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«Não se discute Deus e a sua virtude; não se discute a Pátria e a Nação» - disse António de Oliveira Salazar. Talvez não tenha acrescentado o futebol, por pudor. Acrescentemo-lo agora a propósito das recentes comemorações benfiquistas.
O futebol é uma prática desportiva. Até aqui tudo bem. O desporto é uma característica que distingue a humanidade da sua biologia animal: hoje o Homem já não precisa de caçar para alimentar-se, nutrir-se e manter-se em forma para evitar ser caçado. Apesar disso no presente o Homem pode existir sem que isso implique mover-se.
Mas o futebol, ao contrário de muitas outras práticas desportivas, saiu, há muito tempo, fora das quatro linhas, tornando-se um espectáculo de massas, consubstanciado com o recurso a um vasto conjunto de artifícios, em grande parte motivados pelo luxo, pelos excessos e pelo desejo de poder – coisas que o comum dos mortais deseja como as pegas desejam os objectos brilhantes e que topam no seu longínquo voo.
O futebol não é, por isso, apenas, uma prática desportiva. A sua organização em equipas torna os seus fãs ou adeptos em milícias que visam enaltecer, proteger e defender (se preciso até à morte) uma pequena oligarquia de jogadores que vive acima das possibilidades do comum dos humanos. Mesmo nas equipas menos bem pagas, o clubismo transforma-se numa expressão longínqua da antiga vida em tribo. Sem necessidade de alianças para caçar e defender-se das grandes presas pré-históricas o Homem moderno usa o futebol como forma de catarse e exercícios de violência mantendo assim os níveis de epinefrina capazes de aguentarem a sua virilidade em pé.
Claramente difundido em algumas sociedades ocidentais (sub ou sobredesenvolvidas – o índice de desenvolvimento económico não é para aqui chamado como muitos argumentam) o futebol constitui, assim, a mais clara expressão de um comportamento hominídeo primitivo que articula a expressão violenta da subsistência com a sustentação de uma rivalidade inter geracional e rácica.
Toda esta conversa pseudo-sociológica e intelectual serve para resumir que há décadas que o futebol significa, mais do desporto: significa dinheiro, violência e absoluto desrespeito pela convivência entre indivíduos. Que se faça de um momento de violência um discurso pró ou contra agressores ou agredidos, nem sequer é ridículo. É escusado.
Devia, isso sim, discutir-se o futebol, o seu papel educacional e pedagógico enquanto desporto. Isso e só. Tudo o resto tem contribuído para a transformação da sociedade numa enorme massa uniforme de unanimismos. De facto não há assunto, pelo menos em Portugal, tão consensual como o futebol. Nem a democracia é tão consensual quando se trata de defender a imagem de um futebolista ou de um treinador. E isso é preocupante. Talvez assim se justifique que da Esquerda à Direita, todos os políticos, quando entrevistados introduzam o tópico do futebol como uma expressão de clubismo ou amizade saudável.
Mas o que se tem visto ao longo do último século é tudo menos saudável: além de uma excessiva participação estadual nos grandes clubes, a comunicação social aproveita-se daquele desporto em detrimento de outros assuntos, bem mais prementes do ponto de vista cívico.
Enquanto o futebol for assunto tabu dificilmente avançaremos do grau civilizacional onde estamos e que conduzem às imagens degradantes que as televisões, jornais e redes sociais têm repetido ad nauseam.
É que violência não é só a física e corporal…
Algo a que assisti com curiosidade ao longo do último ano e meio foi a forma como muitos indivíduos, alguns dos quais até tinha em estima e na conta de seres vertebrados, comprovaram o que Schumpeter descreveu de forma magistral em Capitalismo, Socialismo e Democracia: «O cidadão típico, por conseguinte, desce para um nível inferior de rendimento mental logo que entra no campo político. Argumenta e analisa de uma maneira que ele mesmo imediatamente reconheceria como infantil na sua esfera de interesses reais. Torna-se primitivo novamente. O seu pensamento assume o carácter puramente associativo e afectivo.»
