservada e ainda não ostensivamente declarada reivindicação de novas fronteiras. Parece ser avisado o recurso à tentativa de uma visão mais alargada deste problema artificialmente criado logo após a liquidação da aventura soviética, quando as fronteiras foram delineadas segundo o risco arbitrariamente imposto pelo caído regime de Lenine, Trotsky, Estaline, Kruschev e Brezhnev. Ficções que serviram para formalmente garantirem uma aparência de realidades nacionais nas Nações Unidas, foram herdadas por novos Estados internamente pouco coerentes e com situações económicas agravadas pela implosão daquilo que foi o frágil mercado interno soviético. O episódio da Crimeia, já consumado e sem retorno, é apenas o exemplo mais flagrante, podendo lobrigar-se outros na zona do Cáucaso ou nas imediações da fronteira romena. O cerne de toda a questão pode resumir-se ao alinhamento da vasta região que se chama Ucrânia - não se esquecendo a Moldávia - num dos potenciais blocos em presença, ou seja, a UE e apêndice NATO, ou o regresso à esfera de influência russa. Sabe-se que o Kremlin condescenderia com uma finlandização que até proporcionaria claras vantagens políticas e económicas, afastada que estaria a ameaça militar e a ofensa a patrióticos brios desde sempre cultivados pelos russos, seja qual for o regime vigente.
Na Europa, há quem tenha entendido serem os EUA o essencial elo - tem sido esta a realidade - que pode manter a pressão sobre Moscovo, conhecendo-se também a cada vez maior relutância de algumas potencias continentais - França, Alemanha e agora, ainda num plano secundário, a Polónia - no enveredar de uma declarada política de confronto directo que de antemão significa graves prejuízos para os interesses económicos e de segurança geral. Ao longo dos últimos vinte anos, os americanos têm-se paulatinamente distanciado dos assuntos europeus, apenas intervindo na ilusória esperança de poderem manter a omnipresença saída de 1945, com o recurso a avanços pontuais na criação ou resolução de crises na Europa balcânica e de leste. Apenas um exemplo? A crise jugoslava que se desenrolaria ao longo de anos e culminaria no Kosovo. Todos já percebemos serem outras as prioridades que a ascensão da China impõe, embora a zona de segurança próxima da Europa - Cáucaso e Médio Oriente - signifique algo mais que perímetros defensivos de índole meramente militar. A verdade é outra, verdade esta que não escapa a regra económica e o reordenamento do (des)equilíbriio de forças na região onde a Turquia e o Irão passaram a ser agentes activos e muito interessados. O reconhecimento disto? Após a catastrófica queda do regime do Xá Reza Pahlavi e o resvalar do Irão para a colecção de inimigos sagrados, temos a progressiva abertura da administração Obama a um relacionamento com Teerão, ao abjecto regime dos aiatolás, logo se seguindo outras aproximações entre as quais a de Portugal - um Estado naturalmente satélite de Washington - é apenas um, entre outros exemplos.
A crise do Euro e das dívidas soberanas, fez estremecer a já aparentemente consolidada relação de forças na Europa, com o bastante perceptível volver das atenções alemãs para leste, para a sua tradicional zona de influência forçosamente a partilhar com a Rússia fornecedora de matérias primas e de um mercado continental que ultrapassa a Sibéria e chega ao Mar do Sul da China. Apesar do patético e inútil alarido tablóide contra Merkel - imaginemos então o que seria, se em vez de Merkel tivéssemos um dirigente da categoria de Schmidt, por exemplo -, os alemães vão tentando manter a construção europeia que herdaram do período anterior à queda do Muro. Por muito que isto desagrade aos garimpeiros da mina da culpabilidade real ou imaginada, esta é a verdade. Contudo, os apressados alargamentos que consumaram a agora periclitante União, não foram de molde a conceder mais consistência ao mercado e muito menos ainda, à moeda única outrora insistentemente exigida por uma França aterrada pela reunificação da Alemanha. Atrás dos alemães que agora praticamente desarmados, não podem ser acusados de belicismo, estão praticamente todos os países da Europa central, do norte e do leste, todos eles interessados na tranquilidade e satus quo das fronteiras, ciosos pelo cuidar da economia e não descurando o fornecimento de matérias-primas onde a energia tem a parte de leão. A perspectiva de bons negócios para o longo prazo, dita a progressiva alteração das políticas daqueles Estados pertencentes a uma UE aparentemente em rápido processo de disfunção, sendo cada vez mais evidentes os interesses divergentes entre o norte e o sul, assim como entre o leste e o oeste.
O regime de Putin é avesso às conhecidas realidades políticas e sociais para cá do Óder? É, mas agora, pela primeira vez desde há cem anos, nunca os russos compraram e consumiram tanto, viajaram, leram, livremente viram e fizeram tanto teatro e cinema sem "licença do Partido". Sobretudo, estes russos investiram de tal forma, que dissiparam muitos dos receios quanto a invasões protagonizadas por tanques ou Spetsnaz caídos do céu. Putin obteve assim alguma condescendência na zona do Danúbio e talvez, nas margens do Egeu onde decerto poderá envidar esforços para um aumentar da sua influência em países onde a ortodoxia - no laicizado ocidente europeu, o factor religioso é escassamente considerado, um tremendo erro de cálculo dos decisores políticos - consiste num factor muito importante. Além de tudo isto, os europeus estão extremamente receosos daquilo que ocorre no norte de África e no Levante, conscientes do que hoje significam as importantes comunidades muçulmanas que sem qualquer dúvida, mantêm-se bastante silenciosas ou discretas quanto à condenação das barbaridades que quotidianamente nos chegam pelos noticiários. Se se trata de receio pela pressão moral e física de minorias activistas, ou de um resignado contentamento por aquilo que pode ser considerado como um certo revanchismo relativo ao bem patente naufrágio civilizacional do islão ao longo dos últimos seis séculos, isso não podemos garantir.
Putin apresenta-se a muitos como um aliado natural, tal como outrora o autocrata Nicolau II foi ansiosamente aguardado como o salvador militar - o mito do Rolo Compressor russo - da laica e republicana França de Poincaré, Clemenceau e Ribot. Sabe-se que o sucesso no Marne em boa parte se deveu à invasão da Prússia Oriental no verão de 1914, tal como o resultado de Verdun teve muito a ver com as operações russas na Galícia austríaca. Mais tarde, Estaline apresentar-se-ia a leste, como o mais plausível aliado das ultra-capitalistas potências anglo-saxónicas muito lestas no apagar das memórias sangrentas da implantação do regime soviético, das fomes induzidas e massacres conducentes ao Holodomor, das Grandes Purgas e do Pacto de 31 de Agosto de 1939. A lealdade ocidental para com a Polónia, não impediu o ocultar da conhecida verdade - desde 1943-44 - acerca de Katyn, um pequeno pormenor no vasto panorama oferecido pela gestão de interesses contraditórios entre as potências aliadas e o poderoso José Estaline.
Chegou ao fim, o já longo período de transição pós-Queda do Muro.
Pelos vistos, nesta Europa do início do século XXI, mais que nunca ameaçada interna e externamente, os russos bem depressa passarão a ser encarados como incontornáveis - desejados ou não desejados - parceiros. Aqui está o primeiro dado, aquele que sendo tão evidente, relevante e para alguns desagradável, parece contudo invisível para quem pretende manter a equação impossível: manter a hegemonia na Europa, dela se retirando e estabelecendo-se noutras paragens. O caso da Base das Lajes é neste contexto, apenas mais um entre inúmeros exemplos.
O presidente do governo regional açoriano quis jogar forte na audiência televisiva, sugerindo uma renegociação do acordo celebrado entre os Estados Unidos da América e Portugal - é esta, a ordem de apresentação do mesmo, há que dizê-lo - quanto à Base das Lajes. Contabilizemos então os equívocos do potentado regional:
1. Portugal não cedeu as facilidades de bom grado. Salazar era um estadista sempre desconfiado das intenções americanas quanto à Europa. Desconfiava da própria essência da organização interna e internacional que dava e dá pelo nome de EUA, assim como da sua génese e progressivo alargamento, talvez ainda tendo presente a Guerra de Cuba que aos espanhóis arrebatara a ilha caribenha, Porto Rico e as Filipinas. Desconfiava da forma como Washington via a posição da Europa no mundo. Desconfiava das intenções americanas quanto à soberania que potências europeias - Grã-Bretanha, França, Portugal e Países Baixos - exerciam na África, Ásia, Insulíndia e América.
Durante o período crítico em que decorria a Batalha pelo Atlântico, os Estados Maiores americano e britânico pressionavam os decisores políticos no sentido de eliminar-se aquilo que designavam de buraco do Atlântico, ou seja, aquela parte que correspondia à situação que a neutralidade portuguesa criava no vital centro de passagem dos comboios de reabastecimento que da América do Norte - EUA e Canadá - saíam em direcção às Ilhas Britânicas e União Soviética. Winston Churchill detestava Salazar, nele vendo alguém que ao contrário daquilo que já era consuetudinário na política do Foreign Office, não se deixava facilmente tutelar, principalmente quando desde o rescaldo da I Guerra Mundial, o Reino Unido passara para um indisfarçável segundo plano. Esta era uma situação que contrariava aquilo que Oliveira Salazar considerava desejável, pois no seu íntimo, a Grã-Bretanha significava não apenas um mal menor, mas também a estabilidade no inevitavelmente citado equilíbrio do poder na Europa e sobretudo, a segurança do património imperial português. Isto não significava a aceitação incondicional daquilo que durante séculos fora uma tutela internacionalmente reconhecida. Na Declaração de Guerra de 1916, o governo imperial alemão escrevera isso mesmo, ou seja, Portugal era um vassalo da Inglaterra e agira em conformidade no caso do apresamento dos navios alemães surtos nos nossos portos.
