por Fernando Melro dos Santos, em 06.11.12
Almada, 11h00. Carros mudam de faixa acelerando, travando, guinando, marcando o asfalto. Condutores com muita pressa, indo a lado algum.
Palmela, 08h05. Condutores com o campo de visão estrangulado em pináculos de estupidez. Carros que entram nas rotundas a direito, desafiando quem lá circula.
A vida é um erro de paralaxe.
Setúbal, 18h15. Minipreço. Pessoas que envergam a mesma roupa de toda a semana, comprando a medo, alheias ao próprio cheiro. Funcionários por quem só pode sentir-se simpatia, não pela amabilidade mas antes pela aura de total e insanável esgotamento com que se aguentam de pé, hirsutos à terça-feira, registando, entregando trocos.
Saio com as compras e posto-me uns metros adiante para tirar uma foto a qualquer coisa em que reparo. Sinto uma pancada no lombo e passa por mim uma senhora, cinquentas, pequena, sixpack de leite magro na mão direita e um saco na outra. Digo alto, "perdão!", e depois penso que talvez seja chinesa, por não acusar qualquer efeito do som que emiti e por estar, quiçá, habituada a dar encontrões a transeuntes em Nanking ou noutro antro qualquer de formigas. Mas não, a dez segundos de onde me encontro a pessoa estaca, pousa o fardo e vira-se, distante de toda a minha realidade, e abre a porta de um carro. Tornar-se-à uma condutora dentro de breves instantes. Circundará rotundas, sem medo de levar encontrões por saber que também ali quem passa primeiro passa melhor. Para lado algum.
Potente veneno esse que tolda a natural tendência humana para a evolução, produzindo criaturas simiescas em vez de gente.
Ainda consigo ter paciência para apreciar outros dois ecos na memória recente: os artistas estão preocupados por ja não haver quem lhes pague espectáculos. O que faz o violinista ao cair das moedas? E haver quem diga que o dinheiro não lhe chega, despachando quotidianamente sessenta cigarros, cinco quilos de comida para cão, encargos com três carros, ginásio para toda a família, cabeleireiro em semanas ímpares, e o que mais a estrada oferecer.
Não tenho pena nenhuma de Portugal.
por Nuno Castelo-Branco, em 30.07.08