Infelizmente, a política em Portugal acaba por se concentrar mais em pessoas do que valores ou ideias. À volta dos líderes políticos há, no fundo, claques de futebol. Sabendo-se que o mais das vezes temos os mesmos agentes políticos que criticam determinadas políticas enquanto na oposição, a implementar políticas iguais ou idênticas quando no governo, não deixa de ser espantoso que as claques consigam acompanhar este movimento, muitas das vezes quase sem hesitação. Claro está que muitos o fazem porque têm interesse directo em tal - querem manter o emprego no governo, no parlamento, na câmara municipal etc. Quanto a estes, o facto de venderem desbragadamente os seus próprios princípios já diz quanto baste sobre a sua verticalidade. Já os outros, que não dependem directamente do governo, apenas o apoiando por mera identificação ou simpatia com as cores partidárias, constituem para mim um enigma. O que é que terão a ganhar em defender pessoas acima de ideias, pessoas que frequentemente levam à prática ideias que consideram erradas? Mero reconforto afectivo, porventura, de acordo com Schumpeter. Afinal, o espírito de manada é algo que há muito se apoderou das sociedades democráticas. Defender pessoas quando estas mudam de opinião em relação ao que antes professavam parece ser algo a que, dado o carácter associativo e afectivo do indivíduo típico no campo político, estamos fadados a assistir. Porém, em certos casos, e porque o homem vai fazendo a história sem saber que história faz, as mudanças de opinião até podem ter implicações positivas e saudáveis.
Mas há algo que é mais preocupante no concernente a este espírito de manada. Se no campo da opinião impera em larga medida o relativismo, o mesmo não se pode dizer nos campos da honestidade, da correcção moral, da conformidade a certas normas sociais e legais. Dando um exemplo prático e muito actual, que alguém que criticava violentamente José Sócrates pelas suas abjectas trapaças consiga defender Miguel Relvas, cujo rasto de trapaças já se tornou nauseabundo, é apenas revelador já não só de falta de verticalidade, mas de uma gritante pulhice. Mais, que muitos dos que enveredam por semelhantes atitudes critiquem e ataquem os que o não fazem, especialmente quando estes até podem encontrar-se politicamente na mesma área ou partido, revela já não só a falta de verticalidade e a pulhice de que sofrem, mas aquilo que verdadeiramente são: vermes.
Aqui chegados, parece fazer sentido actualizar a tocquevilliana preocupação com a tirania da maioria. O que me parece ser bem mais preocupante é a vermocracia, a tirania dos vermes.
Há quem pareça incomodar-se com o facto de alguns indivíduos, como é o meu caso, poderem em dado momento defender uma posição à qual se aproximam ora a esquerda, ora a direita partidárias, consoante estas estejam no governo ou na oposição. O problema é que não são aqueles indivíduos que mudam de posição. Não sou eu que ando de um lado para o outro. Eu estou sempre no extremo centro, que apenas obedece à independência da minha consciência. Há muito que aprendi que a essência do homem livre é ser do contra, preferindo resistir à massa - já Jung assinalou que «A resistência à massa organizada só pode ser efectuada pelo homem que tem a sua individualidade tão bem organizada quanto a própria massa» - e não me preocupando com as apreciações dos que pensem diferentemente de mim, rejeitando o consequencialismo para que possa, como aprendi com um dos meus mestres, viver como penso em vez de pensar como vivo, às vezes de bem com uns e mal com outros, outras vezes de mal com uns e bem com outros, quando uns nunca estão bem com outros. Há quem lhe chame radicalismo. Eu chamo-lhe apenas independência de espírito e força de carácter.
Felizmente, há bastantes indivíduos que alinham pelo mesmo diapasão, embora em muito menor número que os vermes. Mas há que resistir e continuar a travar os combates que possam permitir que um dia o Portugal político seja um local mais recomendável, com um ar mais respirável. É que, seguindo os ensinamentos de La Boétie, que inspiram o cabeçalho do blog do Professor José Adelino Maltez, «n'ayez pas peur. Na servitude volontaire o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá.»