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Para atenuar os efeitos nefastos na mioleira, gerados pela verborreia incessante de políticos em campanha e comentadores de serviço em Portugal, hoje volto-me para outro personagem toldado por manias de grandeza europeia. Macron Bonaparte, que ambiciona ser o lider da Europa, não se inibe de produzir declarações no mínimo inflamatórias e que colocam em risco nações europeias. Ao sugerir a ideia de colocação de soldados de países europeus no teatro de operações da Ucrânia, fala como se já houvesse um consenso militar, como se já existisse um exército da União Europeia, como se a Europa não dependesse da sombrinha protectora dos EUA e por extensão da NATO — e como se a Rússia não existisse. Um lider que produz este género de declarações, esconde algo mais dramático na manga. A França que se encontra a braços com uma revolta agrária, é sobretudo uma sociedade fracturada, dividida e guetizada, fruto da realidade islâmica e de décadas de pilarização. Macron encontra assim um modo de incendiar a casa europeia, uma vez que França representa o maior exemplo na Europa de como a integração falhou. Não me refiro à integração europeia — que também padece de males, mas da sua própria sociedade, da qual os cidadãos mais abastados fogem para encontrar refúgio em Portugal, no bairro agora conhecido por Champs d´Ourique.
No final da tarde de 14 de Julho de 1789, Luís XVI, distante umas léguas de Paris, não podia ter certezas quanto aos acontecimentos daquele dia e assim limitou-se a apor "Rien" à entrada referente àquela terça-feira.
Ontem a situação foi diferente, pois decerto Macron viu em directo o que se passava de norte a sul da França e não deve ter compreendido que não se trata apenas de questões de preços, pois existe muito mais combustível à espera da chispa. Naquele país os petits-riens podem ser seguidos através das redes sociais, da tv, rádio, e "aipádes". Como diz o outro, let's see what happens.
Parece que muita gente terá descoberto, com um espanto inusitado, após a final do Mundial de futebol, que em tempos a França foi um império colonial. Ora, boa parte do país da “liberdade, igualdade e fraternidade” cultiva a concepção subjectiva de nação, que tem raízes em Ernest Renan, para quem a nação não assentava em critérios como a raça, o território, a língua ou a religião, sendo, na realidade, “uma alma, um princípio espiritual,” no qual os indivíduos concretizam “o desejo de viver em conjunto, a vontade de continuar a fazer valer a herança que se recebeu indivisa.” Mas um certo nacionalismo assente na concepção objectiva, tributária de diversos autores franceses, alemães e britânicos e com especial relevo na cultura germânica, ignorando que a história humana difere da zoologia, parece assistir a uns quantos que se esquecem do que foi e do que ainda hoje é Portugal, cuja Selecção nacional de futebol tem jogadores originários de vários países da CPLP. Por mim, subscrevendo aquele Fernando Pessoa para quem a pátria era a língua portuguesa, preferia cumprir o abraço armilar no futebol e ter num Mundial uma equipa da lusofonia. Já que noutros domínios o triângulo estratégico Lisboa-Luanda-Brasília parece funcionar mal, talvez ajudasse a causa da lusofonia ter na mesma equipa Ronaldo e Neymar, Casemiro e William, Marcelo e Pepe, Gelson e Philippe Coutinho, Danilo e Fernandinho.
A eleição de Mário Centeno para Presidente do Eurogrupo numa altura em que a França tem um Presidente com uma visão para o futuro da União Europeia e em que a arrogante e obtusa dominação merkeliana parece ameaçada, é uma boa notícia. Mas o desfecho das negociações para a formação de governo na Alemanha será determinante para o futuro da União Europeia.
Jürgen Habermas, "What Macron Means for Europe: 'How Much Will the Germans Have to Pay?'" (destaques meus):
When looked at dispassionately, though, it is just as unlikely that the next German government will have sufficient far-sightedness to find a productive, a forward-looking answer when addressing the question Macron has posed. I would find some measure of relief were they even able to identify the significance of the question.
It's unlikely enough that a coalition government wracked by internal tension will be able to pull itself together to the degree necessary to modify the two parameters Angela Merkel established in the early days of the financial crisis: both the intergovernmentalism that granted Germany a leadership role in the European Council and the austerity policies that she, thanks to this role, imposed on the EU's southern countries to the self-serving, outsized advantage of Germany. And it is even more unlikely that this chancellor, domestically weakened as she is, will refrain from step forward to make clear to her charming French partner that she will unfortunately be unable to apply herself to the reform vision he has put forth. Vision, after all, has never been her strong suit.
