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A nossa amiga e frequente visitante Isabel Moreira, teve a gentil desfaçatez de me enviar esta foto (1) do meu último ano na FLL (1986), recordando também um episódio que há muito esquecera, mas que não deixa de ser característico daquela época. Apenas pouco mais de uma década decorrida desde o 25 de Abril, o espírito partidário ainda efervescia e as agremiações eram encaradas como hoje são vistos os clubes de futebol, arrebanhando fanáticos incondicionais. Os militantes davam tudo o que tinham e trabalhavam noites inteiras na azáfama do servio nas sedes e nas colagens de rua, fizesse frio ou calor. Era um labor desinteressado, sem recompensa material e talvez por isso mesmo, um tanto irracional, como convém.
A Isabel recordou-me um desses casos de burburinho politiqueiro a que eu e o meu irmão - espero que ele não se importe de aqui relatar o caso - nos entregávamos frequentemente. Costumávamos ir treinar a um ginásio de bairro na Álvares Cabral, o ACM. Quase todas as tardes lá arranjávamos a conjugação de horários necessária para passarmos duas horas entretidos com o exercício que na altura, era também um prazer e oportunidade de convívio com amigos e conhecidos que nos explicavam os truques dos pesos e halteres, a alimentação desejável e uma certa disciplina na perseverança. Geralmente utilizávamos o machimbombo (2) 38 da Carris para regressar a casa, ao Campo Grande. Não havia dia em que não provocávamos um pequeno motim a bordo, pois já conhecíamos a táctica infalível para a previsível explosão.
Começávamos por abordar um assunto relativo à situação política do momento, ou referíamos esta ou aquela personalidade, podendo também estender a armadilha a temas ainda escaldantes, como a descolonização ou a mal negociada adesão à CEE. Falávamos de forma audível, aparentando distracção, mas seguros de sermos escutados. Nem tínhamos ainda chegado ao Marquês e alguns rosnares eram já audíveis, iniciando-se discussões paralelas à nossa. Uns manifestavam o desagrado ou o apoio ao que dizíamos e tudo isto, sem nos dirigir palavra. Quase estourávamos de tanto conter o riso e sabíamos exactamente como deitar mais gasolina ao fogo, disso dependendo a evolução das conversas alheias.
Naquele dia, a Isabel tinha tomado o transporte na paragem da Fontes Pereira de Melo, junto à EDP e assim que entrou, viu-nos e cumprimentou-nos, sentando-se um pouco mais atrás. É claro que naquele momento a coisa já ia grossa e a adjectivação muito pesada, enquanto o Miguel e eu próprio fingíamos continuar a nossa amena cavaqueira. A certa altura, parece que no banco detrás, dois fulanos se pegaram numa violenta quezília, com insultos mútuos e ameaças de pancadaria de criar bicho. A coisa foi alastrando pela camioneta e quando chegámos ao Saldanha, o 38 já se assemelhava mais a um manicómio rolante, numa gritaria ensurdecedora, com o motorista a ameaçar chamar a guarda. Evidentemente e cumprido o papel incendiário, os dois maninhos já se limitavam a rir e a ocasionalmente lançar mais uma ou outra atoarda que mantivesse o vulcão prestes a sofrer uma explosão piroclástica. Neste momento, o palavreado daquela gente atingira os píncaros da ordinarice, com copioso recurso a mães putativas e respectivos aparelhos reprodutores, num afã prodigioso de utilização do calão de que a nossa sagrada língua é tão maravilhosamente generosa.
Chegados à paragem diante do Tatú, no Campo Grande, despedimos-nos calmamente da Isabel e saímos como se nada se tivesse passado. Para nós, aquilo era normal e quase rotineiro e para os outros, habituados às peixeiradas de que os "grandes" eram exemplos que a RTP nos metia casa adentro, apenas um descarregar de adrenalina. Bons tempos, aqueles...
1) Por acaso, a Cristina Mendes, a minha colega que é prima da Isabel, já me tinha oferecido uma cópia. Estávamos na época do Footloose e do Dirty Dancing do Patrick Swaize e claro, seguia a tendência, desde a roupa ao corte de cabelo com risco ao meio. O local situa-se na rua da Misericórdia, diante da galeria S. Francisco. O restaurante ainda existe. Publico a foto, porque gosto dela, tomem-na como uma Vanitas. Sem crime.
2) Autocarro no dialecto do Sul do Save, província de Lourenço Marques