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Do poder e da estupidez em tempos de coronavírus

por Samuel de Paiva Pires, em 29.05.20

Quando, há uns dois meses, escrevi que iríamos assistir a mudanças sistémicas à escala global, não tomei partido quanto à direcção destas, isto é, não formulei nenhum juízo sobre se as mudanças seriam para melhor ou pior. Mais ou menos na mesma altura, começaram a manifestar-se na opinião pública aqueles que, pretendendo avançar as suas agendas ideológicas, logo vaticinaram velhinhos “amanhãs que cantam”. Muitos decretaram pela milésima vez a morte do liberalismo e do capitalismo e anunciaram um mundo novo marcado pela bondade e pela compreensão de que os nossos excessos das últimas décadas teriam necessariamente de dar lugar a um mundo mais harmonioso - uma manifestação da fé iluminista no progresso (seja lá este o que for). Outros, em posição diametralmente oposta, preferiram defender a globalização e a ortodoxia liberal, proclamando alguns deles, também pela milésima vez, o império da economia sobre a política, como se estas fossem mutuamente exclusivas. 

Ora, o mais provável é que Richard Haass tenha razão, a crise acabará apenas por acelerar as tendências verificadas nos últimos anos. Os crentes nos diferentes progressismos parecem esquecer-se que a história não progride de forma linear e que há duas características da condição humana aparentemente imutáveis e frequentemente amalgamadas: a luta pelo poder e a estupidez.

Não é por acaso que o poder é o fenómeno central da Ciência Política, assim como na Teoria das Relações Internacionais, especialmente para realistas e neo-realistas, segundo os quais o poder é a moeda da política internacional e esta é sinónimo de power politics. Nem sequer o projecto de integração mais avançado no mundo escapa a isto, como temos vindo a aprender duramente desde 2008. Porém, em Portugal, não faltam defensores da narrativa espelhada na capa de uma revista holandesa, segundo a qual os países do norte da Europa são muito produtivos e frugais ao passo que os países do sul são pouco produtivos, gastadores e pedintes em relação aos do norte. Como já escrevi anteriormente, para estes, que no ano de 2020, tendo já passado pela crise do euro, ainda não conseguiram perceber que a União Económica e Monetária tem falhas estruturais conducentes a um funcionamento perverso que privilegia os países do norte e prejudica os do sul, dificilmente haverá salvação. Os seus vieses cognitivos e ideológicos, para além da ignorância da história do projecto de integração europeia, não lhes permitem vislumbrar e compreender a dimensão política, de luta pelo poder, no cerne do projecto do euro. Para outros, aqueles que acreditam num qualquer modelo de harmonia à escala global que descerá sobre todos nós em resultado da crise actual ou de outra qualquer, também não sei se haverá salvação, mas um estudo minimamente aturado da história da humanidade poderá ajudar a alcançar uma melhor compreensão da condição humana e da centralidade do poder nesta.

Por outro lado, a crise actual permitiu também perceber - se dúvidas houvesse - que a fé iluminista nas capacidades da razão humana é assaz sobrevalorizada. Num mundo hiper-mediático, a estupidez tornou-se particularmente visível. Entre líderes mundiais, lideranças políticas domésticas e burocratas que decidem e implementam medidas abstrusas, opinion makers que se aliviam de disparates e cidadãos que nas redes sociais partilham teorias da conspiração e óbvias fake news, este tem sido um período particularmente prolixo. Haverá muito trabalho para aqueles que se queiram dedicar a documentar as diversas manifestações de estupidez a que temos assistido, como o Nuno Resende aqui fez ontem. Certamente poderão apoiar-se nos trabalhos desenvolvidos por Paul Tabori e Carlo M. Cipolla. 

publicado às 15:15

Globalização, liberalismo e comunitarismo

por Samuel de Paiva Pires, em 09.02.17

Amitai Etzioni.jpg

 

Amitai Etzioni, "We must not be enemies":

As I see it, the rise of right-wing populism in the United States and in Europe can be attributed to no small extent to the profound misunderstanding globalists have of community and communitarian values. Globalists tend to view society as composed of freestanding individuals, each of whom has his or her own individual rights and is keen to pursue his or her own self-interest. As a result, globalists assume that, given the proper information, their fellow citizens will see that their aging societies are refreshed by immigration, that free trade raises the standard of living for everyone, and that individual rights outweigh tribalism.

The trouble with this liberal view of society is less what it claims and more what it leaves out: namely, that people are also social creatures, whose flourishing and psychological well-being depend on strong, lasting, meaningful relationships with others and on the sharing of moral and social values. These relationships and values are found in national and local communities (including families, which are micro-communities). By definition, communities are circumscribed rather than all-inclusive and are inevitably parochial rather than global. Still, the values of communities can be reconciled with globalist values.

If the goal of progressives is to reduce right-wing populism, violence, prejudice, and xenophobia, then communities must be nurtured as they are urged toward equanimity, the rejection of unfounded fears, and above all tolerance. These goals cannot be achieved by denigrating parochialism. Rather, globalists must understand that parochialism can be reconfigured but cannot, and should not, be eliminated.

(...)

Above all, globalists ignore the effects of free trade on people’s essential communitarian needs. Economists often fail to understand people who are reluctant to move from West Virginia to Montana, say, when the coal industry is declining but the gas industry is growing. They do not sufficiently consider that people lose their communal bonds when they make such moves. People leave behind the friends they can call on when they are sick or grieving and the places where their elders are buried. Their children miss their own friends, and everyone in the family feels ripped away from the centers of their social lives: school, church, social club, union hall, or American Legion post. A reliable evaluation of the benefits of trade should take into account the destructive effects on communities of churning the labor force. We should at least feel the pain of the casualties of free trade rather than denigrate them as redneck boors who just don’t get it.