(...).
She too is fully aware that the European currency union, which is in Germany's most fundamental interest, cannot be stabilized in the long term if the current situation - characterized by years of deepening divergence between the economies of Europe's north and south when it comes to national income, unemployment and sovereign debt - is allowed to persist. The specter of the "transfer union" blinds us to this destructive tendency. It can only be stopped if truly fair competition across national borders is established and political policies are implemented to slow down the ongoing erosion of solidarity between national populations and within individual countries. A mention of youth unemployment should serve as example enough.
Macron hasn't just drafted a vision, he specifically demands that the eurozone make progress on corporate tax rate convergence, he demands an effective financial transaction tax, the step-by-step convergence of the different social policy regimes, the establishment of a European trade prosecutor to ensure that the rules of international trade are adhered to, and much, much more.
(...)
It is this self-empowerment of European citizens that he means when speaking of "sovereignty." When it comes to identifying steps toward institutionalizing this newfound clout, Macron points to closer cooperation in the eurozone on the basis of a joint budget. The central and controversial proposal reads as follows: "A budget must be placed under the strong political guidance of a common minister and be subject to strict parliamentary control at (the) European level. Only the eurozone with a strong and international currency can provide Europe with the framework of a major economic power."
By demonstrating the pretense of applying political solutions to the problems facing our globalized society, Macron distinguishes himself like few others from the standard fare of chronically overwhelmed, opportunistic and conformist politicians that govern day after day with little in the way of inspiration. It's enough to make you rub your eyes: Is there really somebody out there who wants to change the status quo? Is there really someone with sufficient irrational courage to rebel against the fatalism of vassals who unthinkingly kowtow to the putatively coercive systemic imperatives of a global economic order embodied by remote international organizations?
(...).
More than anything, though, political parties agree that European issues are to be carefully avoided in national elections, unless, of course, domestic problems can be blamed on Brussels bureaucrats. But now, Macron wants to do away with this mauvaise foi. He already broke one taboo by placing the reform of the European Union at the heart of his election campaign and rode that message, only one year after Brexit - against "the sad passions of Europe," as he said - to victory.
That fact lends credibility to the oft-uttered trope about democracy being the essence of the European project, at least when Macron says it. I am not in a position to evaluate the implementation of the political reforms he has planned for France. We will have to wait and see if he is able to fulfill the "social-liberal" promise, that difficult balance between social justice and economic productivity. As a leftist, I'm no "Macronist," if there is such a thing. But the way he speaks about Europe makes a difference. He calls for understanding for the founding fathers, who established Europe without citizen input because, he says, they belonged to an enlightened avantgarde. But he now wants to transform the elite project into a citizens' project and is proposing reasonable steps toward democratic self-empowerment of European citizens against the national governments who stand in each other's way in the European Council.
As such, he isn't just demanding the introduction of a universal electoral law for the EU, but also the creation of trans-national party lists. That, after all, would fuel the growth of a European party system, without which the European Parliament will never become a place where societal interests, reaching across national borders, are collectively identified and addressed.
Un, deux, trois, esta senhora.
Bem conhecida por ser gerente-em-chefe do FMI, desempenhou antes funções oficiais em França, mas o que a notabilizou foram as outras, as oficiosas de que muito se falou. O previsível vencedor antecipado do escrutínio de amanhã, não diz quem escolheu para primeiro-ministro do seu primeiro governo, mas há quem garanta que será "à lagardére". Se assim for, esperemos então pelos entusiasmados bcbg lacrimejantes e ruborizados de excitação que amanhã à noite se reunirão pela enésima vez na Bastilha, comemorando a ..."vitória do povo que vale a pena, da paz e democracia, da liberdade, igualdade e fraternidade".
Bem feito!
Numa França encardida com nódoas indeléveis de colaboracionismo discute-se a Chefia do Estado.
Marine, na minha opinião, já ganhou. E já ganhou porque vai a votos numa 2ª volta com os votos exclusivos dos seus apoiantes/eleitores.
Macron representará uma manta de retalhos de votos que vai dos Gaulistas aos comunistas.