A evolução da situação na Europa alterara-se profundamente após o crash de 1929. A Itália afastou-se do núcleo forte dos Aliados vencedores, enquanto a ascensão de Hitler significara um exponencial aumento do poderio alemão no centro do continente. A consequente anexação da Áustria, dos Sudetas, a subordinação da Boémia-Morávia e a retrocessão de Memel, significaram uma clara alteração do mapa e o progressivo resvalar de toda a Europa central e de uma boa parte dos Balcãs para a órbita de Berlim. A isto, poderemos ainda acrescentar a vitória de Franco na guerra civil espanhola.
Estiveram previstas várias expedições que num golpe de mão se apoderassem dos arquipélagos portugueses dos Açores, Madeira e Cabo Vede, consolidando não apenas a presença anglo-saxónica no Atlântico Norte que garantia as comunicações com a Grã-Bretanha e a URSS, como a segurança de Gibraltar, Malta e toda a zona envolvente do Canal de Suez. Salazar resistiu até ao limite, talvez sendo informado do avolumar das pressões que a partir de 7 de Dezembro de 1941, também tiveram a decisiva contribuição da administração de Roosevelt. Aí estava o perigo maior que se avizinhava, aliás agravado com os ainda recentes acontecimentos em Timor, onde a uma ocupação australiana, rapidamente se sucedera a japonesa. Todos conhecemos qual o argumento de troca que Lisboa apresentou para a voluntária concessão da base: a devolução de Timor após a derrota do Japão.
As condições foram aceites - no início pareceram limitar-se à presença britânica, logo alargada à americana - e o pós-guerra não alteraria a situação. Por vários motivos bem conhecidos, ao regime interessou a rápida inclusão portuguesa na esfera de defesa liderada pelos americanos e assim foi Portugal convidado a ser um dos países fundadores da OTAN. A Base das Lajes passou então a teoricamente obedecer a um esquema defensivo mais vasto, quiçá solidário para com todos os restantes países componentes da Aliança. Este é o pressuposto da letra do tratado, quando de facto, as profundas alterações verificadas no Médio Oriente, criaram outras situações que totalmente escapariam ao controlo por parte do governo português, mesmo que este alguma vez fosse contactado para a tomada de qualquer decisão vital para o posicionamento nacional na própria ONU. Ao longo de trinta anos, a Base das Lajes valiosamente contribuiu para segurança e sobrevivência de Israel. Não será necessário contabilizarmos a intensa e decisiva ponte aérea durante a Guerra do Yom Kippur, para chegarmos a esta conclusão que não escapava aos decisores do Pentágono e aos seus adversários do Kremlin. Se Portugal obteve algumas vantagens pela carta branca forçosamente concedida aos EUA, essa é uma outra discussão possível, na qual também poderão desfiar-se os infortúnios ditados por boicotes, proibição da utilização de armas "da OTAN" - pertencentes na realidade a Portugal - nas frentes africanas, a quebra da solidariedade no próprio Atlântico Norte - guerra na Guiné e inclusão de Cabo Verde nas pretensões do PAIGCV, por exemplo -, além do inegável financiamento dos inimigos de Portugal, etc. Nada disto é contestável, corresponde a uma realidade apenas confirmada após os acontecimentos de Abril de 1974, quando sabemos que a invasão indonésia de Timor, apenas foi possível com o pleno acordo de Kissinger e G. Ford. Esta é a realpolitik a reconhecer, gostemos ou não gostemos do termo.
Concluindo este primeiro ponto, o governo regional açoriano deveria avaliar concretamente qual o verdadeiro poder soberano exercido por Lisboa sobre o arquipélago e em reflexo, quais as reais possibilidades de decisão do executivo de Ponta Delgada.
2. O presidente do governo regional aponta a necessidade de revisão do Acordo das Lajes. Mas em que termos? Questões do reequipamento das Forças Armadas, quando os tanques, blindados sobre rodas, navios da Armada e artilharia são provenientes de outros parceiros europeus? Em princípio, estamos todos de acordo, pois as profundas alterações na situação internacional verificadas com o fim da URSS, legitimam a pretensão. Outros exemplos também poderiam servir de argumento, como os autênticos caudais de gigantescos auxílios prestados pelos EUA às Filipinas - muita dessa ajuda volatilizada pela corrupção e indevida apropriação da mesma por conhecidas oligarquias -, compensando a utilização de Subic Bay, algo que jamais teve uma correspondência, por muito ténue que fosse, quando comparamos aquela realidade com as Lajes.
O problema volta a ser, aquele acima apontado, incontornável, e que se prende com o estatuto do nosso exercício da soberania.
Portugal exerce uma soberania limitada, há que reconhecê-lo e mesmo que neste caso contasse com a unânime solidariedade europeia, tal coisa não modificaria a específica situação dos Açores. Assim sendo, os americanos poderão até chegar ao ponto de deixarem nas Lajes um único representante que se limite ao quotidiano hastear e arrear da sua bandeira, sem que isso signifique uma substancial alteração do estatuto das ilhas, ou melhor, da Base.
3. A concessão das facilidades a outras potências.
Esta é uma ilusão oratória que apenas satisfaz aqueles que no confronto político à cata da popularidade fácil, não atendem à realidade tal como ela se apresenta. O valor das Lajes consiste única, exclusivamente, na sua capacidade de assistir militarmente quem desta base se sirva. O presidente regional acena com a hipótese chinesa, como se tal argumento fosse plausível para quem, no Pentágono, avalia constantemente as possibilidades de defesa e o poder exercido sobre aliados que sem dúvida, são muito secundários quanto à tomada de decisões, mesmo que esses aliados sejam potências como o Reino Unido, a França, a Alemanha ou a Espanha.
Uma estação comercial chinesa nos Açores? Como e porque razão tal se alvitra, sabendo-se do que representará para o comércio marítimo o alargamento do Canal do Panamá e a abertura de outra via similar nas suas imediações? Até Sines será um argumento mais credível para os ansiosos do mundo dos negócios. Que artifícios noticiosos encontrarão para o contentar da opinião pública? Uma estação meteorológica? É risível tal sugestão, pois sabemos que os EUA jamais permitirão uma utilização das Lajes por terceiras potências, mesmo aquelas que pertencendo à UE, nem por isso deixam de ser as acima apontadas parceiras muito secundárias no esquema mais vasto da defesa dos interesses americanos. A Europa é meramente instrumental, a evolução nos últimos vinte anos assim o confirma.
Embora fiquemos muito contrariados nos pátrios brios, é duvidoso vislumbrar-se outra situação nos Açores, senão o progressivo definhar daquela outrora essencial base. A verdade é que não temos qualquer força para podemos conceder facilidades a outros, pois aqueles que dela se serviram, jamais tal coisa adimitirão. Mesmo se fosse possível confirmar-se o valor de um entreposto comercial da zona, um acordo luso-chinês seria imediatamente vetado. Pior ainda, o potencial económico de toda a zona marítima envolvente, poderá significar um ainda maior controlo da nossa soberania que é, tal como acima se disse, bastante limitada.
Mesmo que por milagre conheça a sempre informalmente invocável Doutrina de Monroe no seu sentido mais lato, o presidente do governo regional açoriano sempre poderá dizer o que bem entender. Quanto ao fazer ou não fazer, essa já é outra história, decerto detestável, humilhante. Mesmo que o pretendessem, nem ele, Sr. vasco Cordeiro, nem Cavaco Silva, Soares, Sampaio, Durão Barroso, Passos Coelho, trezentos Guterres ou qualquer outro, poderão acalentar quaisquer veleidades quanto a este assunto. É este, o beco em que o nosso país há muito se encontra.
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Adenda: às 16.55h, saíu de Belém o Sr. Vasco Cordeiro, não sem antes ter falado à imprensa. Ou ainda não entendeu bem quais os limites dos poderes de decisão daquilo a que chama República Portuguesa, ou todas as suas palavras têm como destinatário o mediático fast-food do consumo interno. Estupefacto pela "forma como Portugal tem sido tratado neste caso", talvez pudesse consolar-se recorrendo à memória da história. A não ser assim, tudo o que possa dizer não passará de inconsequente wishful thinking.
1. Um ataque preventivo?
Foi com surpresa que nos primeiros dias da invasão de Junho de 1941, o Alto Comando da Wehrmacht foi recebendo relatórios da frente de combate, interessando-se especialmente pela quantidade de material destruído ou capturado ao Exército Vermelho. Centenas de milhar de homens aprisionados ou postos fora de combate, milhares de aviões abatidos ou pregados ao solo dos aeródromos militares, a inacreditável quantidade de peças de artilharia com que os alemães depararam e sobretudo, uma contabilidade final de perto de 17.000 veículos blindados que se amontoavam nas imediações da linha de demarcação estabelecida em Setembro de 1939, após a ocupação da Polónia por exércitos alemães e soviéticos.
Dispositivo dos exércitos alemães e soviéticos em 22 de Junho de 1941
A tradicional doutrina militar russa tem como norma a defesa em profundidade e desde os tempos de Pedro o Grande, esta foi uma constante repetida ao longo de mais de dois séculos. A campanha napoleónica conheceu o calcinante pó que em turbilhões fustigava os seus regimentos durante a longa e penosa caminhada em direcção a Moscovo, para logo depois ser essa poeira substituída por outros torvelinhos, desta vez gelados, mortíferos. Durante a Guerra da Crimeia os Aliados não fizeram grande figura, tendo os russos conseguido empastelar uma invasão em grande escala. Décadas depois, os exércitos do Czar Nicolau II, apesar da clara inferioridade material, puderam ceder todo o território que hoje pertence à Polónia, aos Países Bálticos e uma boa parte da Ucrânia, sem que isso significasse o colapso da essencial segunda frente que queiram ou não queiram reconhecer os Aliados ocidentais, foi determinante para o resultado final da guerra.