(...)

Globalists favor the free movement of people across national borders. They strongly support the Schengen Agreement, which removes border controls among many members of the European Union. They cheered Angela Merkel, the German chancellor, for welcoming millions of immigrants to Germany. And they view Trump’s call for building a wall on the Mexican border and restriction on immigration from Muslim countries as typical right-wing, xenophobic, reactionary policies.

However, the well-known social psychologist Jonathan Haidt views mass immigration as the trigger that set off the authoritarian impulses of many nations. He concludes that it is possible to have moderate levels of immigration from “morally different ethnic groups”—so long as they are seen to be “assimilating to the host culture”—but high levels of immigration from countries with different moral values, without successful assimilation, will trigger an authoritarian backlash. Haidt suggests that immigration policies ought to take into account three factors: “the percentage of foreign-born residents at any given time; the degree of moral difference [between the] incoming group [and the members of the host society]; and the degree of assimilation being achieved by each group’s children.” Globalists do not approve of this approach.

Progressives are sure to continue to favor a path to citizenship for millions of undocumented immigrants. But they’d better pay more attention to the further acculturation of this large group than many globalists do. To favor unlimited immigration—whatever the numbers and the cultural differences—is possible only if human rights outweigh all concerns about the value and importance of communal bonds, shared moral understanding, and a sense of identity, history, and fate. Adding a sizable number of people who are indistinguishable from its current members will stress a given community. Adding a large number of culturally distinct people is very likely to engender social tensions. The answer is not to draw up the bridges or build walls but to adopt realistic sociological strategies for absorbing immigrants into their new, host communities.

(...)

Even a global community, if one can be forged, would have to be constructed on top of local, regional, and national communities, rather than as a single independent entity composed of more than seven billion individuals, each with individual rights but no social bonds or set of shared values. Thus, universalism and parochialism can be combined, but attempts to maximize either position are sure to lead to troubling, socially disturbing results.

(...)

Communitarian sociologists have been pointing out that, for two centuries, the rise of modernity has threatened the communal bonds and shared moral cultures that are essential for a person’s sense of identity, emotional stability, and moral codes. Studies of the rise of Nazism show that communities serve as the best antidote to the mass appeal of demagogues. The kind of reasoned, self-governing, tolerant, civil person whom globalists favor is much less likely to be found among individuals outside the bonds of community than among people with stable social bonds, imbued with a proper moral culture. Hence, globalists have strong reasons to shore up communities.

(...)

Progressives should remember that nobody can bond with seven billion people, and almost everyone feels more responsibility toward those closest to them. People have profound needs for lasting social relations, meaning, and shared moral beliefs. Globalist values can be combined with nationalist, parochial ones—demanding that communities not violate individual rights while allowing them to foster bonds and values for their members in the ways that suit them best.

Local communities need to be nurtured rather than denounced, not only because they satisfy profound human needs but also because they anchor people to each other and thus help to dilute appeals to their worst instincts. Championing fair trade, fostering diversity within a framework of unity and shared values, and accepting many kinds of communities as long as they respect rights—all are positions that show understanding and even empathy for citizens who voted for Donald Trump and will go a long way toward making America as great as it can be.

 

(também publicado aqui.)

publicado às 11:15

Sobre o populismo

por Samuel de Paiva Pires, em 01.02.17

Do que tenho lido por aí sobre o populismo, Donald Trump e os tempos em que vivemos, este é, sem dúvida, o melhor, mais claro e mais recomendável artigo.