Atrevo-me a fazer uma analogia com as eleições legislativas portuguesas, em que o partido mais votado não governa porque uma geringonça composta por socialistas e partidos não democráticos como o PC ou a extrema-esquerda se junta para impedir que o mais votado cumpra o seu mandato.
Por mim, seja qual for o resultado, Marine Le Pen já ganhou, independentemente de não poder exercer o seu mandato mas representar o maior grupo de votantes.
Como no pós-guerra, os analistas, jornalistas e politólogos irão reverberar sobre as vantagens do miúdo que se apaixonou pela mãe.
Pode ser que percebam desta vez o complexo de Édipo à francesa.
Arrisco mais uma vez com palpites sobre o resultado final das eleições presidenciais francesas. O meu track-record recente é deplorável. Enganei-me com o Brexit e estampei-me com Hillary. Ou seja, não ofereço garantias do que quer que seja. No entanto, avanço com alguns cenários conceptuais, com um modelo operativo ideológico questionável. Assumindo a vitória final de Macron devemos levar em conta o seguinte. O Emanuel tem de cantar uma parte da cantiga pop. Afinal foi mais de 20% do eleitorado que escolheu Le Pen nesta primeira ronda, e nessa medida, como em semelhante medida de um choroso socialista Fillon, Macron terá de acomodar vontades e desejos que não os seus. Nesse terreno alegadamente amorfo de centralidades ideológicas, se Macron for de facto o próximo presidente, terá de incluir uma parte da agenda patriótica de Le Pen, outra parte socialista-tributária-penalizadora de Fillon, e agradar ao firmamento financeiro de onde provém, onde fez escola na banca de investimento. O pilar de desmontagem da globalização de que se serve Le Pen não é totalmente descabido. Afinal, foi em nome da eficiência produtiva que a mesma avançou e simultaneamente cavou o fosso largo de justiça económica e social, entre abastados e nem por isso. Nesta panóplia de considerações a ter em conta, Macron formará a sua presidência numa espécie de geringonça atípica, ou, traindo os intentos enunciados, e nesta ante-câmara de derradeira campanha política, assumindo sem pudor o espaço ocupado por Le Pen. Os socorristas Fillon ou Hamon, ao fazerem-se ao piso de Macron, servem duas causas; por um lado procuram derrotar Le Pen, e por outro lado entusiasmam-se com a possibilidade de serem recrutados politicamente. Em todo o caso, devemos levar em conta que as ocorrências francesas determinarão novas ordens. No plano doméstico da nação gaulesa, mas sobretudo ao nível da arqueologia da União Europeia (UE) que ainda vive a ilusão das grandes famílias políticas europeias. Embora se sirvam com saudosismo de grandes chavões de referência e figuras abstractas, a verdade é que muitos terão de mudar de chip rapidamente. Portugal, mas sobretudo os socialistas cá do burgo, em vésperas de comemoração democrática-revolucionária, terão de encontrar figuras de referência no algo decadente quadro socialista pan-europeu - os socialistas franceses não estão disponíveis, não servem para grandes ideários. Não esqueçamos que existem muitos que desejam a eutanásia da UE, o desfalecimento endémico do projecto. Encontramo-nos sem dúvida num momento chave da história da Europa. Mas tardamos em encontrar a porta certa neste labirinto de possibilidades.
Devido a afazeres profissionais, durante um certo período tive de visitar Paris bastas vezes e foram tantas que praticamente dividia a residência entre Lisboa e aquela capital. Era um penoso dever bastante agradável numa cidade que cumpria fielmente todos os lugares comuns das luzes cintilantes, quilómetros de museus, vitrinas opulentas e tudo o mais que se sabe.
Ficava então instalado no XVIéme, nas imediações do Trocadero, uma zona a abarrotar de celebridades, gente de pasta, uns tantos exilados voluntários ou não como a grandiosa Xabanu Farah Diba ou a esquiva Marlene Dietrich. Era este o ambiente. O apartamento? Intermitentemente vazio e pertencente a uns amigos, claro.
