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A idade da razão foi tomada de assalto pelo calor do momento, pelas emoções à flor da pele. Nos últimos tempos, em relação aos quais tenho dificuldade em estabelecer um marcador para o seu início, as nossas sociedades têm sido instigadas a exercer o magistério dos instintos primários. A falência económica e social do sistema capitalista, tal e qual como o conhecíamos, determinou, em larga medida, a deslocação da racionalidade para o campo aberto da luta pela sobrevivência, do salve-se como entender. O desespero dos indivíduos gerou comportamentos assimétricos, de tudo ou nada, de extremismos, de vaticínios, fundamentalismos ou devoção cega. Assistimos, neste quadro de desmoronamento, a expressões de desequilíbrio, de anulação e validação no mesmo gesto. A dialética foi preterida em nome da certeza absoluta. Esta clivagem entre extremos radicalizou posições e antagonizou a própria noção de compromisso societário, alicercado no diálogo, na condição humana enquanto valor maior. Um sem número de eventos e factos terá contribuído para engrandecer a desordem e ampliar a dimensão emocional da condição existencial. A maioria dos acontecimentos inscritos no campo negativo, e a menor parte, no campo do tendencialmente positivo. Sem o desejarmos, ou controlarmos os seus efeitos, estaremos à mercê dessa panóplia de estímulos que apelam a respostas instantâneas, viscerais. A tômbola de doutos e antídotos tem gerado náuseas e um sentimento de insegurança em relação ao futuro. De Snowden aos caprichos de Wall Street, aos casos do BPN e do Freeport, da morte de Eusébio às conquistas de bolas de ouro de Ronaldo, dos protestos de rua dos últimos dois anos, ao mais recente caso de vingança tributária do leitão da Bairrada (sem esquecer a garfada de Hollande); tudo isto contribui para reforçar o domínio do caos, da dependência em relação ao reagente que se segue, o speed emocional que se confunde com a matéria política porosa. Uma vez tombados nessa dependência, os indivíduos prescindem dos requisítos mínimos de racionalidade. E, na minha opinião, isso constitui uma séria ameaça. Porque, no contexto desse ambiente propício ao populismo, as mais radicais ideias encontram o terreno propício para serem readmitidas. Refiro-me a laivos substantivos de anti-semitismo, fascismo e corporativismo, registados sem agrado um pouco por toda a Europa debilitada. A euforia dos últimos tempos faz pendular os mais indefesos entre a glória e a desgraça, como se fossem marionetas. Reitero, de um modo humilde e pequeno, a salvaguarda de uma parte do juízo, para podermos separar o trigo do joio, o essencial do perdulário. As emoções devem comandar a vida, a poesia, a arte, mas não necessariamente a prosa política. Tenhamos atenção ao espectáculo que se nos têm oferecido nos últimos tempos, qualquer que seja a arena da nossa preferência.
Portugal está de luto. Uma das suas quinas bateu as asas e rumou ao firmamento de outro imaginário. Na narrativa mítica que conta a história de Portugal, Eusébio era sem dúvida uma das suas figuras. Um dos deuses que viveu para além do regime do futebol para representar algo maior que o desporto-rei. A sua coroação mundial serviu também para expressar a voz da africanidade, tantas vezes preterida pelas centralidades europeias, pelos impérios que apenas nasceram com a Conferência de Berlim de 1884-85. Eusébio, provém, nessa iconografia, da epopeia dos Descobrimentos, da luz aberta pelos caminhos marítimos desbravados por Vasco da Gama, das colónias que se lhes sucederam. Sobreviveu à política como se esta não existisse, como se o poder fosse absoluto, apenas seu. No tridente da etno-folcloridade portuguesa, Eusébio, tal como Amália, confunde-se com um Portugal extemporâneo, orgulhoso, mas não menos valioso. A alegada elite intelectual portuguesa não encontra modo de demarcar-se do círculo do velório e da homenagem que um país inteiro lhe presta. Como se apenas a literacia merecesse o estatuto da imortalidade, cantada e declamada na edição de uma estrofe camoniana. Os heróis, não são aqueles seleccionados pela falsa estirpe de um iluminismo bronco, uma ala carregada de tiques de superioridade. O luto que converge para a mesma baliza, demonstra que os afectos comandam a vida, que Portugal é sentimental na hora certa, na hora errada - no momento justo. Que descanse em paz Eusébio.