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Se Miguel Albuquerque fosse Carl von Clausewitz, afirmaria sem pudor — "fogo é a política por outros meios". Mas não necessitamos de mais provas. Bastam dez dias de desterro político e administrativo para concluirmos que Portugal não se entende. Quem julgava que o Estado era um todo, parece estar equivocado. A autonomia da ilha da Madeira tomou o continente como refém (ou o seu inverso), e assaltou a república e as ideias de garantia e segurança do Estado. A batata assada da responsabilidade já viajou para aquele alibi disfuncional designado de União Europeia — o tal mecanismo para invocar quando os compadres andam à castanhada. Não se vislumbra a ponta do sol ao fundo do túnel de fumo espesso. Pensava eu que a AGIF (Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais) abrangeria a totalidade do território, incluindo as regiões autónomas. Mas não parece ser o caso. Parece que existem fronteiras políticas e administrativas que não podem ser abalroadas pela imperiosa necessidade de realizar a gestão criteriosa do território nacional na sua totalidade. Não sei se o "deixa arder" constitui ou não o indício de algo mais profundo, a vontade independentista, à laia daquela praticada por certos catalunhenses. A história é fértil em exemplos. O fogo de Smyrna, Turquia, ocorrido em 1922, na derradeira fase da Guerra Greco-Turca teve um papel fundamental nas aspirações nacionalistas quer da Grécia quer da Turquia, e em última instância levou ao estabelecimento do Estado moderno turco sob os comandos de Kemal Atatürk. Eu sei que esta analogia extrapolativa pode ser rebuscada, mas Canadairs no ar são, em tempos actuais, atos políticos. Os jornalistas gostam muito de usar dois termos quando o fogo lavra: "complicado" e "rescaldo". Mas esgravatam muito ao de leve na cinza que assenta arraiais nas reportagens. O que sucede é grave. Mas em Portugal quase tudo é inconsequente.
Somos fantásticos a organizar eventos, mas frequentemente medíocres a planear quase tudo o resto, muitas vezes até coisas básicas. É uma das razões porque muitas políticas públicas não têm a eficácia desejada, a falta de capacidade de previsão e planeamento - sem falar na execução. Há décadas que o país arde todos os anos e ainda não conseguimos criar um dispositivo altamente profissional, hierarquicamente bem estruturado e comandado, de prevenção e combate aos fogos. Estudos e mais estudos, relatórios, avisos e recomendações de especialistas vários ficam arrumados numa gaveta qualquer enquanto, ano após ano, lideranças políticas medíocres e chefias operacionais de competência duvidosa anunciam investimentos de milhões de euros e, quando as coisas correm mal, atropelam-se em falhadas tentativas de spin sobre o que é mais que evidente: o caos na organização dos meios de combate ao fogo. Pelo meio, ninguém estranha nem se indigna por os bombeiros voluntários, heróis no meio disto tudo, se verem forçados a solicitar apoio em coisas básicas, como água e comida, às populações. Junte-se a isto uma sociedade civil anémica, que nem em face da tragédia que aconteceu em Pedrógão Grande pressionou devidamente as lideranças políticas, e temos as condições para continuar a praticar a célebre máxima de Lampedusa que titula este post. Para o ano há mais, como já é habitual.
A tragédia de Pedrógão de 2017 não foi uma tragédia. Resultou inequivocamente de décadas de desgoverno da base geográfica de Portugal. Foi a matriz cultural e é a matriz cultural que impede um genuíno ordenamento do território. A ciência e o saber técnico respeitantes aos fogos e ao seu combate residem em Portugal ao mais alto nível. Tem sido o poder político o principal adversário da paz e ordem sociais. Foram sucessivos governos, formados a partir de partidos de todo o espectro ideológico, que alimentaram o sectarismo, a divisão, a promulgação de interesses parcelares contrários à defesa da integridade e sustentabilidade florestal do país. Assistimos ao descalabro administrativo, à discussão de chefias e forças de intervenção, ao caos burocrático e processual - estão todos em pânico pela putativa perda de vantagens e subvenções. Mas assistimos também à incapacidade de disciplinar as populações que desobedecem sem reservas às ordens das autoridades. Confirmamos também, este ano, à luz das perdas humanas de Pedrógão em 2017, o medo irrascível e desesperado para salvar vidas humanas, deixando o pasto e o mato à mercê do fogo. Ou seja, o cadastro intensamente negativo da perda de vidas humanas do ano passado será saneado pela possível poupança das mesmas no cenário de operações de este ano. O governo de António Costa parece ter colocado a tónica nessa dimensão para poder reclamar o grande sucesso da protecção das populações - ardeu tudo, mas ninguém foi carbonizado. Falamos da síndrome pós-traumática de Pedrógão. Testemunhamos, incredulamente, a contradição consubstanciada no avolumar de meios humanos e técnicos de combate ao fogo que de pouco tem servido para inverter a tendência de ganho do fogo - mais meios e mais homens para combater as labaredas não se traduz em vitórias certas. A noite será longa, assim como as discussões infrutíferas sobre responsabilidades a atribuir. Eucaliptos dizem uns, vento sopram outros.