Naquele prédio sito nas imediações da G. Mandel, imperava uma imponente porteira cuja nacionalidade facilmente se adivinha, pois isto também fazia então parte integral dos já citados lugares comuns acima apontados. Era uma belíssima alentejana alta, bem torneada, lábios e peitorais protuberantemente carnudos e com um não sei quê de Amália fisicamente muito mais dotada. Nunca, jamais a vi de bata e ar tristonho e pelo contrário saía à rua impecavelmente vestida, bem ciente de saber sempre ser notada. Para cúmulo da felicidade era orgulhosa, altiva e apenas ficava naquele meio sorriso bem educado que não dava azo a confianças. Inacreditavelmente não tinha aquele sotaque típico que tão bem caracteriza as nossas elites caseiras em todas as suas pretensões cosmopolitas. Ia todas as semanas ao teatro, lia, visitava exposições e comigo jamais soltou boca fora qualquer galicismo. Nunca.
Como se sabe, aquela zona de Paris é pródiga em blondasses naturais ou químicas, umas que já viram melhores dias e outras que mesmo o passar dos anos em nada mudam o aspecto geral bastante razoável. Naturalmente corteses e friamente distantes, davam-se a ares não se sabe bem de quê e viviam recolhidas nos seus não-afazeres quotidianos. Era o caso daquele prédio onde a luso-majestática Maria Antonieta ditava a sua lei que em boa verdade era timidamente obedecida por todos. Os residentes resmungavam pela surdina e abandonado o átrio, os decibéis dos latidos iam subindo à medida que galgavam as escadas, afastando-se da despótica Senhora que fazia sombra a todas as outras. A Antonieta abertamente se ria e virando-se para mim, disparava com um esgar desdenhoso:
- Estás a ver, é assim que devem ser tratados, é metê-los a todos nas suas tocas! Pffffff...era só o que mais me faltava!
E passava adiante, falando das suas saudades do nosso país que ainda imaginava ser o seu. Nunca me atrevi a dizer-lhe que de facto a França, ou melhor, o ambiente que ali existia muito fizera por ela e como inteligente pessoa que era, nem sequer disso dava conta, tudo aquilo que mostrava tornou-se numa naturalidade que advinha da sua forte personalidade rica e multifacetada.
Um dia, chegando a meio da manhã, deparei com esta Senhora numa acalorada discussão com uma pequena e rechonchuda blondasse do edifício, uma verdadeira doméstica burguesa sem qualquer tipo de chamariz e bastante vulgar na expressão portuguesa do termo. Não sei qual teria sido a origem da disputa, mas a certa altura a famosa ditadora da portaria acabou com o assunto de forma lapidar, vincando bem cada palavra:
- Est ce que vous savez mon nom, Madame? Ma-ri-e An-toi-ne-tte, Ma-ri-e Ant-toi-ne-tte! ICI, LA REINE C'EST MOI!
Clac! (porta fechada com estrondo na cara da pequena bourgeoise atrevida)
E era mesmo a rainha do prédio, batia todas as outras por KO absoluto.
Guardo para mim as desconfianças, mas o que terá ela decidido para hoje?
A ver vamos quem ganha a corrida. Se o festival europeu da canção populista ou se a melodia da traição de Trump. Falamos de Democracia, naturalmente. Em qualquer um dos casos, os processos decorrem de prerrogativas firmadas em Constituições e materializam-se quer em processos eleitorais ou mecanismos de controlo. Afastemo-nos por alguns instantes da contaminação ideológica e concentremo-nos nas liberdades e garantias. Em França, Le Pen tem o direito inalienável de se propor como solvente do dilema existencial daquele país. Nos Estados Unidos (EUA), Trump, que já se senta na cadeira do poder, é agora obrigado a rever algumas premissas de sustentação. Na grande competição de legitimizações, os lideres efectivos ou prospectivos não se livram dos mecanismos de controlo. Nessa medida, os EUA levam a vantagem. Trump não pode abandonar o dólar americano e iniciar um Americexit. Está preso nessa federação consolidada e responde perante o FBI. Le Pen, por seu turno, pode rasgar sem dó ou piedade o Tratado de Lisboa, o Euro e fazer-se à vida soberana. Nos EUA, a soberania também se exprime na acção da agência federal de investigação que virará o prego caso seja necessário e à luz de evidências de traição que parecem estar a ganhar contornos inegáveis. A União Europeia (UE), com todos os seus salamaleques burocráticos e danças de comissão, pura e simplesmente nada pode fazer. Está de mãos atadas à cadeira da sua própria construção política fantasiosa. Parece-me ser mais um pecado mortal, para além de tantos outros, que a alegada "Constituição" da UE não tenha sequer pensado em mecanismos jurídicos de controlo recíproco. Se houver mão russa nas eleições francesas, os estados-membro da UE ficam a ver navios passar. Até ao momento registámos vontades eleitoriais unilaterais. Foram os britânicos que democraticamente decidiram alargar o canal e cortar o cordão que ligava o Reino Unido ao "continente" e iniciar o Brexit. Mas imaginemos por um instante, integrando no nosso espírito uma extrapolação radical, que a expulsão passa a ser necessidade de auto-preservação da UE. Suponhamos que, volvidos alguns meses, se vem a descobrir a mão invisível de Putin nas eleições em França e que o excelso acervo democrático transparente e idóneo da Europa é posto em causa. O que farão os magníficos Junckers e Dijsselbloems da UE? Será que chamam nomes indigestos aos gauleses? Será que lhes atiram à cara que são uns camemberts malcheirosos e uns míseros flauberistas? E será que ficam a ver Le Pen passar?