publicado às 22:59

Portugal e as prioridades angolanas

por John Wolf, em 24.10.13

Aqueles que afirmavam sem reservas que Angola precisa mais de Portugal do que Portugal de Angola, enganaram-se redondamente. Pensavam eles que seria apenas uma questão de tempo até aquele país vir comer à mão do paizinho e que a relação de irmãos de língua se iria normalizar. Pelos vistos não é o que está a acontecer; o ministro de relações exteriores declarou de um modo inequívoco que há parceiros mais vantajosos do que Portugal. Os governantes nacionais assentaram a sua política externa na premissa de que os países africanos de língua oficial portuguesa teriam uma inclinação natural para manter viva a relação histórica, mas não é o que está a acontecer. Porque razão deve Angola ser europeísta? Desde a guerra colonial que estabeleceu ligações com actores não europeus. A África do Sul e os EUA sempre tiveram presença económica e financeira em Angola. A URSS também andou lá metida. Os cubanos também. Ou seja, Angola há muito tempo que mantém relações com diferentes interlocutores. China é outro parceiro que necessita daquilo que Angola tem em abundância - petróleo. Este encadeamento de eventos, contrário ao interesse nacional luso, decerto que não irá ficar por aqui. Embora não haja um mapa cor de rosa a ligar Angola a Moçambique, é muito provável que a eclosão de um conflito civil neste último vá produzir o mesmo tipo de efeito nas intenções políticas e geo-estratégicas de Portugal. Por outras razões, fazer negócio em Moçambique poderá se tornar impraticável. Em vez da saída do Euro, Portugal é o elo mais fraco de uma outra utopia e parece estar a ser demovido, removido. Durante anos fomos levados a crer que Portugal era o "homem-forte" da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, mas aquele projecto produziu parcos resultados. O projecto de Acordo Ortográfico é sinónimo da especial virilidade de agentes "estrangeiros" que estão pouco interessados nos valores culturais e nas prerrogativas de Portugal. O Brasil que já bateu o pé aos EUA, não terá problema algum em sacudir um país com um mercado interno de pouco mais de 10 milhões de consumidores. Um país que plantou reticências de mentalidade à vinda de trabalhadores brasileiros e agora antagoniza o seu futuro deve ter algum cuidado nos passos seguintes que tomar. Se formos ver bem a coisa, cada vez que Portugal se coloca em bicos de pé a coisa corre mal. Aos poucos, Portugal parece ir perdendo o espaço vital que afinal nunca foi seu. Embora já tenha havido ilustres a declarar o fim do colonialismo, parece que apenas agora a efectiva materialização desse rompimento está a acontecer. Portugal irá decerto reagir às mais recentes declarações do ministro angolano, mas na minha opinião talvez deva ficar quietinho para não agravar ainda mais a situação. O timing político de Portugal é péssimo. Os angolanos que detêm poder de compra não estão para chegar ao continente. Já cá estão e detêm importantes quotas de representação nas decisões económicas de importantes empresas. Portugal tornou-se refém. Os seus sistemas de gestão já foram infiltrados e tomados por parceiros tidos como convenientes. No fundo, a questão tem a ver com ética. A falta dela. Desde a libertação democrática que a divisa tem tido a voz mais alta. Portugal não quis saber e agora coloca as questões que deveria ter apresentado em sede de due diligence. Uma espécie de inquérito preventivo para acautelar o interesse nacional. A cautela - nos dias que correm-, parece estar na ordem do dia, mas chega tarde. O que está a acontecer tem mais a ver com; depois de casa roubada trancas à porta.

publicado às 10:52

 

(fotografia cortesia da Organização das Conferências do Estoril)

 

Num painel presidido por João Carlos Espada, Anthony Giddens, teorizador da célebre Terceira via, e Jorge Sampaio, ex-presidente da República, deram início aos trabalhos do último dia das Conferências do Estoril.

 

O sociólogo britânico começou por salientar que nunca viveu uma época tão difícil de compreender, dando como exemplo ilustrativo desta problemática um artigo que leu recentemente sobre uma reunião de economistas do FMI que afirmam já não conseguir compreender a economia mundial, resumindo-se a perspectivar que tudo será diferente dos últimos 20 ou 30 anos, sendo por isso necessário, segundo Giddens, um grande esforço de reconstrução intelectual em todas as áreas.

 

Giddens classificou-se como um forte pró-europeu, o que talvez explique uma afirmação no mínimo discutível, para não dizer claramente errada: "ninguém cometa o erro de culpar a União Europeia e o euro pelos desafios que enfrentamos, porque senão não vamos encontrar solução viável."

 

Procurando tratar também as implicações políticas da crise económica, Giddens assinalou que estamos a entrar numa nova fase de transformação, em que as expectativas optimistas quanto às alegadas Quarta e Quinta Vagas de Democratização (América Latina, África e partes da Ásia no primeiro caso, e Primavera Árabe no segundo), saíram goradas, e até mesmo na Europa e nos EUA existem diversos problemas em virtude de divisionismos vários que têm fomentado a emergência de movimentos populistas e extremistas como o Tea Party nos EUA ou o UKIP no Reino Unido. Aliás, o académico que serviu de inspiração à acção política de Tony Blair mencionou várias vezes o UKIP, revelando uma certa preocupação com os resultados eleitorais da noite passada e a assunção de um papel político de relevo pelo partido de Nigel Farage.

 

Outro dos principais problemas apontado não apenas por Giddens, mas também por Jorge Sampaio, é a falta de liderança política no mundo Ocidental, que em conjunto com a reduzida accountability, ou seja, a responsabilização dos líderes políticos perante os eleitores, e a crescente utilização dos social media pelos cidadãos produz desafios que ainda ninguém consegue vislumbrar muito bem como ultrapassar. O antigo director da London School of Economics terminou a sua intervenção clamando por que os europeus olhem em conjunto para estes desafios e adaptem as instituições democráticas tradicionais, complementando-as com uma maior participação política e fiscalização por parte dos eleitores.

 

Em relação a este mesmo assunto, o ex-presidente da República considerou, por seu lado, que não há neste momento substituto para as instituições democráticas tradicionais, que temos de reformar as que temos, modernizando-as com inputs que vêm da sociedade, afirmando que esta é a única forma de dar esperança às pessoas e de impedir que se sintam atraídas por ideologias simplificadas. Para este efeito, salientou que os parlamentos necessitam de ter maior relevância e reestruturar a ligação à sociedade e que urge também tentar envolver as universidades, think-tanks, instituições da sociedade civil e indivíduos no mundo político, para evitar o processo de distanciação e desconexão da realidade a que este está cada vez mais sujeito.