A frente sudeste em 21 de Junho de 1941
O que estaria então Estaline a preparar naquele distante ano de 1941? A concentração de efectivos de toda a ordem indiciava algo muito diferente de um dispositivo meramente defensivo, apesar de alguns poderem argumentar com a desorganização causada pelas Grandes Purgas que quase eliminaram a cúpula e o poder combativo do Exército Vermelho. Acreditar na inocência daquela gigantesca concentração de meios, seria cultivar o sonolento prazer de imaginarmos o Alto Comando soviético ter infantilmente errado no gizar do seu dispositivo guarda-fronteiras. Parece uma impossibilidade, verificados os acontecimentos no início do verão de 1941.
A história foi e ainda é naturalmente contada pelos vencedores da IIGM, mas não será absurdo considerar a hipótese de Estaline ter apenas sido ultrapassado pela belicosidade do Führer. De facto, a comoção pela fulminante queda da França e a rápida passagem de todo o espaço balcânico para o controlo do Eixo - não esquecendo o realinhamento da Hungria, Roménia e Bulgária com a Alemanha -, levou Estaline a considerar a guerra como inevitável e a concentração de meios nas fronteiras é o melhor indício da intenção de uma guerra preventiva, somando-se às suas declarações nos conciliábulos do governo soviético e nos discursos proferidos no abrigado secretismo do Comité Central do PCUS. A verdade é que Hitler surpreendeu o seu parceiro do Pacto de 23 de Agosto de 1941, enquanto o Vozd aguardava a consolidação do seu dispositivo ofensivo para o início das hostilidades. Pouco tempo antes, os oficiais soviéticos de visita ao Reich, com desagrado comentavam o equipamento blindado que os seus congéneres alemães apresentavam para vistoria, declarando estarem os oficiais do Panzer Amt a esconder os modelos mais recentes. Quando as fábricas russas já produziam grandes quantidades de blindados KV e T-34, a visão dos Panzer III e IV suscitavam a incredulidade, dada a notória inferioridade em relação ao equipamento que a URSS produzia em segredo. Para o oficialato russo, os seus congéneres alemães estavam a ser desleais. ocultando o que de mais valioso e moderno estavam a construir e a fornecer aos depósitos militares da Wehrmacht. Aquilo que os soviéticos tão bem sabiam fazer, claramente julgavam recíproco do outro lado da fronteira política e ideológica. Deste modo, muitos são os elementos que indiciam uma decisão soviética para um desencadear do conflito para um momento daquele mesmo ano de 41. A posição estratégica era de facto muito favorável, pois à posse da Ucrânia ocidental e de parte da Rússia Branca arrebatadas à Polónia, somava-se a clara vantagem obtida com a anexação dos três Países Bálticos, não podendo nós esquecer a Moldávia, anexada após um violento Ultimatum entregue em Bucareste. Se é hoje difícil imaginar-se o que teria resultado de um antecipado ataque russo a ocidente, não será abusivo considerarmos as dificuldades que teria causado aos alemães.
20-11-2014, Putin inaugura no Kremlin, a estátua homenageando Alexandre I. A mensagem é clara.
2. Uma fronteira de segurança?
Não existe hoje qualquer concentração militar que seja comparável à existente em 1941. Os meios e doutrinas militares são muito distintos, a tecnologia é outra e a situação política é, apesar dos recentes acontecimentos, de paz europeia. Serve este longo intróito para abordar o problema que para os militares e políticos russos é uma fronteira que consideram desadequada aos seus esquemas defensivos em profundidade. Se atendermos às realidades que as cartas geográficas agora comprovam, a Rússia encontra-se grosso modo, na situação em que o Tratado de Brest-Litovsk a deixou após a rendição bolchevista de 1918, com a agravante de agora ter no seu flanco sul, ameaças que seriam impensáveis há cem anos, às quais se acresce a poderosa China - actualmente um aliado de circunstância - e a miríade de países que de tão instáveis, são um elemento a considerar. Inevitavelmente, a Rússia consiste num claro objectivo do expansionismo doe extremismo islamita, ou por outras palavras, um assunto que a toda a Europa interessa.
É muito difícil imaginarmos hoje, uma concentração militar russa tão vasta e potente como aquela conseguida por Estaline na Primavera de 1941, ou a outra, por nós bem conhecida e que na Europa central se manteve até ao início dos anos 90 do século XX. É bem notório o estado de impreparação do exército russo para qualquer aventura de largo espectro, encontrando-se nestes dias numa fase de reorganização e reequipamento. Exército, marinha e força aérea são incomparavelmente inferiores aos correspondentes dos seus possíveis adversários norte-americanos e não sendo este um aspecto desconhecido ou desconsiderado pelos nossos aliados, talvez possa servir de justificação para muitas das atitudes que se têm sucedido nos últimos anos. É certa a suposição de na última década ter a Rússia investido muito na defesa anti-aérea, colocando em campo novos e sofisticados sistemas de mísseis que aparentemente poderiam contrabalançar a supremacia das forças aéreas da NATO, ou mais propriamente, a USAF. Isto não significa uma suficiente força dissuasora de um ataque vindo do ocidente. Não é descabida a ilusão perigosa de um conflito clássico sem a utilização de armas nucleares tácticas, sendo este um puro exercício de wishful thinking. As armas existem e serão utilizadas, mesmo que de forma limitada, num caso de desespero. Daí à escalada - mesmo que também limitada a alguns secundários alvos além-Atlântico - vai um passo que dependerá de qualquer imponderável. Qualquer diplomata russo declara-o sem qualquer pejo e não podemos contar com qualquer alegação de bluff, pois este é o pior cenário possível de apresentar aos países componentes da Aliança Atlântica. Por outro lado, o subir da parada ocidental vem assegurar indefinidamente a sobrevivência do governo de Putin, estando hoje todos os russos colocados perante a quase intimação de um Unconditional Surrender sem guerra, quase um émulo daquele outro saído da Conferência de Casablanca e que tão nefastos efeitos provocou no seio da oposição interna alemã. Má política, ignorância crassa, ignóbil arrogância e sobretudo, péssima propaganda engendrada e difundida urbi et orbi pelo nosso próprio campo.
As colossais e desastrosas derrotas em Minsk, Brest, Smolensk, Kiev/Briansk-Viazma e a certeza dos Panzer a pouco mais de 30Km de Moscovo, eis o inesquecível legado daqueles meses de 1941. É esta uma obsessão dos militares e políticos russos. Se a independência dos Países Bálticos pode para muitos russos ter sido considerada como inevitável e até aceitável, a perda da Ucrânia e de metade do Cáucaso consistiu num desastre que apenas poderia ser limitado, se aqueles territórios fossem pelo menos neutralizados. Parece ser esta última, a posição que um antigo secretário de Estado da dimensão de Kissinger, queria apontar como apropriada a uma política ditada pela consideração das realidades. A psicologia também deverá ser indissociável da condução dos negócios públicos e nisto os russos não fogem à regra. Tem sido clara a apresentação de argumentos tendentes a confirmar a suposição de insegurançarussa , nisto copiando-se num arremedo de interpretação a própria da Doutrina de Monroe, algo que há mais de um século os nossos aliados correctamente têm apresentado em relação ao chamado hemisfério ocidental. Um caso? O dos Mísseis de Cuba, ao qual e com alguma boa vontade poderemos juntar Granada e a Nicarágua-Contras. Se a isto somarmos o orgulho ferido de uma superpotência que jamais o deixou de ser - nem que pelo argumento da sua dimensão, posição geográfica, amontoado de recursos económicos e poder militar -, temos então um quadro bastante completo que na sua complexidade, deverá ser cuidadosamente encarado pelos potenciais adversários. Ao longo de décadas, o ocidente tem fornecido aos russos todos os argumentos que hoje prodigamente utilizam em benefício da sua aparentemente errática política externa. Não é errática, é intencional e mais a ocidente, a Alemanha sabe-o. Pior ainda, a nossa própria actividade em certas áreas do globo, parece contradizer os interesses ocidentais quando considerados a longo prazo. Isto é tão válido para o âmbito europeu, como para as zonas mais próximas dos países integrantes da NATO, como o Médio Oriente, o Mediterrâneo Oriental e o norte de África. Avoluma-se a suspeita da intenção de um indefinido alastrar da Aliança Atlântica que hoje em dia, consultando os seus componentes, deixou de justificar o nome com que foi baptizada em 1949. A certeza que fica, é a de um expansionismo ilimitado sob a condução dos EUA. Mesmo que esta seja uma falácia que com algum esforço poderá ser eliminada com argumentos mais ou menos poderosos, a sensação geral é mesmo essa, servindo os aliados europeus como simples instrumentos justificativos do claro unilateralismo que do outro lado, Putin aproveita para denunciar. Os ostensiva e deliberadamente mal armados alemães, outrora firmes aliados dos EUA, parecem cada vez menos dispostos a consentir numa política geral que lhes parece perigosamente irreflectida, principalmente quando é dada uma crescente e demasiadamente audível voz a países ainda bastante traumatizados pela ocupação e controlo soviético decorrente da divisão do mundo - aliás consentida, quando não claramente patrocinada pelos EUA em Teerão, Ialta e Potsdam - consagrada em 1945. Assim, Berlim tem-nos servido aquilo que mais lhe convém, ou seja, um sistemático duche escocês em que no final, o frio tenderá a preponderar. Digam o que entenderem dizer os especialistas nestas matérias, os haushoferianos continuam bem activos e há que contar com eles. A situação na Hungria - onde previsivelmente ocorrerão aquele tipo de espontaneidades que já vimos em Kiev -, na Bulgária e na claramente pró-russa Sérvia, demonstram claras fissuras na Europa central e oriental. Como será então possível colmatá-las, essa é uma questão que carece de resposta. Bem feitas as contas e chegada a hora H, talvez poucos estarão dispostos a alinhar numa aventura com as consequências que antevemos. Talvez restem a Polónia, os Bálticos e o por enquanto indefectível Reino Unido. A tradicionalmente cínica e calculista política externa norte-americana, tem perfeitas correspondentes nas suas homologas europeias, sobejamente treinadas por muitos séculos onde as rivalidades entre os estados engendravam alianças que logo se desfaziam consoante a oportunidade de cada momento. Em matéria de cinismo, estamos então entre iguais, quanto a isso não cultivem os nossos aliados e os nossos potenciais adversários, qualquer tipo de ilusões.