Os democratas franceses nada aprenderam com os mais recentes eventos que abanaram o sistema político norte-americano. A lição de Hillary não foi assimilada. São tantos os participantes a concurso nesse campo ideológico que Marine Le Pen deve estar a esfregar as mãos de contente. Sarkozy jafoste. E agora Fillon mignon apresenta-se com grandes desígnios que se inscrevem nessa velha escola de funcionalismo público, impostos mais ou menos baixos, e depois, como se ninguém reparasse, lá mete um referendo sobre a quota de imigrantes como se a virtude democrática das massas pudesse ser exultada de um modo honesto. Ou seja, defende o que Trump defende, mas não assina o despacho. Remete para o povo essa decisão nefasta. Sacode preventivamente a água do capote do nacionalismo residente na marselhesa. Em plena época de falências do politicamente correcto o filão de Fillon não pega. Nas cidades e nas serras, e nos banlieu, o código de sobrevivência é outro. Os franceses de pleno direito, que em tempos não o eram, são os primeiros a pôr trancas à porta, a barrar a porta a "ladrões" de empregos. E há mais. A alegada moderação de Trump apenas ajuda a consolidar a ideia de que afinal o conservadorismo não se faz equivaler a extremismos proto-fascistas. Vivemos uma época de grandes rupturas. O descarrilamento das instituições clássicas, mas também da linguagem que tarda em se refrescar para acompanhar o novo glossário de intenções políticas.
Estou a mudar. E não sou o único. Não deixei de acreditar. Mas as minhas convicções também não se encontram em territórios perfeitamente delineados. Dentro de dias farei anos, e se me confinasse a uma matriz definida estaria arrumado, seria um velho - mais velho do que o mero ano que irei adicionar à minha existência. Durante anos a fio fomos arremessados sem dó nem piedade de um sistema de valores políticos para o seguinte, de uma promessa grandiosa para um juramento ainda maior, e sem pudor, fomos aceitando essa modalidade de fé, essa religião política. Encontramo-nos agora num cruzamento, no confronto entre os medos, as expectativas, as convenções e preconceitos que se sedimentaram no nosso espírito e toldaram as nossas consciências. Somos adeptos de uma modalidade de descrença em particular. Por força da dependência crónica do juízo dos outros reduzimo-nos a unidades de conformidade, de passividade perante uma narrativa agora corroborada por eventos que alguns designarão de surpreendentes. No entanto, não existe nada de excêntrico na eleição de Trump. Os americanos esbanjaram tanto tempo para encarar a sua própria decepção. Não souberam repartir a tarefa de um modo gradual, faseado. Atingiram a velocidade de cruzeiro de uma máquina desgovernada, contrafeita. Pactuaram com os termos de identidade e residência em Washington dos demais actores da mesma epopeia de ascensão e apenas ascensão. Agora que a encomenda chega, o espanto parece ser a expressão facial mais corrente. Mas fomos nós que produzimos o estado da Nação, e seremos nós que iremos escrever os próximos capítulos europeus. Os discursos e a letra dos mesmos darão lugar a algo distinto, com grau de parentesco ou não. Somos simultaneamente responsáveis e testemunhas de um processo irreversível. Mas somos letárgicos, lentos. Sabemos sempre tarde demais como poderia ter sido, como desejaríamos que tivesse sido. A política assente na antecipação é uma natureza morta. Estamos sempre em dívida e estamos quase sempre atrasados. E como deixamos que outros tomem a dianteira, queixamo-nos de um modo injusto. Fomos nós que nos paralisamos em convenções e ideologias consideradas estanques e vitalícias.