 

Na sua intervenção, o histórico líder socialista centrou-se essencialmente na União Europeia, colocando cinco questões/temas em cima da mesa. Primeiro, começou por perguntar que Europa é esta que mostra não fazer nada em relação precisamente à transformação das democracias, instituições, políticas e processos de decisão em face de uma crise que está a atirar milhões de indivíduos para o flagelo do desemprego, fazendo perigar a muito necessária coesão social, não deixando de mostrar a sua veia socialista ao proferir o lugar-comum, também no mínimo discutível, de que os últimos 30 anos de políticas de desregulação são os principais responsáveis pela crise. De seguida associou a ascensão de movimentos populistas à perda de confiança nas instituições europeias, reclamando que este é o momento para reconstruir o contrato social que fundamenta a União Europeia, o que necessitaria de uma liderança digna dessa qualificação. Em complemento a este ponto, referiu também a necessidade de requalificar as democracias nacionais, precisamente no sentido de envolver os cidadãos na construção da polis, para que se interessem pela política e a compreendam como absolutamente necessária para responder a problemas reais e às aspirações das populações. Em quarto lugar, Jorge Sampaio referiu-se ao papel dos media, não só os tradicionais, em relação aos quais afirmou que moldam as percepções públicas sobre os mais variados assuntos e devem também ser fiscalizados e responsabilizados, mas também em relação aos social media, um dos temas que esteve em foco esta manhã, dando relevo ao papel destes na Primavera Árabe e na forma como os jovens se organizam e dão voz às suas reivindicações. Por último, o ex-Alto Representante da Aliança das Civilizações clamou ainda por novos fora de governança global com vários níveis e actores nacionais, internacionais, europeus, regionais e locais que possam elaborar melhores políticas de regulação, e terminou o seu discurso afirmando que se os cidadãos não participarem politicamente, desde o nível local até outros níveis e eleições, e isto tendo em consideração que temos de lidar com uma grande decepção em termos de liderança e soluções para os problemas dos cidadãos, não vamos conseguir enfrentar os problemas que vivemos, salientando ainda que "se a União Europeia significa alguma coisa, e claro que significa responsabilidade, não tem de significar uma espécie de liquidação da sociedade."

 

A finalizar o debate, destaque ainda para as afirmações de Anthony Giddens a respeito da crise do euro e do papel do Reino Unido na União Europeia. Embora se sinta desconfortável com a situação, crê que só há uma saída possível para a crise, o federalismo, já que acabar com a moeda única seria não só extremamente difícil como implicaria um cenário que ninguém sabe muito bem como seria, mas em que a Europa perderia relevância na arena internacional e o sistema financeiro tornar-se-ia demasiado instável. "Acho que o futuro da Europa depende da manutenção do Euro, apesar de não estar muito feliz com esta situação. Se o Euro colapsar, estaremos em terreno muito difícil. Se sobreviver, poderemos assistir a um renovar do apoio à União Europeia", disse. Por último, afirmou também que "É possível que o Reino Unido se retire da União Europeia, mas não creio que seja muito provável. Defendo que haja um referendo não só quanto à manutenção do Reino Unido na União Europeia, mas também quanto à adesão ao Euro." 

 

(publicado originalmente no Cables from Estoril)

publicado às 15:05

Goodyear, a cartinha globalizante

por Nuno Castelo-Branco, em 21.02.13

 

Aqui em Portugal deveria lê-la o governo e depois os sindicatos, os Partidos, o residente de Belém, a Concertação Social e porque não?, o trabalhador que começa o dia com uma vista de olhos pelo jornal, precisamente na importante página sobre o Benfica, Porto e Sporting. Aqui está o essencial:

 

"Visitei a fábrica várias vezes. Os empregados franceses recebem salários altos mas não trabalham mais de três horas. Têm uma hora para as pausas e para comer, falam durante três horas e trabalham outras três. Disse isto na cara dos sindicalistas franceses. Responderam-me que em França as coisas são assim! (...) O senhor é um político e não quer fazer ondas (...) Dentro de pouco tempo, em França toda a gente passará o dia sentada nos bares a beber vinho tinto (...) Senhor, a sua carta revela o seu desejo de abrir negociações com a Titan. Pensa que somos tão estúpidos" A Titan tem o dinheiro e o savoir-faire para fabricar pneus. O que tem o sindicato louco? Tem o governo francês (...) O agricultor francês quer pneus baratos. Não lhe interessa saber se os pneus vêm da China ou da Índia e se esses pneus são subvencionados. A Titan comprará um fabricante de pneus indiano ou chinês, pagará salários de menos de um euro à hora e exportará todos os pneus de que a França necessita. Dentro de cinco anos, a Michelin não poderá produzir pneus em França. Os senhores poderão ficar com os vossos alegados operários."

 

Aqui está mais uma entrevista, onde entre outras curiosidades, o senhor Maurice Taylor garante que "na Alemanha é bem melhor, eles querem trabalhar e têm a cabeça sobre os ombros (...) O melhor local de produção na Europa é a Inglaterra, eles fazem o seu trabalho e não têm imbecis no governo. Estou a dizer-lhe a verdade. Não sou politicamente correcto."

 

Querem saber algo sobre a resposta? Foi típica.

 

O ministro francês diz que as palavras do senhor Goodyear foram "extremistas, insultantes e provam uma perfeita ignorância do que é a França, os seus sólidos fundamentos, os seus atractivos mundialmente reconhecidos e os seus laços com os EUA (...) Sabe pelo menos, o que La Fayette fez pelos Estados Unidos da América?". E o ministro que relembra as glórias do Ancien Régime, as façanhas do operacional La Fayette e habilidosamente esquece o decisor Luís XVI, prossegue com os pés bem assentes no planeta Terra, oportunamente relembrando "Omaha Beach, os nazis e Obama". Um alívio, nem Soares, o duo bloquista ou a Câncio fariam melhor.  Enquanto isso o delegado da CGT auxilia o ministro, garantindo ser a carta "insultante para os trabalhadores e para a democracia."

