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Se lêssemos a notícia que as autoridades do Zimbabué obrigassem os cidadãos a pedir sempre todas as facturas sob pena de sofrerem sanções caso não o fizessem, a surpresa causada pelo absurdo da medida seria minorada pelo facto de se passar num país totalmente desacreditado, falido para além da definição do termo, onde mesmo o mais extremo se espera de um poder político sem escrúpulos. Então, como se espera que esta notícia seja recebida quando se passa em Portugal?
Esta caça do fisco aos consumidores incautos que não pedirem factura, para além de ser um autêntico caso de estudo de como governos eleitos democraticamente são capazes de níveis elevadíssimos de opressão económica sobre os cidadãos, levanta a questão sobre em que tipo de país afinal Portugal se está a transformar e que modelo económico segue o actual governo.
Se olharmos à argumentação e actuação do Ministro da Economia Álvaro Santos Pereira, Portugal está a trabalhar para ser um país de economia de mercado, seguindo o modelo dos países mais evoluídos, com níveis elevados de liberdade económica que possibilitem a iniciativa privada, com a ambição de recuperar capacidades produtivas perdidas nos últimos quarenta anos, com fiscalidade atractiva para o investimento nacional e estrangeiro. É um país que se preocupa com a sua imagem internacional e por isso valoriza a sua singularidade (inclusive com os simples e muito populares pasteis de nata), diferenciando-se para não ser apenas mais território económico sujeito a comparações que nos poderão ser desfavoráveis. Um país tão civilizado como aqueles com quem concorre, economicamente acolhedor, e que inclusive ambiciona acolher os reformados do Norte do continente, propondo-se ser a Florida da Europa.
E depois há outro Portugal, o do Ministro das Finanças Vitor Gaspar (e da generalidade dos seus antecessores no cargo), onde se vive num sistema feudal, onde a maior parte da riqueza produzida é confiscada pelo Estado, onde nenhum capital, nenhuma propriedade nem nenhum investimento estão seguros porque as únicas finanças que interessam são as do Estado, e em nome delas todos os sacrifícios podem ser exigidos e todos os confiscos serem executados. Um país onde se é permanentemente perseguido, escrutinado e tratado como faltoso até prova em contrário. É o país dos aumentos de 500, 800 e até 1000% no IMI, dos impostos extraordinários sobre carros de gama alta (que já pagaram os impostos mais elevados da Europa no momento da compra) e sobre habitações avaliadas em mais de um milhão de euros (adeus Flórida da Europa). E agora, chega-se à situação literalmente totalitária em que o consumidor poderá inclusivamente sofrer retaliações por parte do Estado se for negligente ao policiar as empresas onde consome, uma função a que agora está obrigado.
Também há o Portugal da Ministra do Ambiente, da Agricultura, do Mar e do Ordenamento do Território, que vive na era soviética, em que os terrenos não-utilizados podem ser confiscados pelo Estado (mesmo que seja o Estado o culpado por esses terrenos não estarem a ser utilizados) para uma nova Reforma Agrária que dá pelo nome de «Banco de Terras», em que as regras ambientais por mais absurdas que sejam se sobrepõem à necessidade de desenvolver a Economia, em que os supermercados têm de pagar uma taxa de segurança alimentar e os que façam descontos de 50% são investigados pela polícia económica, em que os proprietários de todos os imóveis que estiverem a menos de 50 metros do mar ou de um curso de água têm de provar que o referido já estava na posse de privados em meados do Século XIX, caso contrário será confiscado pelo Estado. É um país em processo revolucionário onde, de um momento para o outro, se pode ficar sem o património porque o Estado determina que sim.
Outros Portugais haverá, mas estes três sistemas já bastam para colocar a seguinte questão: afinal em que ficamos? Somos Europa (ou Canadá), somos Zimbabué ou somos URSS? Com qual é que devemos contar se quisermos fazer planos para o futuro, comprar uma casa, montar uma empresa ou contactar um empresário estrangeiro? O Governo não foi, obviamente, mandatado para aplicar os dois últimos, mesmo que um deles esteja previsto na Constituição da República.
Assim sendo, ou o Governo - todo ele - começa a fazer o que dele se espera e começa a governar como se governa no Século XXI e deste lado do Muro de Berlim, ou a legitimidade democrática obtida nas últimas eleições cai por terra.
