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" -Chama-o ao telefone o Sr. Prof. Reynaldo dos Santos - disse-me a empregada. - ' Que me quererá o Reynaldo? '- perguntei a mim próprio. Nunca nos tínhamos tefonado. ( ... ). Não lhe ignorava os talentos excepcionais, mas contentava-me de os admirar a distância por falta de tempo e ausência de hábito. Combinado o encontro, Reynaldo propunha-me participar com ele na direcção da revista que a Fundação Gulbenkian lhe confiara - a revista que chamaríamos << Colóquio >> e nos proporcionou uma camaradagem de onze anos. .......................,.... Surpreendente o esforço a que dedicou os últimos anos da sua vida, totalmente consagrados ao estudo e à radicação e generalização do interesse pelo nosso património artístico. Felizmente que lhe foi possível, com o auxílio da sua mulher, ocupar todas as horas em que a doença o não tolhia, a continuar até ao termo a tarefa, assumida como sagrada missão: - legar à nossa terra os três volumes monumentais - Oito Séculos de Arte Portuguesa. " ( Hernâni Cidade, director literário da Colóquio. ) Precisava inventariar os exemplares da Colóquio existentes nas prateleiras paternas, a fim de actualizar a aquisição da revista. E, como sucede frequentemente, a leitura de um excerto prende-me a atenção - paro no volume referente ao já longínquo ano de 1970, e, no número de Maio/Junho leio sobre a morte do que até aí fora o seu director artístico: o Prof. Reynaldo dos Santos. Não consigo conter um sorriso: é que ontem mesmo limpara o pó a esse ' monumento '.
SAUDADES TRÁGICO-MARÍTIMAS
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Na praia, de bruços,
fico sonhando, fico-me escutando
o que em mim sonha e lembra e chora alguém;
e oiço nesta alma minha
um longínquo rumor de ladainha,
e soluços,
de além...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
São meus Avós rezando,
que andaram navegando e que se foram,
olhando todos os céus;
são eles que em mim choram
seu fundo e longo adeus,
e rezam na ânsia crua dos naufrágios;
choram de longe em mim, e eu oiço-os bem,
choram ao longe em mim sinas, presságios,
de além, de além...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Naufraguei cem vezes já...
Uma, foi na nau S. Bento,
e vi morrer, no trágico tormento,
Dona Leonor de Sá:
vi-a nua, na praia áspera e feia,
com os olhos implorando
– olhos de esposa e mãe -
e vi-a, seus cabelos desatando,
cavar a sua cova e enterrar-se na areia.
– E sozinho me fui pela praia além...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Escuto em mim, – oiço a grita
da rude gente aflita:
– Senhor Deus, misericórdia!
– Virgem Mãe, misericórdia!
Doidos de fome e de terror varados,
gritamos nossos pecados,
e sai de cada boca rouca e louca
a confissão!
– Senhor Deus, misericórdia!
– Misericórdia, Virgem Mãe!
e o vento geme
no vulcão
sem astros;
anoitecemos sem leme,
amanhecemos sem mastros!
E o mar e o céu, sem fim, além...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Ah! Deus por certo conhece
minha voz que se ergue, branca e sozinha,
– flor de angústia a subir aos céus varados
p'la dor da ladainha!
Transido, o clamor da prece
do mesmo sangue nos veio
Deus conhece os meus olhos alongados;
onde o mar e o céu deixaram
um pouco de vago anseio
nesse mistério longo do seu halo...
Rezam em mim os outros que rezaram,
e choraram também;
há um pranto português, e eu sei chorá-lo
com lágrimas de além...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Ó meu amor, repara
nos meus olhos, na sua mágoa clara!
Ainda é de além
o meu olhar de amor
e o meu beijo também.
Se sou triste, é de outrora a minha pena,
de longe a minha dor
e a minha ansiedade.
Vês como te amo, vês?
Meu sangue é português,
minha pele é morena,
minha graça a Saudade,
meus olhos longos de escutar sem fim
o além, em mim...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar
Afonso Lopes Vieira, « Ilhas de Bruma »
" E tanta era a sinceridade das suas palavras e dos seus versos, que numas e noutros ninguém poderá descobrir o vulgar brilho que falsamente refulge e com o qual tantas vezes se douram e desdouram reputações. Poeta por alto destino, Troveiro da Tradição, incansável apóstolo do patriotismo verdadeiro, arauto da ternura e nobreza do nosso Povo, saudável preceptor da sensibilidade portuguesa "
Hipólito Raposo, « Modos de Ver »
do mosteiro cisterciense de S. João de Tarouca, isto é entre a vila de Ucanha e Salzedas, onde um padre o iniciou em latim e um tio em francês; "já nesse tempo se manifesta o traço que havia de fazer dele o maior registador de coisas populares: sem saber ao certo para quê, ia apontando em caderninhos o que ouvia ou perguntava" ( Instituto Camões )
Mas é só aos 18 anos, quando vai para o Porto estudar, licenciando-se primeiro em Ciências Naturais e depois em Medicina, que começa a fazer, de modo sistemático, uma recolha de tipo etnográfico.