 

A França está salva, Portugal e a Europa também. 

publicado às 08:05

A insustentável leveza da literatura do nosso tempo

por Samuel de Paiva Pires, em 14.11.12

Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:

 

«Por isso não é estranho que a literatura mais representativa da nossa época seja a literatura light, leve, ligeira, fácil, uma literatura que sem o menor rubor se propõe antes de mais e sobretudo (e quase exclusivamente) divertir. Atenção, não condeno nem um pouco os autores dessa literatura de entretenimento pois há, entre eles, apesar da leveza dos seus textos, verdadeiros talentos. Se na nossa época é raro empreenderem-se aventuras literárias tão ousadas como as de Joyce, Virginia Woolf, Rilke ou Borges não é apenas por causa dos escritores; também é porque a cultura em que vivemos mergulhados não propicia, até mesmo desincentiva, esses denodados esforços que culminam em obras que exigem do leitor uma concentração intelectual quase tão intensa como a que as tornou possíveis. Os leitores de hoje querem livros fáceis, que os entretenham, e essa demanda exerce uma pressão que se torna um poderoso incentivo para os criadores.

 

(…)

 

A literatura light, como o cinema light e arte light, dá a impressão cómoda ao leitor e ao espectador de ser culto, revolucionário, moderno, e de estar na vanguarda com um mínimo de esforço intelectual. Deste modo, essa cultura que se pretende avançada e de ruptura, na verdade propaga o conformismo através das suas piores manifestações: a complacência e a auto-satisfação.»

publicado às 18:13

O mito do individualismo extremo do nosso tempo

por Samuel de Paiva Pires, em 14.11.12

Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:

 

 

«Por outro lado, algumas afirmações de A Cultura-Mundo [Lipovetsky e Sarroy] parecem-me discutíveis, como a de que esta nova cultura planetária fez desenvolver um individualismo extremo em todo o Globo. Pelo contrário, a publicidade e as modas que lançam e impõem os produtos culturais no nosso tempo são um sério obstáculo à criação de indivíduos independentes, capazes de julgar por si mesmos o que é que lhes agrada, o que é que admiram, o que acham desagradável e enganador ou horripilante naqueles produtos. A cultura-mundo, em vez de promover o indivíduo, torna-o submisso, privando-o de lucidez e livre-arbítrio e fá-lo reagir perante a «cultura» imperante de maneira condicionada e gregária, como os cães de Pavlov perante a campainha que anuncia a comida.»

publicado às 11:24

Mudança de paradigma

por João Pinto Bastos, em 17.10.12

Este artigo da The Economist exemplifica algo que, em muitos lugares, é visto como uma inevitabilidade cósmica: a renovação do pensamento político, em ordem a acomodar as pulsões desestabilizadoras geradas por uma desigualdade em crescendo. A apologia de uma nova "Progressive Era", adaptada à era da globalização, seria uma oportunidade de ouro para aniquilar a esclerose que tomou conta dos poderes públicos, um pouco por todo o lado. Nem todos os remédios prescritos neste artigo merecem a minha concordância, aliás, tenho muitas dúvidas no que concerne à insistência em programas sociais que, ao inverso do que se vem propalando em alguns fóruns, contribuem objectivamente para a manutenção de uma cultura de dependência extremamente perniciosa. Sem embargo, a aposta numa agenda assente no enfrentamento do crony capitalism é uma condição sine qua non para a reforma efectiva da economia e da sociedade. Ademais, um reformismo verdadeiramente credível terá de ter como eixo central, o reconhecimento de que o actual modelo de bem-estar, sustentado num estado obeso, está fadado ao fracasso. O fim da orgia de crédito que inundou o Ocidente nas últimas décadas demandará uma dose assinalável de realismo político, o que, pelos exemplos dados pelos líderes políticos actualmente no poder, está bem longe de estar assegurado. O diagnóstico deste artigo é certeiro: ou há uma mudança de paradigma - célere, profunda e radical - ou o preço da inacção e inépcia políticas será a ruína generalizada da cidadania e, por fim, da democracia.

publicado às 01:12

O Economist e a formatação do pensamento único

por Nuno Castelo-Branco, em 07.12.08

 

O citado jornal do interesse dos economistas, financeiros e especuladores, publicou um extenso artigo que pretende elucidar - sem que finalmente tenha conseguido tal proeza - os leitores acerca da complicada crise tailandesa.

 

Não nos competindo ou directamente interessando  a discussão acerca da evolução do quadro político vigente naquele país asiático, há que ter presente o simples facto da quase obrigatoriedade de formatação segundo um certo padrão político-económico que todo o mundo inevitavelmente parece ter de aceitar.

 

O referido artigo é pródigo em suposições, repesca as velhas lendas da intriga palaciana de outros tempos - o articulista devia visitar o Palácio de Belém, a Casa Branca ou o Eliseu - e imagina cenários futuros, que embora não se apresentem fatalmente apocalípticos, cobrem de sombra o porvir daquela terra e das suas gentes. A mentalidade imediatista ocidental, preocupada em esgravatar noticiário que de hora a hora alimente as cadeias televisivas da chamada grande informação - as CNN, Bloombergs e a nível nacional, as SIC's, RTP'sN, etc -, segue afinal, os muito pouco profissionais princípios do preconceito, parcialidade da informação, anacronismo e os boatos que hoje são crismados com a sugestiva expressão inócua de "fontes credenciadas ou bem informadas".

 

Pertencente aos grandes grupos financeiros, as televisões informativas e os jornais e revistas da mesma especialidade, servem apenas de corrente de transmissão do pensamento único a que a maior parte do globo já se submeteu, num processo decorrente das vicissitudes impostas pela História, dada a secular dependência a que uma boa parte dos Novos Mundos viveu relativamente às Metrópoles europeias.