Qualquer pessoa minimamente inteligente e com um mínimo de cultura política saberia que medidas como esta relativa às facturas são um autêntico convite à desobediência civil generalizada. E isso é algo com que o Estado nunca poderia lidar mesmo que fosse muito mais poderoso do que é, e que fosse chefiado por gente muito mais inteligente do que aquela que actualmente o dirige.
Marinus van Reymerswaele, Dois colectores de impostos, 1540
"Fisco já abriu "diversos processos de contra-ordenação" a consumidores por falta de factura" titula o Negócios. Peço imensa desculpa se ofender alguém, sobretudo as alminhas mais quebradiças, mas Portugal já não é uma democracia fiscal. Ponto. Quem é que se atreverá, doravante, a falar em democracia e liberdades quando o Xerife de Lisboa, dia sim, dia não, processa e condena os cidadãos esbulhados por enormidades deste género? É que coisas destas, que alguns tentam diminuir ou menosprezar alegando o inenarrável argumento do controlo das contas públicas, são um exemplo do pior que um Estado mastodôntico e incontrolado é capaz de produzir. Recordam-se do famoso slogan que deu origem, entre outras coisinhas, à Revolução Americana? Pois é, é que, ao que parece, o estribilho do "no taxation without representation" está fora de moda nas democracias ocidentais. Endividámo-nos até não poder mais para sustentar estados pesados, gordos e ineficientes, e, no fim, como presente pelo nosso bom comportamento na onda onírica que nos trouxe a este desastre, ainda somos assaltados que nem bestas justamente por aqueles que provocaram este dilúvio económico e financeiro. O cidadão comum, como eu e V., só serve para pagar impostos. Nada mais. Servimos apenas e tão-só para abrir os cordões à bolsa e despejar os nossos parcos rendimentos, se eles ainda existirem, na longa manus do Leviatã. V. ouve alguma palavra de agradecimento, algum gesto de gratidão por banda dos salteadores do Poder? Não, e jamais ouvirá. O mínimo que nos pode acontecer, a mim e a V. que me lê, caso não bufemos o Manel Elias, dono da Pastelaria "Doce Mar" onde vamos, todos os dias, comer uma saborosíssima bola de berlim, é pagar uma bela multa. Sim, a opção é clara: ou denunciamos e cumprimos os regulamentos dos mandarins verrinosos, ou incumprimos e sujeitamo-nos à sanha do estadão. E ainda falam em democracia. Se ainda havia alguma dúvida, uma dúvida que fosse, a respeito do esboroamento final da democracia e das liberdades mais fundamentais, ela dissipou-se definitivamente. Como dizia o famigerado diácono do mestre Herman, não havia necessidade.
O Correio da Manhã nada mais tem com que se preocupar? Os seus chefes já pensaram nas consequências e aproveitamento que esta petição poderá ter?
Comece a ter medo do belo conjunto de sala herdado dos seus sogros, assim como dos quadros, livros antigos, prataria ou porcelanas que vieram de casa dos seus pais. Tema por aqueles três fios de ouro que comprou há décadas ou recebeu de presente, sem que disso tenha qualquer factura/recibo. Esta notícia abrangente, consiste em mais uma intenção de controlo da sua vida, numa acintosa coacção moral e há que dizê-lo, deliberada tentativa de extorsão. Apenas falta explicitar como entrarão em casa dos alvos. O ano começa como se esperava, ou seja, estamos todos condenados ao IKEA.
Seria bem melhor se se preocupassem com a procura de fundos comunitários em paradeiro incerto, mas isso é um inconveniente boomerang.
Há quem diga que a política é a arte do possível, que é a luta pela aquisição, manutenção, exercício e expansão do poder, ou que na sua acepção mais nobre é uma das mais moralmente elevadas actividades humanas.
A isto acrescento eu que a política é, em maior ou menor escala, a arte da coacção e da extorsão sob o manto do cinismo e da hipocrisia, com aparentes propósitos nobres a disfarçar a prossecução de latentes fins mais ou menos (i)morais, (i)lícitos ou (i)legais.
Além do mais, se os conceitos de bem comum e vontade geral são falácias e não existem na realidade, pode existir o que se denomina por causa pública?
“Um Estado que canaliza os dinheiros públicos para uma clique de protegidos, sobrevive através da extorsão de recursos ao povo e trata os cidadãos de forma desigual, já não é um Estado. É uma vergonha.” Paulo Morais, do Blasfémias, na Rádio Renascença.