3. Até onde poderemos expandir a NATO?
Será hoje a NATO a mesma organização que desde o seu nascimento em 1949, passou quatro longas e penosas décadas de progressiva consolidação, para logo depois se expandir em direcção ao subitamente escalavrado núcleo do seu temível adversário do leste? Não, não é. O interesse de segurança de países tão diferentes como o Reino Unido, a França, a Alemanha ou mesmo Portugal, não corresponderá por estes dias, exactamente àquele existente durante o prolongado período do pós-guerra. Liquidado o sovietismo e afastadas as dezenas de milhar de tanques russos concentrados entre o Báltico e os Sudetas, a percepção dos perigos é outra e as mais facilmente identificáveis ameaças situam-se noutro âmbito geográfico, fora da Europa.
Acreditem ou não os observadores ocidentais, os russos de 2014 são incomparavelmente mais livres do que aquela massa bisonha e amorfa dos anos de decadência do concentracionário e despótico regime de Brezhnev e dos seus ineptos sucessores. Os russos lêem, viajam, compram, organizam-se e contestam como (ainda) podem. Parece bastante evidente a aprovação em larga medida, da política do Kremlin que à maioria se apresenta como de segurança nacional. O apelo de Putin é hoje tão válido como o discurso de Nicolau II em 1914, ou a evocação de Suvorov e Kutuzov que no Outono de 1941, o desesperado José Estaline ousou fazer do alto do Mausoléu de Lenine. Não será um disparate considerarmos a veracidade dos números que indicam um claro apoio conferido à autoridade de Putin, pois apesar do desagrado pela omnipotência da oligarquia e pelas evidentes disparidades verificadas na sociedade, o sentimento popular relativo aos grandes interesses da Rússia imperial, permanecem tão sólidos como aqueles existentes precisamente há cem anos, quando a expensas da segurança do seu trono e das dilatadas fronteiras do seu império, o Czar rapidamente se decidiu pela Entente. Se os norte-americanos e os seus incondicionais não conseguem entender os factos, então a situação poderá tornar-se extremamente perigosa e isto mesmo os porta-vozes do Kremlin não se coíbem de afirmar, sem sequer um pestanejar que denuncie hesitação. O valetudinário Kissinger dos grandes erros e abusos dos anos setenta - o golpe chinês é uma outra história -, parece estar muito lúcido, intelectualmente amesquinhando aqueles que nas chancelarias dos negócios estrangeiros ocidentais, teimam em permanecer em negação perante todas as evidências.
Até onde pretenderão estender a NATO? À Finlândia sobranceira a S. Petersburgo? Às teimosamente neutrais Suécia, Áustria e Suíça? À Arménia e Geórgia? Ao Chipre, Israel e Jordânia? Com muito mais propriedade, porque não a Marrocos, um país porta de entrada no Mediterrâneo, no Atlântico Norte e fundamental para segurança do flanco sul?
Em suma, ao ocidente poderia convir um final delinear dos limites securitários a que se propõe - precisamente aquilo que também se exige a Putin, ou melhor, à Rússia -, talvez não fugindo ao traçado ocidental das antigas fronteiras europeias da URSS de 1938 - ou o chamado Cordão Sanitário do período de entre-as-guerras -, neste âmbito podendo-se até incluir uma Ucrânia neutralizada. Contudo, para profundo descontentamento dos russos e de cada vez mais europeus preocupados com aventureirismos e jactâncias sem sentido, não é esta a nossa politica geral, insistindo-se no querermos mais, mais e cada vez mais.
Pagaremos bem cara a irreflexão, pois inevitavelmente abrir-se-ão insanáveis brechas na sempre desejável Aliança Atlântica. A quem atribuir então a responsabilidade? A resposta parece bastante óbvia.
Andamos todos amnésicos de uma história que a maioria dos actualmente vivos não conheceu, mas sem dúvida bastante documentada e à disposição da sua descoberta por quem nela se interessar. Se o pós-II Guerra Mundial foi registado por milhares de documentários para sempre testemunhando a miséria e o sofrimento, imaginemos então o que seríamos forçados a passar, no caso de sobrevivermos, após um conflito entre os EUA e a Rússia.
Nestas danças da chuva que em tan-tans e círculos anuncia a mobilização, há que recorrer a expressões em inglês, pois consiste numa boa forma de vincarmos bem a urgência da situação. Por muito que tentemos resistir ao patético sacrifício, este é o mundo em que vivemos.
Ninguém conhece concretamente quais os objectivos russos, pois a queda da União Soviética implicou a rápida desagregação do império construído pelos Romanov e ciosamente conservado pelos seus sucessores do PCUS. O estabelecimento da Comunidade de Estados Independentes, poderá ter parecido como um anúncio de uma correspondente russa da Doutrina de Monroe, mas a realidade da volátil política internacional nos anos noventa, bem depressa implicou o total ignorar dessa clara delimitação de uma esfera de interessas. Logo foram surgindo bases aliadas em territórios outrora integrantes do império russo-soviético, assim como convites endereçados a alguns dos novos Estados - algo até agora sem efeito -, fazendo-os crer nas inegáveis vantagens de pertença à NATO. Conhecem-se bem as dificuldades vividas na Rússia pós-comunista, também não sendo estranhas as notícias acerca da crescente frustração local perante o ostensivo desprezar dos seus interesses, por parte de um ocidente que inicialmente se apresentava como um horizonte de esperança. Não valerá a pena repetirmos a longa lista de eventos que progressivamente foram separando os parceiros do desanuviamento, hoje em quase aberta hostilidade.
No verão de 1939, o ministro Ciano visitou o seu homólogo alemão. Ribbentrop recebeu-o em casa e numa conversa no jardim, o italiano, confundido pelas evasivas e manobras de diversão do seu colega, perguntou-lhe frontalmente:
- Mas afinal o que querem vocês? O Corredor? Dantzig?
Olhando-o friamente, Ribbentrop foi lapidar:
- Wir wollen den Krieg!
O governo do Reich queria a guerra e não se contentaria com qualquer reedição de Munique. Um ano antes, Mussolini tinha impedido Hitler de atacar a Checoslováquia e tal contratempo não se repetiria.
A quem se aplica hoje a expressarão Wir wollen den Krieg? A John Kerry, a Sergei Lavrov ou a ambos? Se esta suposição poderá ser abusiva e anacronicamente transportada para os nossos dias, ficamos tão confundidos como o ministro dos Negócios Estrangeiros da Itália, não sabendo apontar o dedo a quem verdadeiramente pretenderá despoletar um conflito. Os sinais parecem de difícil destrinça e o subir da parada uma constante, aplicando-se tanto a americanos como aos russos. Além de serem conhecidas as dificuldades internas que Putin parece estar a enfrentar - cercado por falcões ao estilo de Jirinovski e correspondentes relíquias do infelizmente mal-soterrado passado comunista -, também teremos então de atender ao democrático rufar de tambores cujo eco nos chega do lado de lá do Atlântico. Passando sobre o grotesco de certas pretensões que visavam transformar Sebastopol numa espécie de Subic Bay do Mar Negro, a verdade é que ainda poucos de nós entenderam até onde os nossos aliados pretendem chegar, quando anunciam a colocação de forças militares num possível cenário de conflito, a tal deterrence force da salvação. Ninguém acredita na eficácia da criação de um dispositivo militar na Polónia, um dos países da NATO, pois tal exercício de segurança seria naturalmente encarado pelo possível contendor. Algo de muito diferente será a presença de forças militares da Aliança dentro do próprio território ucraniano, seja essa presença devida a um súbito impulso justificado por garantias a caridosamente concedermos - sim, somos aliados na NATO -, seja ela decorrente de um daqueles habituais pedidos de assistência hipoteticamente enviados a partir de Kiev. Se querem a guerra, então esta é a melhor forma de a obterem: coloquem tanques, soldados, canhões, mísseis e aviões na Ucrânia e de preferência, utilizem-nos nos combates contra os rebeldes.