Uma questão que marca a actualidade e tem alimentado indignações e tomadas de posição um pouco por todo o lado é a proibição da utilização do burkini em França.
Como o discurso político nas sociedades ocidentais é, em larga medida, enformado pelas ideias de que é proibido proibir, igualdade e tolerância, não sendo também despiciendo salientar o ódio votado por muitos aos seus próprios países e à matriz cultural onde nasceram e foram socializados, temos vindo a assistir a algo que considero verdadeiramente espantoso por parte dos que criticam a decisão francesa: a comparação com freiras que utilizam os seus hábitos quando vão à praia.
Ora, esta comparação, a coberto da defesa da liberdade de escolha na indumentária, pretende tratar como objectivamente igual aquilo que é desigual e que tem uma natureza simbólica muito diferente. Enquanto o burkini, como a restante indumentária muçulmana feminina, tem um carácter coercivo imposto por uma religião que não só é estranha ao Ocidente, como pretende submetê-lo ao seu jugo, o hábito é um traje cuja utilização resulta de uma escolha voluntária por parte da freira que o enverga. Enquanto a indumentária feminina muçulmana simboliza a submissão de mulheres a quem é retirada qualquer liberdade de escolha, o hábito das freiras simboliza a dedicação voluntária à religião cristã que, gostemos ou não, está na base da matriz cultural ocidental - e, saliente-se, eu sou agnóstico. Aliás, como assinala Mark Vernon em How to be an Agnostic, ser agnóstico só faz sentido no contexto do cristianismo - não será, com certeza, por mero acaso que a apostasia é crime na generalidade dos países muçulmanos, sendo, em alguns, punida com pena de morte. Adaptando um dito atribuído a Franklin D. Roosevelt, diria que "As freiras podem envergar uma indumentária religiosa, mas é a nossa indumentária religiosa." A indumentária feminina muçulmana é estranha ao Ocidente e contém em si a crítica aos valores Ocidentais que enformam os direitos humanos, os direitos da mulher e a liberdade individual. Por tudo isto, a proibição do burkini em França é uma decisão correcta e corajosa, ao passo que a permissão de utilização do hijab nos uniformes policiais no Canadá e na Escócia é mais um contributo para o suicídio cultural ocidental.
Não fosse a desorientação que grassa em muitas alminhas ocidentais e provavelmente não assistiríamos a esta comparação reveladora do suicídio cultural ocidental. Para quem ainda não tenha percebido, nós estamos em guerra com outra civilização, a do islão, mesmo que o não queiramos. Continuar a enterrar a cabeça na areia e fingir que somos todos iguais e que é possível a generalidade dos muçulmanos adoptar os valores ocidentais, é apenas adiar encarar o inevitável: o islamismo elegeu-nos como inimigo e temos de o enfrentar em várias frentes.
O congresso do Partido Socialista baseou-se numa falsa premissa. Na ideia de que o mundo tende a regressar ao que era ou sempre foi. Existe um preconceito por detrás desta ilusão. A noção de que a ideologia (socialista, de Esquerda?) detém os elementos inquestionáveis de superioridade moral e material - e que é desejável. Mas sabemos há décadas que essa régua já não serve. Foram eventos que transcendem bitolas políticas que determinaram o curso da história nos últimos tempos em Portugal. Foi o dinheiro, foram os mercados e foi a ganância. Atributos repartidos pelos principais actores. Os socialistas - porque distribuiram aos seus amigos construtores os primeiros dinheiros comunitários. Os social-democratas - porque acreditaram na desregulação e nas virtudes intrínsecas do neo-liberalismo. Os comunistas - porque viveram no domínio da utopia e da irrealização. E mais recentemente o Bloco de Esquerda - por apostar em causas não prioritárias como o orgão sexual, o cão ou o gato. Sim, tudo isto e muito mais que falta elencar, coloca Portugal neste momento preciso e não no saudosismo lírico de um Alegre ou de um Guterres de ocasião. Mas existe algo que poderá determinar com maior intensidade o guião político e económico dos próximos tempos. A França, que está em grandes apuros, aparece agora como a notre dame dos aflitos sugerindo que Portugal seja poupada a sanções. Mas essa reza traz água no bico. Os gauleses estarão em ainda piores condições do que os portugueses. Aquele estado de França vai ruir. O outro evento em que penso tem um pé dentro da caixa e outro fora, e deve ser levado muito a sério. Esse cisne negro tem um nome: Brexit. A saída dos britânicos da União Europeia (UE) acarreta consequências tenebrosas para Portugal. A centena de milhar de trabalhadores portugueses que se encontra nesses territórios será obrigada a pensar na expressão monetária do seu rendimento - a libra inglesa está em queda acentuada. Acresce uma outra dimensão. A haver um Brexit, assistiremos à expressão substancial de uma modalidade distinta de nacionalismo - primeiro os britânicos. Não, não é a Áustria, não é a Húngria. Serão os britânicos a dar azo extremo à insularidade, ao proteccionismo, e em última instância, ao início do processo de desmembramento da UE. António Costa, europeísta convicto quando a música lhe convém, não referiu essa hipótese existencial. A geringonça, espalhada ao comprido por diversas obrigações contratuais, não é capaz de pensar sobre esta terceira via. Para esses, que estão no governo, existem bons e maus, certos e errados, e uma categoria inclassificável: a sua.