 

Este artigo do Economist, é um clássico da lenda e narrativa do preconceito arreigadamente presente nas mentes dos ocidentais. Os argumentos são velhos de duzentos anos e até o guião é tradicional, não faltando qualquer dos elementos que compõem uma típica tragédia monárquica, tão ao gosto dos libertadores corta-cabeças do ocaso setecentista. Existe um rei que vê aproximar-se o fim dos seus dias de vida, uma rainha obviamente má e manipuladora, um príncipe herdeiro D. Juan e desinteressado, uma princesa querida pelo povo mas fraca e uma corte esbanjadora. Como contraponto, temos um povo que é massacrado nas ruas e serve de carne para canhão da bestialidade policial e militar. Os ricos de um lado e os pobres, do outro, como se tenta fazer crer.

 

O longo reinado de Rama IX é passado a vol de l'oiseau, condescendendo o "analista" em apontar as inegáveis qualidades humanas do monarca, para logo o ir  manchando com meras suposições - sem que uma só atitude pública ou prova lhe seja apontada -, transformando-o ao longo dos parágrafos,  no homem que tem presa por fios, toda uma sociedade de fantoches que representam um papel previsto pelo guião dos Chakri. Patético.

Outra das superstições habituais neste tipo de considerandos acerca de um dado monarca reinante, é o problema da longevidade. Ao longo da História, reis ou imperadores que tenham atingido provecta idade, ganharam uma aura quase sobrenatural entre as populações e o seu previsível desaparecimento era encarado com receosa expectativa, significando para muitos, um certo fim do mundo: tal se passou com Luís XIV, com D. João V ou com a rainha Vitória, afinal normalmente sucedidos pelos legítimos herdeiros presuntivos, com plena aceitação das comunidades. Este facto da cada vez maior longevidade dos monarcas, acompanha a evolução da própria humanidade e exemplos como os de Isabel II, Bhumibol ou Hiro-Hito, serão a regra e não a execepção. Nada que o Economist e os seus articulistas encomendados não consigam compreender, mas que surge como nebulosa possibilidade de infundada implosão de um regime ou do país inteiro. Ridículo e infantil.

 

Além do descarado ataque dos interesses inconfessáveis à monarquia, o que o articulista do Economist pretende sonegar deliberadamente, é a verdadeira causa de todo o mal estar social que o senhor Thaksin Shinawatra provocou, com os seus delírios populistas de um exacerbado e orgulhosamente assumido caciquismo. Nem uma palavra quanto à autoria de mando dos tais massacres no sul, executados contra gentes muçulmanas, nem consta uma única linha acerca das fraudes, destruição do tecido empresarial do Estado em proveito da sua clientela e corrupção activa  do próprio e da sua família. 

 

De facto, as manifestações do PAD são compostas por uma vastíssima coligação de pessoas das mais diversas origens e não é exacto afirmar-se a exclusiva componente urbana. Os muçulmanos perseguidos brutalmente por Thaksin, encontram-se em elevadíssimo número nas hostes realistas, plenamente cientes do papel tradicionalmente protector que a Coroa tem oferecido aos vários grupos religiosos do reino. A reacção aos ímpetos de Thaksin, emulam aquelas ocorridas um pouco por toda esta região da Ásia, desde a própria Malásia, à Indonésia ou Filipinas, onde o elemento chinês é preponderante nos grandes grupos financeiros, nos chamados "negócios". Habituados a um Estado protector, os tailandeses não parecem muito interessados nas delícias prometidas por um certo capitalismo que lhes fecha ou destrói os lugares de trabalho e impõe como condição para o progresso, a rejeição da própria identidade nacional, onde a forma de organização social, a religião e um certo nacionalismo - como o Japão insiste em manter - mantém a coesão do todo. E assim, não nos podemos admirar por ver lado a lado industriais, monges, sindicalistas, estudantes e trabalhadores do terciário. É esta aliança dos mais esclarecidos e menos permeáveis à grosseira manipulação caciquista, que sai teimosamente à rua e reivindica o direito de resistência à liquidação do modelo histórico sobre o qual assenta a sociedade do antigo Sião.  Para um americano ou europeu, torna-se impossível a aceitação ou compreensão de usos ancestrais e das formas de organização que são diversas das suas próprias. Qualquer presidente de uma república de quarta categoria como a portuguesa, tem mais poder real que aqueles que a Constituição tailandesa reserva ao monarca. O que os analistas estrangeiros teimam em não querer ver - é tão fácil lobrigar a evidência -, é o papel fundamental e unificador da instituição, garantindo a unidade do Estado que é formado por regiões onde as tradições são específicas de cada uma delas e que ao longo dos séculos foram criando laços  institucionais - onde o budismo teve um papel fundamental - que vieram a conformar o Sião como entidade Nação.  Thaksin nem sequer era o chefe de um partido esmagadoramente maioritário, pois a oposição obteve uma votação aproximada daquela obtida pelo partido do primeiro-ministro. O aliciante móbil da sua acção consistiu na promessa - que disso não passou, pois durante o seu governo assistiu-se a uma corrida aos hospitais privados -  de um alargado Estado-Previdência à semelhança do modelo que hoje a Europa vai lentamente abandonando. O populismo descarado, a compra de votos e a inclusão do reino na esfera de influência  dos grandes circuitos do capital internacional, assustaram uma população profundamente lealista e orgulhosa da particular e quiçá única história do país, que jamais tendo sido colonizado, soube acompanhar o progresso material do século XX e que hoje tem elevada taxa de crescimento económico. O analfabetismo desapareceu, a educação encontra-se generalizada e o reino construiu escolas, estradas, hospitais e todo o tipo de infraestruturas próprias de uma sociedade onde a industrialização é patente e impõe a própria capital, Bangkok, como importante ponto económico regional.