Há quem pense poder iniciar um conflito de forma controlada, nem por isso temendo o epíteto de warmonger. É praticamente inevitável o rápido descambar para uma escalada envolvendo armamente táctico nuclear, relegando as trocas de granadas entre os Abrahms e os T-90, para a condição de algo bastante irrisório, previsível e rotineiro. Mesmo sendo esta uma infeliz eventualidade talvez já considerada pela gente do Pentágono e do correspondente edifício ministerial russo, há sempre que contarmos com a esperança do lamentável incidente se circunscrever ao espaço europeu, deixando a parte mais importante da aliança fora do raio de acção retaliatório. Por muito pueril que tal coisa nos possa parecer, é mesmo um wishful thinking despreocupadamente cultivado. Aparentemente, a Sra. Palin pode hoje ser considerada como uma genial visionária digna de todos os encómios. Dadas as circunstâncias, a dita personagem poderia mesmo ser a directa candidata a sucessora republicana de Obama. Para os mais entusiastas pelo início de uma Operação Barbarossa 2, o actual mapa proporciona-lhes o ponto de partida numa frente tal como ela surgia nos inícios de 1943. Dali a Kursk, é apenas um salto.
Não é necessário ou desejável qualquer mútuo appeasement, mas tão só o conhecimento de quais os limites pretendidos por russos e americanos. Quem hoje poderá indicá-los de forma concreta e credível? Ninguém. Quanto aos europeus que aparentemente beneficiaram do estiolar dos seus deveres de auto-defesa, russos e americanos arriscam-se seriamente a não encontrarem simpatizantes ou alinhados numa Europa sumamente preocupada consigo própria e por aquilo que vai acontecendo a sul.
Já não estamos nos tempos do "Yes, Sir!"
O anúncio da ordem de trabalhos da Cimeira da NATO, parece privilegiar os casos afegão e ucraniano, ambos passíveis de rápida secundarização quando comparados com o problema maior para o Ocidente, precisamente aquele que nos chega às portas de casa, no Médio Oriente. Ontem foi a vez do regime de Putin ser directamente visado, enquanto a ameaça dirige-se também, via Zawahiri, à Índia. Provavelmente iludidos pelo inebriar da omnipresença na abertura dos noticiários, os radicais estão a erigir uma até agora imprevista coligação internacional que num ápice poderia congraçar potências desavindas. O inestimável serviço prestado ao Ocidente - para eles a Rússia também faz parte do inimigo -, é talvez fruto das grandes esperanças depositadas nos até agora condescendentes sistemas jurídicos europeus, sempre lestos nas garantias conducentes ao laissez-faire e à impunidade de meliantes dos mais variados tipos.
Cameron disse algo que decerto será contestado nas instâncias que vigiam o Estado de Direito, como se este não se encontrasse em causa pela intervenção despudorada daqueles que nele se resguardam. O primeiro-ministro britânico deveria ser obrigatoriamente secundado por todos os seus pares da Aliança Atlântica, numa clara manifestação de solidariedade que sirva de mensagem enviada urbi et orbi. É mesmo este o dilema em que nos encontramos e que para Al Qaeda - o ""califado" não passa de um elo da mesma cadeia - consiste num trunfo que não hesita em manobrar a seu bel prazer. Conta para isso com os prestimosos serviços de uma boa parte da esquerda europeia ferozmente anti-ocidental, precisamente aquele pendor suicidário que encontra no Cavalo de Tróia o eterno exemplo por todos facilmente identificável. Embora seja este um tema passível de apressadas interpretações conducentes às ladainhas da discriminação, os dirigentes da subversão contam ainda com a chantagem emocional exercida sobre as comunidades formalmente muçulmanas existentes em numerosos países europeus. Num misto de despeito histórico pelos há séculos extintos fulgores de Bagdade e de Córdova, os rancores decorrentes do passado colonial e a progressiva ruptura das políticas de integração - aliás rejeitadas por amplos sectores daqueles que deveriam ser os principais interessados nas mesmas -, estas comunidades poderão a breve prazo assistir ao desencadear de um processo de intensa propaganda veiculada pelos radicais, na própria Europa designando um terreno arável pela jihad.
Deveria ser este o assunto principal a tratar pelos parceiros da NATO, desde já aproveitando-se a oportunidade de estender o diálogo ao Kremlin, à Ucrânia e porque não?, aos agora directamente ameaçados indianos. Por muito pueris que possam parecer estas inciativas, não deixariam, contudo, de significar o início de algo que preencheria o vazio, ou pior ainda, o atoleiro em que o Ocidente se encontra.
O "outro lado" tem um longo historial de mentiras, abusos, negação ou incumprimento de tratados e reserva mental? É verdade, não se trata de uma suposição ou de mera propaganda alardeada pelo negregado imperialismo. No entanto, uma mais moderada recíprocidade existe, desde os tempos em que alegámos a existência de armas de destruição maciça - nunca encontradas, mas decerto transportadas para jamais vislumbradas grutas da Ali Babá -, até ao engenhoso encontrar de inimigos perversos pelos Pulitzer e Hearst do nosso mundo, os capazes de tudo para a obtenção não se sabe de qual fim.
A mensagem deve ser nítida, sem a menor possibilidade de duvidosas interpretações. Não poderá ficar a impressão de um mero regresso ao bandoleirismo internacional um dia enunciado por Theodore Roosevel: "dou as boas-vindas a qualquer guerra, porque acho que este país necessita de uma".
Não, desta vez não pode ser desta forma.
A mensagem que passa para a generalidade da receosa opinião pública ocidental, apenas indica algo de muito embaraçoso: desespero.
Num ápice, os guerreiros curdos passaram a ser uma das rações de emergência a tomar por quem se sente ameaçado pelo pretenso califado. E quem tem então essa sensação de insegurança? Todos, desde Assad aos governantes de Bagdade, seguindo-se-lhes o rei Abdalá, o rei Abdulá, os EUA, toda a Europa e talvez, Israel.
Nos Estados Unidos da América, é praticamente consuetudinária uma expressão que indica um programa tendente à obtenção da vitória: Peace on Earth. Quem queira um dia sentar-se no cadeirão da Sala Oval ou no trono de Miss USA, infalivelmente a pronunciará.
O Prémio Nobel da Paz, o Sr. Obama, não julga oportuna a deslocação de forças de combate para o prolongamento daquilo que foi a campanha do Iraque. Queiramos ou não queiramos aceitar este facto, os actuais acontecimentos são indissociáveis daqueles ocorridos há uma década. Britânicos - os verdadeiros e não os Omar, Karim e Moamedes das notícias trágicas -, os alemães, australianos e outros, declaram todo o interesse no envio de armas aos até agora incipientes peshmergas. A ser assim, apenas duas questões:
1. Conhecendo-se a até agora férrea oposição turca - e Síria e iraniana - a qualquer concessão ao grupo curdo que ameaça as fronteiras gizadas após a queda do Império Otomano, como reagirá Ancara - ou melhor dizendo, os seus militares - a este súbito e desvelado amor aos combatentes curdos? Não temerão a repetição dos iniciais entusiasmos pelos mujahedin dos tempos da guerra russo-afegã?
2. Uma hipotética vitória curda, mesmo que poderosamente apoiada pelo Ocidente, não poderá deixar de ter reflexos políticos em termos de organização territorial, ou seja, o fim da sagrada intangibilidade das fronteiras.
A proclamação da independência do Curdistão iraquiano será algo de pacífico para a Turquia, Irão, Síria e para a própria ficção que hoje é o Iraque?
À primeira vista, a ingrata solução apenas poderá ser aquela que todos temem e ainda vão negando: a colocação de um importante contingente internacional naquele teatro de operações, significando isto a resolução de vários outros problemas aparentemente insolúveis: a relevância do interesse do apoio russo e as incontornáveis negociações com Assad. Com a situação criada na zona a norte do Mar de Azov, até poderíamos de forma anacrónica e irrealista, traçar um paralelo: Suez e o praticamente simultâneo cerco e destruição de Budapeste, em 1956. É que nestes casos da grande política, ao oportunismo chama-se oportunidade.
O caos que parece instalado na Europa oriental, consiste numa boa oportunidade para um revisitar de eventos ocorridos há mais de sete décadas e nos quais alguns procuram encontrar algumas semelhanças, agitando a necessária propaganda mediática de horário FOX/CNN. É possível traçar uma linha paralela entre os procedimentos e factos que se acumulam com o passar das últimas semanas, mas aquela sugestão de um ponto de encontro numa diagonal política, é totalmente abusivo, porque absurdo. Na aparência semelhantes, as situações conformam adversários muito afastados daqueles actores que nos finais dos anos trinta conduziram a Europa a uma guerra. A própria posição da Rússia é hoje bem diversa daquela ocupada pela URSS de Estaline e quanto ao poderoso capítulo da informação à disposição do escrutínio das opiniões públicas, a realidade é incomparável. Quanto à hegemonia ocidental, essa terminou em 1945.
