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A precipitada intenção não foi má e compreendi-a perfeitamente. O camarário autor, nem por um segundo pensou na população que imediatamente sentir-se-á tentada a proceder a comparações entre o velho Portugal e "isto" que se sabe.
A historieta oficial está pejada de dislates e atoardas, desde a famosa "pancada de D. Afonso Henriques nos costados da mãe", até aos "mata-mourinhos" da 1ª Dinastia, "colonial fascistas e exploradores" da 2ª, "grandes reformadores e visionários" da 3ª (pois...) e "gastadores, incompetentes, decadentes, fornicadores de freiras" da 4ª. Durante décadas temos escutado grã-bestas, hoje grã-cruzes do 10 de Junho, discorrerem acerca das "malfeitorias de D. Henrique, do Gama, Albuquerque, D. João de Castro, do punhal de D. João II, dos fogos da Inquisição" e mais coisinhas do mesmo estilo. Visando diminuir a memória de quem lhes foi infinitamente superior, os comensaleiros do regime pretendem enaltecer a "modernidade, solidariedade, altruísmo, avanço mental" desta gente dos nossos tristes tempos (poder local incluído).
Ora aqui está um perfeito boomerang feito video. O anestesiado povo não é assim tão estúpido, pois a primeira reacção que já anda pela rua, é:
- Ena pá..., o que fomos e o que somos. Estes tipos - vulgarmente conhecidos por "eles" - são mesmo um bando de traidores e uns montes de m...!*
Óptimo!
* PS, PSD, CDS, PC, BE, Cavaco, antecessores e restante camarilha incluída.
A respeito do vídeo do momento, dirigido aos finlandeses, estou em crer que este é contraproducente. Para além dos erros históricos grosseiros, é indigno de uma nação com 9 séculos de História colocar-se nesta posição de tentativa de cobrança moral de um apoio aparentemente altruísta em tempo de guerra, quando é mais que certo que nos bastidores da UE a reapolitik obviamente forçará não necessariamente a aprovação mas pelo menos a abstenção por parte do governo finlandês. Não é por acaso que ainda não tendo formado governo, o actual ministro das finanças finlandês, futuro Primeiro-Ministro, defende o apoio ao resgate. E também não será por acaso que o líder dos True Finns tem jogado com esta questão por puro tacticismo a nível de política interna, já se tendo mostrado aberto à aprovação do apoio. Se eu fosse um finlandês, em face deste vídeo, agarrava em meia dúzia de gráficos da evolução da economia portuguesa, colocava-os numa carta ou num vídeo e perguntava: "Se são assim tão bons, porque têm maus políticos e governantes que arruinaram a economia?". E sim, todos sabemos que seremos nós a pagar o apoio. Mas, em primeiro lugar, serão os países da UE a endividarem-se nos mercados para garantir as verbas necessárias ao mesmo, que implica directa e indirectamente dinheiro dos contribuintes dos respectivos países. Não estamos em posição de andar a brincar aos orgulhos pseudo-patrióticos de quem não sabe lidar com a grandeza da sua História, olhando recorrentemente para o passado sem saber como lidar com o presente e o futuro, o que é apenas sintomático da crise de hiper-identidade de que sofremos.
Posto isto, importa salientar que me causa alguma perplexidade ver muitas pessoas que me são próximas entusiasmadas com este vídeo. Não só pelo que escrevi acima, mas principalmente porque têm a obrigação, em resultado da sua formação académica, de notar os erros grosseiros que o vídeo contém, bem como a falácia da mensagem final quanto ao apoio à Finlândia na II Guerra Mundial.
Não deixa de ser curioso ver muitos dos "anti-fássistas" a tentar cobrar este apoio. Se pensarmos um pouco, não é difícil conceber o contexto em que este aconteceu. Para começo de conversa, em 1940 não existiam os meios de comunicação e de tranporte que existem hoje, e estando ainda as liberdades de iniciativa e associação extremamente mitigadas, não poderia a sociedade portuguesa decidir espontaneamente ajudar um país a milhares de kilómetros de distância. Em segundo lugar, considerando a gestão de equilíbrios que Salazar já vinha a ensaiar desde a Guerra Civil de Espanha, entre a aliança britânica de um lado e Berlim e Roma de outro - não por acaso, apoiou Franco e os nacionalistas por intermédio dos grandes empresários portugueses - e sabendo-se ainda da sua arreigada veia anti-comunista, não causa perplexidade que tenha sido o próprio Salazar a ordenar o apoio. Uma breve investigação levou-me a descobrir que, na verdade, foi o Reino Unido quem abordou Lisboa, Roma e Washington no sentido de apoiar os finlandeses contra a ofensiva da União Soviética. O telegrama enviado pelo Foreign Secretary Viscount Halifax ao Embaixador britânico em Lisboa, W. Selby, é a este respeito ilustrativo. E estou em crer que uma rápida consulta ao Arquivo Histórico-Diplomático nas Necessidades poderá trazer luz sobre a restante troca de telegramas. Perante este pedido, o cálculo pragmático e realista de Salazar não terá estado imbuído de qualquer altruísmo. Na verdade, esta era uma situação vantajosa, porquanto se destinava a combater o perigo soviético e reafirmava a tradicional Aliança Luso-Britânica, que viria a conhecer vários episódios durante a guerra. Tal não obstou, obviamente, a uma nota de agradecimento por parte dos finalandeses.