Desejava deixar a poeira assentar, mas os eventos que assolam a Europa ultrapassam a falsa expectativa de um status quo. Encontramo-nos na torrente de transformação, na tempestade que se multiplica por maiores ou menores remoinhos, a Leste e a Oeste. Em política não existem coincidências. Existe um alinhamento que extravasa análises retrospectivas, depois do sucedido. Por exemplo; a efectivação da decisão tomada pelas autoridades gregas para remover migrantes do campo de refugiados Idomeni, acontece apenas após o desfecho das eleições presidenciais na Áustria. E porquê? Porque se Hofer tivesse ganho as eleições, os gregos certamente que não avançariam com a remoção autoritária dos refugiados. Seriam imediatamente equiparados a outros quadrantes ideológicos (distantes mas próximos) - à extrema-direita. Ou seja, deste modo a acção dos gregos passa despercebida. Não causa grande alarido ideológico. Afinal trata-se da Esquerda que não se deixa contaminar por desfalecimentos éticos, pelo uso da força - a troco de dinheiro fresco? Este encadeamento de ideias não é de todo rebuscado. É assim que funciona a política que não distingue as dimensões domésticas e internacionais, a oportunidade do calendário apertado. É isso que se está a passar na Europa - um mecanismo de trocas convenientes no contexto de uma União Europeia cada vez mais falha no que diz respeito aos seus princípios constitutivos. Os nacionalismos assumem-se porque já não se consegue realizar a destrinça dos desafios. Enquanto que em Portugal a ideologia divide privados de públicos, estivadores de patrões, em França, a ferida aberta causa mossa directa no motor económico. A greve das refinarias já se espalhou à quase totalidade do país. O que pretendem? Inflacionar repentinamente o preço do crude nos mercados internacionais? Gostava de saber qual o impacto (positivo) que estes acontecimentos terão nas operações da gigante petrolífera francesa Total, e aqui, na vacaria instalada no burgo por Costa e Centeno que delira com a recuperação plena e faustosa. Francamente. As verrugas já estão plantadas no panorama. Agora é só ligar os pontos. Negros.
Luís Menezes Leitão, Freedom is not free:
Hoje a França bombardeou territórios do Estado Islâmico, dando assim uma resposta militar ao que foi um verdadeiro acto de guerra contra civis inocentes. Essa resposta só faz, no entanto, sentido se for para preparar uma invasão terrestre. Por muito que evolua a tecnologia, uma guerra só se ganha colocando tropas no terreno e ocupando o território do inimigo.