von Neurath
Sir Neville Henderson foi durante dois anos, o embaixador do Reino Unido em Berlim. Como seria conveniente a uma grande potência, a sua nomeação não decorreu apenas da necessidade do natural preenchimento do lugar que a sua longa carreira de diplomata impunha, mas também por ser um conhecedor não apenas da língua alemã, mas também de influentes sectores da sociedade do Reich. Ao longo da sua interessante obra "Dois anos com Hitler" *, dá-nos a conhecer as profundas dicotomias existentes entre os perenes funcionários da administração alemã que já provinham dos tempos do Império caído em 1918 e aqueles outros que alçados ao poder em Janeiro de 1933, vieram desorganizar o que há muito se considerava como regras elementares e geralmente aceites da conduta entre Estados. Deverão alguns apontar as notas de um certo snobismo de classe que o diplomata vai desfiando a propósito de figuras como Goering, von Papen, o marechal Hindenburg, os amigos von Neurath e Weizsäcker e o outro lado, o dos adventícios do regime - o bem informado Goebbels, Himmler e o incompetente Ribbentrop à cabeça dos demais - que compunham o círculo de próximos do Führer. Henderson não poupa nos epítetos, mas um dos aspectos mais surpreendentes deste seu testemunho, consistirá na evidência do texto não parecer ter sido reformulado após os acontecimentos do verão de 1939. Considerado como um appeaser, Henderson correspondia ao pulsar da imensa maioria da opinião pública ocidental, fosse ela britânica, americana, francesa, belga, italiana ou dos países nórdicos. Era comummente aceite a grave distorsão de uma paz concebida através da imposição daquilo a que oportunamente foi designado como Diktat, paz essa tão diferente de uma outra celebrada um século antes e conseguida após a derrota e queda de Bonaparte. Sir Neville concede crédito às evidentes contradições estabelecidas pelos vários textos condicionantes estabelecidos na zona da Grande Paris, genérica e erradamente designados por Tratado Versalhes: Versalhes, St. Germain, Trianon, Neully e Sévres. Nos anos vinte, as perturbações verificadas na Checoslováquia, Hungria, Polónia, Roménia e Jugoslávia - não esquecendo o desrespeito relativo à vontade austríaca, a Deutschösterreich, quanto ao seu ingresso na Alemanha -, conduziram a Europa à premente necessidade da manutenção, mesmo que provisória, de um status quo territorial que por sinal correspondia perfeitamente ao termo Armistício. A verdade é que sem qualquer negociação, a Versalhes não podia ser atribuída a categoria de uma Paz outrora aposta aos acordos da Vestefália, Pirinéus, Amiens ou Viena. Desta forma era tacitamente aceite uma situação cujo carácter provisório apenas adiava as alterações que num período pretendidamente longínquo, inevitavelmente chegariam.
Ribbentrop, Estaline e Molotov, 23 de Agosto de 1939
Quais foram então os aspectos que mais chocaram um diplomata da velha escola - afinal, a única concebível - quando chegado à Alemanha, iniciou os seus serviços no sentido da defesa dos interesses britânicos, obviamente coincidentes com os da maioria dos países vizinhos do Reich? Em primeiro lugar, o modus operandi do novo titular dos Negócios Estrangeiros que por infelicidade substituiu Neurath. Hitler lobrigava em Ribbentrop um "novo Bismarck", quando a quase todos saltava à vista a evidência de o novo ministro representar o posto do homem de Estado que foi o Chanceler de Ferro. No dito jocoso de H. Goering, ..."Ribbentrop conhece a França através do cognac e a Grã-Bretanha pelo whisky". Sendo a Alemanha uma grande potência - e ainda hoje aufere desse estatuto - a sua diplomacia e a correspondente acção do seu governo não podia escapar ao crivo dos procedimentos normais que garantiam a fiabilidade junto dos interlocutores, por muito desconfiados que estes estivessem desde a ascensão de Hitler à Chancelaria. A partir de 1937, Berlim enveredaria por um tipo de política impulsiva e de clara chantagem militar prontamente seguida pelos vizinhos soviéticos e em boa parte ditada por considerações ideológicas às quais o oportunismo imprimia uma tal marca que tornava impossível qualquer negociação atempada e a necessária base de confiança para a mesma. A Áustria e os Sudetas quiseram fazer parte da Alemanha do pós-Grande Guerra? Sim, não era uma suposição, tratou-se de uma vontade impedida pelos interesses regionais da França e dos belicosos novos Estados saídos de partes do império austro-húngaro, nomeadamente a Checoslováquia, a Polónia, a Roménia e a Jugoslávia. O Princípio das Nacionalidades que servira como catalisador do discurso anti-Impérios Centrais, foi assim desacreditado pelos paladinos do mesmo, oferecendo no decorrer dos dificílimos anos vinte e trinta, poderosos argumentos aos revisionistas de fronteiras, fossem eles alemães, húngaros, soviéticos, italianos ou até, os largamente beneficiados polacos.
A execração do appeasement tem então início já no seu período final, precisamente aquele coincidente com o processo de anexação da Áustria e na vincada opinião de Henderson, após a Noite de Cristal. Não foi aquela absorção o móbil para o levantar de oposições nos parlamentos e imprensa dos países ocidentais - Churchill começou a ser mais escutado e seguido -, mas sim a fórmula sob a qual foi o Anschluss (1938) conseguido. Pesando as possibilidades e perante a ameaça que Schushnigg representava quanto a uma restauração dos Habsburgos - algo que poderia irreversivelmente alterar a correlação de forças em presença, dada a situação da Hungria e os problemas nacionais na Checoslováquia -, os acontecimentos foram deliberadamente precipitados. Verificada a situação desastrosa em que se encontrava económica e socialmente a Áustria, é bastante provável que a celebração de um imediato plebiscito tivesse consagrado a vitória dos integracionistas, mas a agenda de afirmação do nacional-socialismo, impeliu o governo alemão à política do tudo ou nada que fatalmente conduziria à guerra. O Ja ou o Nein a manifestar no boletim plebiscitário, foram opções após o facto consumado. Hitler pretendia tornar bem nítido o império da sua vontade, fazendo passar a mensagem de tudo lhe ser permitido, porque razoável e de direito, enroupando a política externa numa confusa Babel de racialismo e de Lebensraum. Aplicava-se então um sucedâneo da política leninista da salamização, exigindo-se sempre mais e mais, estando a informação interna cuidadosamente organizada para a identificação do inimigo de um dado momento. Mesmo os sacrossantos fundamentos nacional-socialistas de união do todo nacional alemão, ficaram destruídos com a incorporação dos checos da Boémia-Morávia, quebrando qualquer hipótese de reedição da até então imparável política de apaziguamento.
Emil Hacha e Hitler, Berlim, 14 de Março de 1939
Os encontros entre Hitler e Schuschigg e mais tarde, com Emil Hacha, ultrapassaram os limites do mais ténue decoro. As conferências celebradas entre o Führer e os representantes da França (Daladier) e da Grã-Bretanha (Chamberlain), também foram exemplos do advento da grosseira guerrilha psicológica à mesa das negociações diplomáticas, sendo estilhaçadas todas as normas de conduta até então vigentes. A má fé onde o capricho e o rasgar de documentos recentes parecia ser a regra, desvaneceram todas as ilusões quanto a um acordo geral que conformasse as partes e salvasse a periclitante paz do Armistício.
Sir Neville Henderson falhou a sua missão em Berlim. Falhou porque ao contrário dos diplomatas que vinham dos tempos do Kaiser e de Weimar, teve como interlocutor um arauto do programa do Partido que nos postulados do Mein Kampf conhecia o único rumo possível. Sabe-se que naquele momento, a rainha Isabel, mãe da actual monarca, aconselhava os políticos britânicos a lerem o livro escrito por Hitler, pois não fazê-lo consistia num tremendo erro, ignorando-se assim um detalhado programa político que estava a ser paulatinamente cumprido. Este é um daqueles aspectos tardiamente apercebidos por Sir Neville e que no teoricamente arqui-inimigo de Hitler, o mundo soviético, encontrava perfeito correspondente quanto à submissão a imaginadas infalibilidades que à época se traduziam na acção do Komintern. Logo isto se confirmaria no pacto de 23 de Agosto de 1939, no ataque russo à Polónia (Setembro de 1939), na guerra de espoliação feita à Finlândia (1939), na invasão e anexação da Estónia, Letónia e Lituânia (1940) e no Ultimatum enviado a Bucareste, conduzindo ao forçado abandono romeno da Moldávia e da Bucovina (1940).
Miguel I, rei da Roménia
Este tipo de política alicerçada em factos consumados, mais tarde virar-se-ia contra os próprios interessados nas mesmas e se quisermos um bom exemplo, o golpe executado pelo rei Miguel I em 23 de Agosto de 1944 - exactamente cinco anos após a assinatura do Pacto Germano-Soviético - , subtrairia ao Eixo aquele que tinha na Roménia, o seu aliado militar mais forte. O problema da continuidade de procedimentos estranhos à tradicional compostura nas relações entre Estados, verificar-se-ia como uma constante nos anos subsequentes à guerra e uma vez mais na Roménia se repetiram episódios muito próximos das ameaças e coacção moral outrora impostas ao presidente Hacha. Ainda hoje, decorridas sete décadas, Miguel I de Hohenzollern continua a mostrar aos seus convidados - Putin entre eles -, a marca deixada na secretária do palácio Elisabeta pela coronha da pistola de Groza, actuando a mando de Vichinsky. Enviado por Estaline e Molotov a Bucareste, aquele que ficara famoso durante a purga de 1936-38, conseguira assim a imediata abdicação do monarca.