Portanto, não só não há um altruísmo que permita esta recente tentativa de levar a questão do apoio para o campo moral, como, reiterando o que já escrevi acima, me parece indigno de um país como o nosso colocar-se nesta posição. Se querem ser patriotas, sejam-no a todo o momento, em particular fiscalizando os governantes - accountability, como nas democracias liberais de pendor anglo-saxónico.
Depois, entre as várias referências, há erros que deveriam saltar logo à vista de qualquer um que saiba um mínimo de História de Portugal e de Política Externa Portuguesa:
- Há mais portugueses fora de Portugal que no país - Segundo as últimas estatíscas que encontrei, reportando-se a dados de 1999, 10 milhões de portugueses residem em Portugal, ao passo que quase 5 milhões vivem no estrangeiro.
- Arigato é uma palavra portuguesa - este é um mito propagado por muitos. Embora muitas palavras japonesas derivem do português, não é o caso de arigato. Os portugueses chegaram ao Japão em 1543. Há registos da palavra arigato que datam de 759.
- Fomos os primeiros a abolir a escravatura, em 1751 - Dois erros numa só frase. Primeiro, não foi em 1751 mas em 1761 que o Marquês de Pombal, no reinado de D. José I, aboliu a escravatura na Metrópole e na Índia. Continuou em África e no Brasil, já que o comércio de escravos era bastante rentável, como é sabido. Só pelo Decreto de 10 de Dezembro de 1836, pela mão de Sá da Bandeira, que se dedicou a essa causa, foi efectivamente abolido o tráfico de escravos, embora com excepções. Em 1854 foram libertados os escravos do Governo e só em 1869 é que de facto é abolida a escravatura em todos os territórios portugueses. Em segundo lugar, no campo das leis abolicionistas que não o foram de facto, como aconteceu com Portugal (efectivamente, os territórios do império eram Portugal), a primeira é espanhola e data de 1542. No campo das que o foram de facto, a primeira data de 1833, trata-se do Slavery Abolition Act do Império Britânico (no qual, aliás, Sá da Bandeira se inspirou).
-Fomos o primeiro país a abolir a pena de morte - outro mito. Depois de vários tentativas, fizemo-lo em 1867. Antes disso, o primeiro país a aboli-la, embora hoje em dia a pratique, foi a China, em 747 (durou até 759), durante a Dinastia Tang, pelo Imperador Xuanzong. Seguiu-se o Japão, em 818, embora tenha voltado a adoptá-la em 1156. Em 1849 foi a vez da República Romana, em 1863 a Venezuela, e ainda antes de nós, em 1865, São Marino.
- Por último, e embora provavelmente existam mais erros e imprecisões, há um que é particularmente gritante. Segundo o vídeo, Napoleão tentou conquistar Portugal três vezes e falhou. Fiquei tão perplexo perante esta que achei que já não sabia nada de História. A verdade é que a segunda e a terceira das Invasões Napoleónicas foram efectivamente goradas. Mas a primeira, não só teve sucesso como levou à saída da Família Real para o Brasil. D. João VI havia dado ordens para que não fosse oposta resistência às tropas francesas, chegando Junot a Lisboa a 30 de Novembro de 1807, sendo recebido pela Junta de Regência, já depois de ter sido assinado entre França e Espanha o célebre Tratado de Fontainebleau. Junot instalou-se e governou o país a partir de Lisboa, chegando a hastear a bandeira francesa no Castelo de S. Jorge. Embora inicialmente a Junta de Regência tivesse conservado formalmente as funções de Governo em conjunto com os franceses, a partir de 1 de Fevereiro de 1808 um decreto de Napoleão declarou a anexação de Portugal, dissolveu a Junta de Regência e instituiu um Conselho de Governo, formado pelos antigos membros da Junta mas presidido por Junot. Só a partir de Maio é que começam as revoltas populares contra os franceses, que encontram o apoio das forças inglesas, lideradas por Wellesley, no final de Julho, início de Agosto.
Só para finalizar, recomendo ainda a leitura deste post e deste (que aponta mais erros para além dos que indiquei) e que tenham bem em mente que, provavelmente, aquilo que os Finlandeses mais quererão saber sobre Portugal, assim como os restantes membros da UE, é, como salienta o João Miranda, se José Sócrates será reconduzido no cargo de Primeiro-Ministro.
(Errata, adicionada a este post às 15h45 de 9 de Maio, já depois de ontem ter sido assinalada noutro post: Alertado pelo Rodrigo Moita de Deus, cumpre-me efectivamente reconhecer que incorri num erro no meu post anterior, pelo qual peço desculpa aos leitores. Não é dito no vídeo que tenhamos sido os primeiros a abolir a escravatura, ao contrário do que indiquei. Fica o reparo, embora a data, contudo, esteja errada).