A agora ex-ministra da Administração Interna já não tinha condições para continuar no cargo há, pelo menos, 4 meses. Era inevitável que saísse do Governo, embora não seja despiciendo referir que foi necessário o Presidente da República intervir para António Costa se submeter ao que já era mais do que evidente. Mas agora, independentemente da dança das cadeiras no Governo, o que importa é saber se o Primeiro-Ministro vai tornar a reforma do dispositivo de prevenção e combate aos fogos uma prioridade nacional, alocando os recursos que forem necessários para evitar que se volte a repetir algo que possa assemelhar-se ao que aconteceu no passado fim-de-semana e em Junho. Agora que veio a chuva, esperemos que não se limite a mudar pouca coisa para que, na essência, fique tudo como está e para o ano haja mais do mesmo, como vem acontecendo há já cerca de 40 anos. Quanto mais não seja, e como Marcelo Rebelo de Sousa deixou patente no seu discurso, para assegurar a sobrevivência do seu Governo - algo que parece motivar o Primeiro-Ministro muito mais do que considerações éticas, sobre o interesse nacional ou a respeito das funções primordiais do Estado.
A política tem o condão de revelar a ausência de humanidade dos proponentes. O que mais chocou na intervenção do primeiro-ministro António Costa não foram os enunciados sobre políticas florestais nem a ausência de um pedido formal de perdão às famílias das vítimas. Para além da racionalidade intransigente existe algo que é captado instantaneamente pelos destinatários de mensagens. É uma frequência de onda que não se detecta nas frases. É uma vibração que não passa na lógica. Refiro-me ao olhar empático que transcende a política, a ideologia, o poder, os partidos e as convicções - trata-se de humanidade, mais nada. Se prestarmos atenção ao perfil de António Costa não sentimos na sua alocução o estado embargado da alma, a sinceridade no olhar que alcança onde mais nada chega. E Portugal regista em simultâneo o exercício de duas figuras de proa que se encontram nos antípodas desse espectro afectivo-racional. Numa extremidade da régua temos o presidente da república Marcelo Rebelo de Sousa que se manifesta nessa toada de emoções e sentimentos que o traiem no excesso - uma forma de estar que oblitera a capacidade crítica objectiva, obrigatória. No extremo oposto do espectro encontramos António Costa que é incapaz de manifestar o sentimento que vive fora da casa política. Assistimos ontem, incrédulos, ao debitar de axiomas de indução lógica. Faltou-lhe a intuição. Faltaram-lhe os instintos. Nem por um momento sequer sentimos a vulnerabilidade que deveria resultar dos eventos trágicos que devastaram Portugal. Foi essa frieza, comparticipada pela ministra da administração interna Constança Urbano de Sousa, que colidiu com a natureza solidária e sofrida dos portugueses. Os portugueses sentiram o terror dessa ausência. Viram o vazio do olhar. O lider que deveria guiar a nação é incapaz de se conectar para além da sua condição política. António Costa demonstrou os limites funcionais do seu perfil. Provou a sua tecnocracia quando o que o povo de Portugal necessitava era de algo à escala de alguém que também deve saber assumir a sua fragilidade, a sua insuficiência. Se essa aura existisse e fosse sentida, dispensaríamos o conceito de demissão, a perseguição seria de outra natureza. A responsabilidade política passaria a ter contornos distintos, próxima da agregação emocional, da tribe de inválidos, da comunidade de humildes que se remete ao silêncio, à prece das cinzas. António Costa deveria ter sido pequeno nessa hora fugaz que perdura e viverá na eternidade, na memória colectiva.
Os políticos que não respeitam a vida e desonram a morte não têm condições para ser lideres. António Costa e Constança Urbano de Sousa ainda não realizaram o diálogo filosófico e ético a que estão obrigados. Independentemente de critérios técnicos, logísticos e operacionais, o primeiro-ministro e a ministra da administração interna esquecem que respondem perante Deus e imperativos de ordem moral. A comunidade de crentes não aceita a missa que reitera que "as comunidades têm de se tornar mais resilientes". Este discurso lembra modelos de selecção natural aplicados por regimes fascistas ou nacional-socialistas. De acordo com a Constança Urbano de Sousa, a tragédia e as mortes tornarão as sucessivas gerações melhor preparadas para o apocalipse final. O determinismo patente nestas afirmações, desprovidas de empatia e religiosidade, remete as vítimas e familiares para a odisseia trágica, para a anulação existencial. A entidade sagrada foi totalmente obliterada em nome de considerações políticas. A ministra da administração tem o desplante de agradecer os profissionais de saúde por terem anulado a greve prevista, mas pode colocar debaixo do travesseiro as quase cem mortes e dormir descansadinha - Tancinha.
(foto CMJ)
O PAÍS CONTINUA A ARDER.
A impunidade com que o incendiário é premiado choca.
O governo estilhaçado por vários escândalos atribui a uma ministra baralhada a contabilidade baralhada dos mortos. Afinal, são apenas gajos da província, não foi ninguém conhecido.
Comunistas, bloquistas e socialistas não conseguem comandar, coordenar nem prevenir. E este país vai ardendo lentamente.
Importante mesmo é saber o índice de popularidade da coisa que faz de governo.
A malta gosta é de porrada.