 

O país progrediu e muito. Se compararmos a Tailândia com os demais vizinhos, a instabilidade constitucional e os golpes militares surgem como parte da normal vida política local, sem que por isso deixe de existir liberdade de expressão e uma imprensa que não encontra rival naquela parte do mundo. Existe total liberdade de circulação, igualdade de direitos e facto de fundamental importância, a separação de poderes.  A Tailândia jamais assistiu à violência sobre populações, genocídios ideologicamente assumidos e brutais ditaduras que os seus vizinhos têm sofrido desde que acederam á independência: o Laos, o Camboja, o Vietname e a Birmânia, são chocantes exemplos que confirmam e ajudam a explicar a especificidade do modelo social, político e económico tailandês. O Economist pretende intoxicar a sua restrita e elitista opinião pública de  leitores, com um tipo de julgamento ou considerações acerca de um particular sistema que finge não compreender. A desonestidade informativa é colossal, escamoteando o essencial papel reservado a umas forças armadas que durante décadas tiveram de enfrentar a subversão patrocinada por Pequim e  Moscovo, ameaçando as permeáveis fronteiras do país. É esta indissolubilidade de vínculos entre a Coroa, as Forças Armadas, o budismo e as populações urbanas, o alvo preferencial daqueles que em qualquer coronel vêm um hipotético Pinochet e no monarca descobrem sempre um gene de Gengis Cão.  Pelo contrário, Thaksin é tacitamente aceite como"um igual", o "homem do mundo empreendedor e dinâmico", "reformador de arcaísmos". Nada de novo, mas jargões bastante convenientes e sobejamente conhecidos no nosso próprio espaço geopolítico.  

 

Este problema da informação que se encontra universalmente sequestrada por quem dela empresarialmente se apropriou, conduziu-nos ao actual estado de coisas, onde o simples decoro diante de uma opinião pública esmagada pela canga da excitação de um efémero consumismo de duas décadas, desapareceu, para dar lugar à descarada partilha de despojos, enriquecimento abusivo, quando não claríssimo roubo e esbulho do património comum. Os acontecimentos na Tailândia, talvez sejam um longínquo exemplo daquilo que os próximos anos reservarão à própria Europa.

 

If Bhumibol’s glittering reign either ends in conflagration or leads to a Thailand paralysed by endless strife, with nobody of his stature to break the deadlock, it will be a tragedy. But he will have played a leading role in bringing about such an outcome. There is of course an opposing case to be made—that the king has been a stabilising influence in a volatile age, that his devotion to duty has been an inspiring example and that he has only ever done what he thought best for the country. But that case has been made publicly, day in, day out, for decades. Thais are not allowed to discuss in public the other side of the coin.

 

 

publicado às 02:57

A entrevista de Júdice ao Correio da Manhã

por Nuno Castelo-Branco, em 19.10.08

 

José Miguel Júdice é um dos homens do regime e disso creio não existir qualquer dúvida, apesar da sua assumida e aparente independência face ao sistema partidário. Pode usar-se esta aparência como mero recurso de estilo, pois os factos demonstram que jamais se pode ser independente, quando durante décadas se exerceram os mais relevantes cargos  na estrutura do aparelho do Estado. O seu natural interesse pela corporação Justiça, indicia isto mesmo, pois é este sector que conforma a própria legalidade, erigindo-se até num Estado laico e republicano, em fazedora e garante da moral pública. Maior comprometimento com uma situação é assaz difícil de descortinar e J.M. Júdice disse se apercebe muito bem, pois ciente dos mecanismos de funcionamento da cúpula do areópago de entidades endeusadas que nos governam, jamais poderia almejar ao desempenho de qualquer cargo importante, se não tivesse previamente feito a sua profissão de fé, mesmo alijando o peso de um juvenil e português passado de contraditória militância. Homem inteligente e culto, conseguiu a síntese do impossível.

 

A entrevista ao Correio da Manhã, consiste num espectacular exercício de sageza política e numa primeira análise, visa  o previsível reordenamento das forças de influência - os tais poderes fácticos - no edifício de um Estado que inevitavelmente sofrerá ao longo dos próximos anos, modificações profundas e que para a sobrevivência de Portugal como entidade política de direito internacional, deverão ser radicais. No nosso país desde sempre existiu a vertigem de um começar de novo, procurando além-fronteiras, exemplos que nos ajudassem ao salto civilizacional - falamos de materialismo, como é óbvio -, de matriz norte europeia. Se no século XVII-XVIII prescindimos daquele esboço de Parlamento que durante séculos existiu como Cortes, enveredando pelo Absolutismo centralizador e anunciador da "república", os homens de oitocentos, vencedores de Bonaparte nas faldas do Buçaco, acabaram por sucumbir à conveniência do momento histórico, ajustando-se à sistematização teórica da trilogia de 1789-93.  Desta forma, o próprio Pombal aparece então, como um pioneiro, o farol balizador da navegação possível que conduz a humanidade ao estádio perfeito da república universal. Assim, não podemos sequer estranhar ou interrogar a razão da própria simbologia nascida da derrota da Europa em 1945, que escolheu como flâmula, uma variante daquela que ondulou em Filadélfia no já longínquo ano de 1776. É a tendência para a ilusão da fusão  do planeta num bloco monolítico, quimera de base ocidental com pouca ou nenhuma ressonância para lá dos montes Urais, pois poderemos considerar o Novo Mundo, como um prolongamento do espaço U.E/E.U.A., com o qual partilha o mesmo Deus, as línguas e a legítima reivindicação da História, considerada esta a partir do nascimento daquilo que hoje somos, nos pântanos mesopotâmicos ou no vale do Nilo.