Os ataques terroristas de Paris de 13 de Novembro intensificam o debate em torno de uma questão fundamental respeitante à Democracia; de que forma governos conseguirão encontrar o equilíbrio entre a dimensão securitária dos Estados e o respeito pelas liberdades e garantias dos indivíduos? Os Estados Unidos da América (EUA), que provaram o desgosto intenso do 11 de Setembro de 2001, têm, desde essa data, vindo a incrementar o seu nível de controlo sobre o movimento de pessoas e capitais por forma a diminuir as probabilidades de semelhantes ataques terroristas. A União Europeia, que têm sido "vegetariana" no desenvolvimento de uma genuína Política Externa e de Segurança Comum, vê-se agora obrigada a implementar medidas "excepcionais". Os EUA, acusados historicamente de "intervencionistas sem convite", continuam a ser um aliado ideológico da Europa, mas a administração Obama tem sido "abstencionista", e, há poucos dias, Hillary Clinton afirmou que a questão síria seria sobretudo um desafio a ser enfrentado pelos actores "locais", pela Europa. A França, que está a ser a ponta de lança dos ataques ao Estado Islâmico, fá-lo consciente dos monstros que já está a libertar no seu país. A França parece disposta a fazer o sacrifício por uma causa maior que as suas fronteiras. As bandeiras francesas içadas nas redes sociais, e em particular no Facebook, correspondem deste modo, não apenas ao lirismo da solidariedade para como as vítimas dos ataques de Paris, mas à aceitação de que a França é o "war maker and taker" da Europa - os franceses são cada vez mais os americanos da Europa. Os mesmos individuos que cantam a marselhesa por efeito de contágio e simpatia, devem ter a consciência de que se colocam ao lado da nação europeia que está efectivamente a projectar o seu poder militar e de um modo intenso. Os cidadãos da Europa já não podem ser selectivos na escolha de apenas uma parte de uma equação geopolítica. Ao abraçarem a França, assinam por baixo na petição, autorizam que essa república batalhe em vosso nome. A União Europeia vive mais um momento de verdade, de vida, e efectivamente morte, no seu próprio quintal.
Não digam que não há bailouts muito convenientes, para alguns:
O mundo ocidental vive obcecado com a ideia do superlativo, da grandeza incomparável. A manifestação de ontem foi vendida como sendo a maior na história da humanidade desde que se conhece o terrorismo. A vigília de ontem, de acordo com jornalistas que não dormiam há mais 72 horas, serviria para acabar de vez com a profunda fractura que define a sociedade francesa. E vimos a proa do cordão político da Europa dar esse espectáculo - nada devemos, nada tememos. O problema que se apresenta aos orquestradores da ordem unionista europeia prende-se com a ideia de escala. A homenagem de ontem, apresentada como cartucho maior, será certamente relativizada nos tempos que correm. O problema que essencialmente enfrentamos relaciona-se com as mensagens que se pretendem transmitir, sem que se faça a devida pausa para interpretar os seus conteúdos, assim como o seu alcance. Não sabemos ao certo quem atirou a primeira caneta ou disparou o primeiro tiro. O que sabemos é que a comunicação será sempre assimétrica. Ou seja, teremos a impressão de que a última palavra será a nossa, quando de facto a mesma se encontra em parte incerta, nas trincheiras do inimigo, porventura. Mas insistimos. Antecipamos os movimentos dos outros por descrença nas nossas palavras e nas nossas acções. E é este o mundo dialético, imprevisível, em que vivemos. Quatro milhões de pessoas quiseram enviar um recado que corre o risco de não chegar ao destinatário em conformidade com a sua intenção. Da próxima vez que algo inédito acontecer que resposta será dada? Que mega-manifestação irá superar a anterior?
Em Dezembro de 1961, Portugal foi atacado pelo exército indiano. As comunidades muçulmanas espalhadas pelos territórios então sob a soberania portuguesa, manifestaram-se de forma inequívoca, mantendo-se leais a Portugal. Acompanhando cristãos e alguns hindus, muitos muçulmanos saíram do Estado da Índia ocupado pelos invasores e estabeleceram-se em Moçambique. A Baixa de Lourenço Marques assistiu a uma grande manifestação onde os maometanos também exprimiram a sua total lealdade ao Portugal de que também eram parte.
Têm ocorrido inúmeras manifestações espontâneas em França e infelizmente é escassíssima, para não dizermos inexistente, a presença de alegados muçulmanos oriundos do Magrebe e principalmente, aqueles que tendo nascido e crescido em França, deveriam sentir-se atingidos pela vaga terrorista. Se é possível vermos gente da África negra, a presença de magrebinos é escassa, praticamente nula. Até ao momento, o repúdio pelas recentes ocorrências limita-se a uns tantos etéreos desabafos de um punhado de autoridades religiosas. No próximo domingo, numa cidade onde vivem centenas de milhares de pessoas que formalmente são muçulmanas, ocorrerá uma concentração onde antes de tudo, decerto ficará patente a lealdade ao Estado, à França. Aqui está uma excelente oportunidade para serem desfeitas todas as dúvidas.
Oxalá estejamos enganados, pois não será nada difícil reconhecermos o erro.