Chamberlain, Henderson e Hitler em Munique, 30 de Setembro de 1938
O que é então possível encontrarmos nesta obra, como referências a acontecimentos que nos são temporalmente próximos? Antes das situações a comparar - ao contrário daquilo que a sra. Clinton quer fazer crer, o caso dos Sudetas não pode ser equiparável à Crimeia, a Donetsk e a Lugansk - , talvez seja prudente avaliarmos os métodos utilizados pela generalidade das chancelarias envolvidas no caso ucraniano, sejam as ocidentais, seja a de Moscovo. Todo o processo tem radicado em erros que se vão acumulando de forma aparentemente irreparável, desde aqueles cometidos aquando da implosão da União Soviética - o aceitar das artificiais fronteiras das ex-pretensas repúblicas componentes da URSS -, até à cegueira manifestada perante os interesses em campo. A nenhum ocidental deveria passar despercebida a necessidade de manutenção da sensação de segurança de um país que não deixou de ser um império, ou seja, a Rússia. Tal não foi feito, desaproveitando-se a colossal oportunidade apresentada no início da década de noventa. Liquidado o comunismo, logo surgiu uma miríade de bases militares no próprio espaço que compusera a URSS e ainda, ao contrário das expectativas dos mais pró-ocidentais agentes políticos e militares russos, alargámos a NATO aos Países Bálticos e a todos aqueles que outrora tinham pertencido ao Pacto de Varsóvia. Dada a necessidade de garantir a independência daqueles Estados existentes em 1939, poderíamos ter ficado por aqui, mas não foi esta a opção que se impunha. Tal como uma U.E. em indefinido alargamento, o mesmo ocorre com a NATO. Ainda há pouco meses, o almirante Stavridis declarava a necessidade de Sebastopol passar a pertencer ao rosário de bases navais ao serviço da US Navy, quando a situação da Rússia já é bem diversa daquele caos que diante de todos se apresentava há quinze, vinte anos. A desnuclearização da Ucrânia - e a sua independência - também tiveram um preço tacitamente aceite por ambos os campos, numa daquelas clássicas manobras da diplomacia da confiança que nos últimos anos foi escaqueirada em múltiplos cenários vizinhos, desde o Iraque até aos Balcãs e ao norte de África.
S. Lavrov e J. Kerry
Perdido parece estar o tempo em que os titulares dos negócios Estrangeiros eram internacionalmente conhecidos. Durante muitos anos era normal os ministros continuarem no cargo, servindo chefes de governo oriundos de partidos diferentes. Era este o caso Hans Dietrich Genscher que passou por vários governos do SPD e acabou servindo o democrata-cristão da reunificação alemã, o chanceler Helmut Kohl. Tudo mudou e nem sempre para melhor. Fica então, a estranha sensação de o Ocidente não saber com quem está, ou pretende fazer política na Rússia. S. Lavrov não é propriamente uma réplica dos descartáveis Kerry, Ashton ou Fabius. Mesmo que o regime russo correspondesse aos que naturalmente vigoram para aquém do Vístula, jamais a Rússia poderia deixar de ser encarada como uma entidade que junto do seu povo, nunca perdeu a condição de superpotência. Foi, ainda é e será um império. Aqui está um dos erros, entre uma infinidade de outros, dos nossos inconscientes aprendizes de Ribbentrop - no seguimento das mirabolantes descobertas químicas de G. W. Bush, conhecerá o sr. Kerry este nome? -, sabendo-se que como interlocutores têm, na melhor das hipóteses um S. Lavrov e o bastante condicionado V. Putin. Com quem pretende o Ocidente dialogar? A política do querer mais e mais, do tudo ou nada, encontra a resposta correspondente numa direcção política sob o fogo de múltiplos interesses, desde os saudosistas representados pelo fanado Partido Comunista e respectiva gerontocracia militar, até aos febris nacionalistas entre os quais V. Jirinovsky não passará de um, entre muitos. Há ainda que contar com a condicionante representada pela formação de mentalidades ao longo de décadas cultivadas pelo desaparecido hiper-nacionalista regime soviético da Grande Rússia, sob o disfarce de um edílico e jamais confirmado internacionalismo. Infelizmente, é agora óbvia a falta de interesse que para o Ocidente representaria uma Ucrânia neutral, mesmo que internamente organizada segundo o contentamento das minorias russas que também a compõem.
Não existe qualquer benefício a retirar de uma política de appeasement, seja ela em benefício do bloco NATO, ou da Rússia. Há que iniciar um processo muito diferente dos procedimentos habituais, pois a segurança da Europa - e dos EUA - está em risco. Chegámos a um ponto de difícil retorno, pois nem sequer a evidência da necessidade de uma apertada cooperação da NATO com a Rússia nos cenários de conflito próximo, será suficiente para limitar os desastrosos efeitos que parecem sem remédio. É por isso mesmo aconselhável, a leitura do testemunho de Sir Neville Henderson.
* Deux ans avec Hitler, Sir Neville Henderson, 1940, Flammarion, Paris
Demolição da igreja de Santa Ana, MA, EUA
Tem toda a razão o general norte-americano. Por aquilo que temos visto quanto ao porte de arma com licença, os assassinos têm sido extremamente bem financiados e armados por uma certa agência americana e por outros países formalmente "amigos do ocidente", ou sejam, a Arábia Saudita e alguns emiratos, precisamente aqueles que açulam todo o tipo de indecêncios bramidas por santos "xeques" repimpados na Europa.
A suposição da urgente necessidade de intervenção anti-jihadista, implica a extensão das operações dos aliados da NATO à própria Síria. Das duas, uma: ou Washington e satélites pretendem chegar a um urgente e desejável acordo com Assad, ou este súbito interesse pela segurança colectiva não passa de um pretexto para repetirem em 2014, aquilo que há uma década infelizmente fizemos no Iraque.
Demolição da igreja lituana de St. George, PA, EUA
Não é preciso ser-se um Talleyrand de café, para de imediato nos apercebermos do potencial de revisão de política que as dificuldades de entendimento entre russos e chineses, poderão representar para o ocidente. Urge um rápido entendimento leste-oeste, precisamente quando a Moscovo surgem perspectivas de uma encruzilhada geoestratégica. A política ditada pelo país tutelar da NATO, tem produzido as mais desvairadas decisões que em muito enfraquecem e colocam em risco os interesses da Europa. A inegável derrota militar na Síria, soma-se à precipitação quanto ao tratamento a dar ao caso ucraniano, tendo sido sempre privilegiados os ímpetos para a obtenção do sonhado tudo, esse escusado, final e tardio ajuste de contas da já por muitos esquecida Guerra Fria.
À Europa interessa uma Rússia cooperante e estabilizada, mas para isso urge convencer os nossos aliados norte-americanos. Não podem ser ultrapassados os limites que a história claramente indica como fundamentais para a sensação de segurança dos russos. Status quo nas áreas de influência estabelecidas após 1991, neutralidade ucraniana e o imperioso evitar de mais focos de fricção no Médio Oriente e na Ásia Central.
...foi franqueada pelo incensado senhor Erdogan. Farto de ver o seu nome enlameado pela catadupa de alegações em torno de assuntos bastante turvos, já se esqueceu daquilo que durante anos tentou fazer passar como verdade insofismável: o seu movimento islamita era coisa talhada "à imagem dos democrata-cristãos europeus". Por outras palavras, ali teríamos uma tardia imitação de Adenauer, De Gasperi, ou, dadas as suspeições que se avolumam acerca de intuitos de expansão da influência regional, um Helmuth Kohl.
Tudo tem servido para justificar a apresentação da candidatura turca à U.E. Há uns anos, Kadhafi dizia que a Turquia seria o Cavalo de Tróia muçulmano na Europa, mas para a gente com as circunvoluções cerebrais minadas por cifrões, taxas cambiais, empreendedorismo, "liberdade de circulação de pessoas e bens" e outros argumentos a que nos habituámos, o Sr. Erdogan representa "a legítima herança do Império Romano do Oriente". Está-se mesmo a ver. Os problemas nas margens do Mar Negro continuarão durante mais algum tempo e a ninguém estranhará uma coordenação turco-americana naquela região, coisa já bastante visível no norte da Síria. Quanto à Europa, há quem pouco se interesse com o médio prazo, pois o que importa é o mercado, o bazar.
Já podemos imaginá-lo a emular o grande sultão Mehmet II, entrando a cavalo em Santa Sofia. Para adequar a imagem aos nossos dias, a Erdogan bastaria chegar de Mercedes ao Reichstag, fazendo substituir a águia pelo crescente na tricolor alemã. Coisa impossível, claro.
Da esq.para a dir.: Portugal, a França, Espanha, a Alemanha e a Inglaterra advertidos pelo Tio Sam, o protector dos países latino-americanos
Desde o Outono de 1939 e até à declaração de guerra enviada por Berlim em Dezembro de 1941, a US Navy dedicou-se a escoltar os comboios de reabastecimento da Grã-Bretanha. Partindo do Canadá, estes eram ameaçados por unidades submarinas e de superfície da Kiegsmarine. A USN significou um enorme alívio para as necessidades de defesa do Reino Unido, mitigando as perdas de tonelagem mercante e permitindo a sobrevivência do seu esforço de guerra na Europa e no norte de África. Era esta uma forma de interpretar extensivamente a Doutrina de Monroe, alargando o espaço da sua acção até às imediações da Irlanda. Os almirantes alemães impacientavam-se, mas Hitler interditou qualquer tipo de confronto com a marinha americana. Sabia que este era o pretexto bélico que faltava a Roosevelt.
Nos finais do século XIX, os EUA atacaram a Espanha, arrebatando-lhe Cuba, Porto Rico, Guam e as Filipinas. Tornaram-se numa potência colonial e tal situação prolongar-se-ia até aos nossos dias. Pouco depois, correram rumores acerca de uma possível ocupação dos Açores, pela imprensa americana considerados como parte da hemisfério ocidental e "dentro dos limites" impostos pela Doutrina de Monroe. A Visita Régia aos Açores e à Madeira terá tido algo a ver com estes ímpetos expansionistas dos EUA, sendo os portugueses ostensivamente apoiados pelos britânicos e sucedendo-se as visitas de esquadras da Royal Navy aos portos nacionais.
Curiosamente, já declarada a guerra após Pearl Harbour, a administração Roosevelt ansiosamente procurou ocupar os arquipélagos portugueses - Açores, Cabo Verde e Madeira -, sendo a agressão refreada pelo acordo geral estabelecido sob auspícios do Reino Unido.