 

Júdice alerta para o risco da falência de Portugal como Estado, entendido este - segundo depreendemos das suas palavras - como poder soberano autónomo. É uma velha visão de quatrocentos anos, conjecturada já na época do desvanecer dos fumos da Índia e que nos conduziu à fugaz e desastrosa experiência iberista. J.M. Júdice tem razão, quando afirma ..."que há uma ideia errada, que as civilizações não são mortais, que os países não são mortais, que os regimes políticos não são mortais. É mentira. Os regimes políticos morrem, os países morrem e as civilizações morrem. A história está cheia de cadáveres desse tipo". Este analista atento, decerto conhecerá perfeitamente a razão do actual estado de coisas, que deriva exactamente da abertura das janelas da Europa aos conhecidos ventos da história que envenenaram, talvez de forma irreparável, o porvir da nossa Civilização que de cedência em cedência, se descaracteriza, perdendo a força anímica, afastando aqueles que desejariam colocar-se  dentro da nossa esfera de influência e pior que tudo, encorajando aqueles que para a Europa sempre olharam como um alvo primordial de expansão, encarada esta não apenas na sua vertente territorial, mas também como organização social que impôs as doutrinas políticas que regeram o mundo nos últimos cem anos. Naquele momento, teve início a verdadeira globalização, ou seja a conformidade sistematizadora dos sistema políticos.  A China vive hoje sob um regime político engendrado na Alemanha, o mesmo acontecendo com a Índia relativamente à antiga potência suserana, o Reino Unido. Em África, assistimos à tentativa inglória da criação de entidades nacionais, num continente por nós retalhado á medida dos interesses e poder de uma Europa obcecada por um Drang nach Sud pós-Conferência de Berlim. E tudo isto, adoptando as nossas ideologias e consequentes formas de organização política e jurídica. O desastre que é evidente e quotidianamente noticiado, é atribuído, pasme-se, à falta de conformação daquelas sociedades com os princípios fundamentais que regem as sociedades ocidentais! 

 

Júdice fala na necessidade de uma maior federalização da Europa, talvez - segundo se depreende - o primeiro passo para um governo mundial, fantasma que tem perseguido todos os grandes homens, desde os imperadores chineses, a Alexandre Magno, César, Filipe II ou Bonaparte. É uma ideia ou vontade que se eterniza num constante reformular de projecto viabilizador e que na verdade, apenas trouxe o constante declínio da civilização ocidental, a permissividade e a cedência constante a forças exógenas à nossa maneira de pensar e viver. A Europa tem uma ideia perfeitamente estabelecida, daquilo que o Homem é ou deve ser e do seu lugar na sociedade, com os seus direitos, obrigações e forma de organização social que se estende à totalidade das nações erigidas em países.  Os analistas que como J.M.Júdice insistem muito numa globalização que inexplicavelmente parece ter fracassado, deviam aperceber-se da razão primordial do desaire: a impossibilidade do fim proposto, pois as rivalidades económicas, políticas e territoriais  continuarão a existir ad eternum, separando até vizinhos que numa primeira análise, algo têm em comum. JMJ fala do constante recurso dos políticos à mentira e à omissão quanto à informação da realidade do estado de coisas. Ele sabe que de outro modo, o sistema já há muito teria implodido, deitando por terra todos os sofismas habilidosamente urdidos nos salons dos seus antepassados, nos cartéis industriais ou financeiros. Afinal, o que se pretende salvar, é uma certa forma de estar no mundo, da ínfima minoria de dirigentes político-económicos que nos conduziu a uma situação que talvez ainda seja possível remediar. Quanto a Portugal, o regime afunda-se no autismo das conveniências dos grupos económicos que o patrocinam e a classe política insiste nos erros de edificações de fachada modernizadora que significam a ruína a curto prazo. Portugal apostou tudo - e mal, já a Nova Monarquia o dizia há vinte e cinco anos! - numa Europa que em nós apenas viu uma oportunidade de alargamento do mercado interno, controle de recursos de uma ZEE atlântica e argumento basilar para a inevitabilidade do continentalismo, miragem esta prosseguida desde há mais de dois milénios.  O regime rejeitou o passado em África, na Ásia e na América, como um absurdo fardo, descurando interesses vitais e a própria solvência da economia, que qualquer manual aponta a diversificação como condição base para o progresso.

 

O que poderá acontecer dentro de semanas ou meses, disso Júdice poderá ter uma ideia, pois decerto conhece a História. O problema é nosso, é de todos, pois não teremos qualquer outro lugar para onde ir, permitindo-nos escapar  a uma escravidão de contonos ainda difusos, mas facilmente identificável na panóplia de modelos colocados à disposição pelo nosso próprio passado. Mas isto não preocupa os fautores deste nosso contemporâneo fracasso, pois eles ter-se-ão conformado à nova situação, passando mesmo a dirigi-la, como pesada canga sacrificial em prol do bem comum.

publicado às 14:31






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