Todos conhecem o caso dos Mísseis de Cuba e a longa série de intervenções militares na América latina. Era a salvaguarda dos interesses dos EUA que estava em causa e disso mesmo os próprios soviéticos deram conta, agindo em conformidade. A uma grande potência, é sempre tacitamente reconhecida uma zona de segurança.
O que se tem passado no leste e sudeste europeu, pode ser considerado como um paralelismo russo à aplicação da Doutrina de Monroe, mas num âmbito geopolítico muito mais reduzido. Se em Washington não conseguem entender este facto ditado por uma história anterior à própria existência dos EUA, então haja alguém que de Londres envie um oportuno esclarecimento. Sem este tipo de contemporização pelos mais próximos interesses do imaginado adversário, pode acontecer que alguém em Berlim se lembre do reactivar das teses de Haushofer, desta vez com a plena colaboração russa.
Já não se fazem invasões como dantes. Recordemos a Budapeste de 1956, quando os tanques soviéticos bombardearam a capital húngara. Resultado? A cidade voltou a ser destruída e nas ruas ficaram cerca de 3.000 mortos e mais de uma dezena de milhar de feridos. Em 1968 o mundo assistiu ao caso checoslovaco, com panzers do Pacto de Varsóvia invadindo e atacando em tenaz. Repetiu-se o mesmo no Afeganistão, em 1979.
Segundo rezam as notícias, os russos invadiram a Ucrânia com 80 soldados, uns tantos blindados - presume-se serem veículos de rodas, transportes - e helicópteros. Uma escalada escandalosa, segundo o douto senhor Kerry. Pelos vistos, os soldados de Putin tomaram uma aldeia, lebensraum essencial para um minúsculo país como a Rússia.
Escalada escandalosa? O que é uma escalada escandalosa? Revivamos então a nossa memória mais recente.
No sudeste asiático e devido às dificuldades com os turras vietnamitas, os EUA escalaram a sua intervenção até ao Laos e ao Camboja, depondo Sihanouk e manietando o governo Sisavang Vatthana. Instalaram centenas de milhar de homens, um incontável número de blindados sobre lagartas, centos de obuses Long Tom, mísseis de todas as formas e feitios. No Mar do Sul da China concentraram porta-aviões, dois couraçados, cruzadores, fragatas e navios de desembarque. Dos porões dos B-52 fizeram chover bombas de todos os tipos, não poupando cidades, vias de comunicação e aldeolas. Nem sequer os macacos ficaram a salvo nas florestas onde um certo agente laranja cantou uma desfolhada muito diferente daquela que conhecemos.
Isto foi uma escalada. Em comparação com isto, tudo aquilo que preocupa Kerry, são peanuts.
Podemos e devemos ser solidários com os ucranianos residentes em Portugal e devemos proceder exactamente da mesma forma em relação aos moldavos, nacionais da CPLP, russos e outros que aqui demandaram para uma nova vida.
O melhor e mais fiável aliado, é aquele que bem aconselha os seus amigos, não se deixando instrumentalizar por paixões momentâneas ou campanhas que inevitavelmente prejudicarão os seus proponentes e claro está, os visados pelas mesmas. Ninguém pode sair vencedor desta nova versão da Guerra Fria, até porque nem sequer existe um adversário ideológico capaz de mobilizar as boas consciências de que os media necessitam. Portugal não pode, nem deve envolver-se neste caso.
Tudo aquilo que nos tem chegado dos EUA, nada mais é senão uma inacreditável amálgama de suposições, péssima interpretação dos factos, analogias completamente distorcidas e um descarado esconder daquilo que é essencial para a estratégia dos nossos aliados. Haverá alguém que em Washington possa pensar poder enganar o Kremlin? Estivesse Catarina II, o Czar Nicolau II, Estaline, Brezhnev ou Putin à frente do Estado russo, a resposta seria sempre a mesma: niet. Se os EUA julgam poder alterar este dado permanente, então o caso torna-se muito mais sério. Não é o tipo de regime em vigor na Rússia, o polo da discussão. Trata-se daquilo que os russos consideram essencial à sua sobrevivência como potência. Nada mais, nada menos senão isto, por muitos paliativos que os observadores externos possam querer ministrar.
"Um programa de auxílio financeiro seria fundamental para recuperar a Ucrânia, que durante décadas foi afectada por uma cultura de corrupção", denuncia Kaptur, que sugere também o envio de "uma força de paz da NATO para a Ucrânia, composta por militares de países vizinhos (Turquia, Roménia e Polónia)."
A Turquia? A Polónia e a Roménia? Em que planeta vive a congressista norte-americana? Aqui está o que verdadeiramente pretendem os desavisados conselheiros de Obama, os sectores do lobby energético e o Pentágono incluído. É uma sugestão inaceitável, para mais ficando assim assumindo o há muito suspeitado intento de forçar a presença da NATO na Ucrânia. Se alguém no Capitólio pode sonhar com a aquiescência dos russos a um disparate tamanho, então ficamos todos cientes da categoria da gente que é perigosamente eleita para aquele tipo de cargos representativos.
Qual será a próxima ideia de estalo? Convidar Israel a ingressar na Aliança Atlântica?
Ele sabe como baralhar e distribuir as cartas. Embora o regime de Putin seja algo que não desejaríamos ter nesta zona do mundo, há que reconhecer ser um dirigente incomparavelmente mais hábil do que os governantes do ocidente, EUA incluídos. Estamos entregues a uma irmandade de palradores diletantes e como tal, irresponsáveis.
Tal como há quase cem anos, há quem queira pôr as rodas da mortífera engrenagem em movimento. Agora, os polacos sentem-se ameaçados pela Rússia, país com o qual nem sequer fazem fronteira que se veja. À Polónia, decerto somar-se-ão lituamos, estónios e letões, todos eles desesperadamente ansiosos por ajustes de contas mais próprios da época anterior a Hiroxima. A propósito, os polacos deveriam cair de joelhos, e de braços em direcção aos céus, agradecerem o status quo das suas fronteiras.
Nenhuma destas preocupações será coisa séria, a menos que por detrás de todo este carnaval, estejam uns alvitres vindos além-Atlântico. Por outro lado, chovem as "garantias" prodigamente oferecidas por ingleses, americanos e franceses. Esse tipo de garantias, são hoje tão sólidas e válidas como aquelas dadas aos checoslovacos em 1938: não valem o preço do papel em que foram "printadas" após o recebimento do respectivo mail.
Fiquemos então com boa, excelente música.
É conhecida a longa lista de chanfrados que têm passado pelos corredores do poder em Washington, Casa Branca incluída. Alguns deles foram quem mais entusiasmadamente arrastou os tanques de Estaline até às capitais de toda a Europa central. Desta vez, um tal ex major Adam Kinzinger declara que "os EUA deveriam considerar uma resposta militar como opção". Refere-se à situação na península da Crimeia, território ficticiamente oferecido pelo ucraniano Kruschev, à não menos fictícia "república" socialista soviética da Ucrânia. Estórias coloniais, portanto.
Resposta militar à Rússia? Não se ouvia tal coisa desde a crise dos mísseis de Cuba.
Após a queda do regime comunista, os norte-americanos logo aproveitaram todas as oportunidades que lhes eram oferecidas, estabelecendo-se na Ásia central e manobrando para a pulverização do Cáucaso em novos países muito belicosos entre si. Não lhes interessa minimamente a atracção da Rússia à comunidade ocidental e pior ainda, ao longo dos últimos dez anos, tudo têm feito para uma reconstituição de blocos à imagem dos existentes durante a Guerra Fria. Do Afeganistão à Líbia, do Iraque à Síria, a intervenção dos EUA é patente, por vezes sem qualquer tipo de caução internacional garantida pela instrumental ONU. Na Europa, não se escuta qualquer voz que tente persuadir os nossos aliados quanto a uma melhor compreensão das realidades políticas, económicas e culturais na vasta região para além do Prut. Talvez alguém lhes possa exemplificar com o Texas, o Arizona ou a Califórnia.
Esperemos que a fatuidade política de Obama não chegue longe demais.
Isto diz muito acerca de quem hoje somos. É o dia da esperada cacofonia acerca do assassinato de Kennedy. Nos jornais, nas estações de televisão e nas redes sociais, não se fala noutra coisa senão no impossível deslindar da responsabilidade do crime. Tal não seria de estranhar, se em Portugal não persistisse a deliberada ocultação de um crime que há 105 anos para sempre mudou a história do nosso país, destruindo o regime constitucional e abrindo o caminho à subversão como forma de exercício do poder do Estado.
Existiram meia dúzia de cópias do Processo do Regicídio, tendo uma delas ido parar às boas mãos do Sr. Afonso Costa. Compreensivelmente, deu-se-lhe o esperado sumiço. Outra, provavelmente desaparecida aquando do estranho assalto à residência de Sua Majestade o Rei D. Manuel II, para sempre terá deixado de poder ser consultada. É possível ainda existir qualquer um dos remanescentes exemplares, seguramente guardado a sete chaves por quem julgue ter o dever de ocultar as responsabilidades criminais e políticas de conhecidos nomes que decoram ruas e praças deste país.
Como quer o sistema ser levado a sério, se passados três regimes desde a subversiva, violenta, ilegal e desastrosa destruição da Monarquia Constitucional, um Processo que já é parte da história - estando mortos todos os envolvidos no crime -, continua sem ser concluído?
A menos que algo exista que possa fazer perigar a segurança desta república, ou por isso mesmo, já é tempo de sabermos a verdade dos factos.