Quando apresenta, como tese desta segunda licenciatura, « A Evolução da Linguagem », manifesta inequivocamente uma já antiga apetência pelas letras. Envereda então pelo estudo da linguística, da etnologia, arqueologia e etnografia, domínios em que se torna uma referência no âmbito mundial.
Autor de uma Obra vastíssima, parte dessa recolha etnográfica colige-a ele no « Romanceiro Português », de que retirei este " Romance Épico de Assunto Carolíngio ":
Sentado está D. Dalfeiro - no tabulado real,
Os seus dados tem na mão - e as cartas para jogar.
- Para isso és D. Dalfeiro, - não para dar de jantar.
Tua mulher entre os mouros, - não és para a ir buscar.
Ela estava em Salcedo, - lá no palácio real.
Foi-se ele a ter com Roldão, - que era seu primo carnal.
- Um favor te peço, ó primo, - e tu não me hás-de faltar:
Tuas armas, teu cavalo, - tu me las hás-d'emprestar
- Minhas armas, meu cavalo, - eu tas não hei-d' emprestar
Que as tenho bem vezadas, - não as quero mal vezar.
- Tuas armas, teu cavalo, - tu me las hás d'emprestar,
Para ir buscar minha mulher, - às outras bandas do mar.
- Minhas armas, meu cavalo, - eu te las hei-d'emprestar,
E este meu corpo gentil, - para t'ir a acompanhar.
- Sozinho, quero ir só, - para melhor a roubar
À entrada de Salcedo - um Mourinho encontrara:
- Deus te guarde meu Mourinho, - que Deus te queira guardar;
Para onde ir à Cristana, - que rua hei-de tomar?
- Indo Rua Direita acima, - ter ao palácio real
Ela estava na varanda - e se queria pentear.
- Deu'la guarde ó senhora, - que Deus la queira guardar.
- Donde será este senhor - que tão bem sabe falar?
- Cristano eu sou, senhora, - das bandas d'além do mar.
- Se virdes lá D. Dalfeiro, - que ele me venha buscar.
- Esse recado, senhora - a ele mesmo o estais a dar.
Saltou da varanda abaixo,- por não haver mais lugar.
A sentinela, que viu, - começou logo a gritar:
- Lá se marcha la Cristana - para as outras bandas do mar!
- Cala-te aí, perro mouro, - senão vou-te matar,
- Para não morrerdes um só, - morrereis a par e par.
( Recolhido em Vinhais, Trás-os-Montes )
« Glorioso Voo »
" Na paz cantante do céu,
Nessa doçura infinita
Onde o Criador habita
Mais alto que as luzes belas
De miríades de estrelas,
Ouviu-se o estranho rumor
De alguém que se aproximava
Com rapidez e valor
Deus escutou... escutava
Com afecto paternal.
Era o avião que passava
Levando Gago e Cabral.
..................................... "
Alberto Pimentel, « Luar de Saudade »
" Eusébio Macário não conseguia refazer-se à existência de Basto. Faltava-lhe a conversa do « Palheiro », a consideração de um auditório atento e de variegada erudição.
Já não se acomodava a lidar com labregos, encodeados, muito broncos, ele, ex-indigitado vereador da Câmara do Porto.
Atrigava-se de manipular unguentos e pomadas depois que casara a filha com o barão do Rabaçal ( ... ). É verdade que a baronesa fugira com o cómico, dera em droga, mas nem por isso Eusébio Macário deixara de ser sogro de um titular, e para mais Cavaleiro da Ordem de Cristo.
Sentia-se aborrecido, deslocado. Habituado à moleza das poltronas do genro, já não lhe sabiam, como antes, as largas sestas roncadas à porta, no incómodo mocho de cerdeira.( ... )
Um dia, porém, soube-se em Basto que falecera em Guimarães um boticário, o Pereira, o último de uma dinastia afamada, cujo representante da época mesinhara o próprio rei D. José na sua visita ao berço da nação. A família de Pereira resolvida a fechar a farmácia, conservava ainda o praticante à espera da liquidação final das pomadas e unguentos.
Isto fez germinar no cérebro da mulher de Macário, a Eufémia Troncha, uma ideia genial: - porque não haviam de ir para Gimarães, boa terra, muito dada a comesainas, terra de soldados e mais civilização? ( ... )
Eusébio rendeu-se e escreveu à viúva do Pereira, a saber se a farmácia se alugava.
Veio a resposta pronta: - que sim, que se alugava...; que fosse lá...
Eram 5 horas da tarde de um sábado quando Eusébio Macário entrou no Toural ( ... ). A farmácia era na Porta da Vila ( ... ). A freguesia, segundo Eusébio colheu da boca do praticante, era da melhor. A Casa do Arco, a do Toural, a de Vila Pouca, a do Cano sortiam-se lá. E, antes de entrar em mais ajustes, assegurou-se de que lhe não faltaria a dos dois hospitais das Ordens Terceiras... ( ... )
Macário voltou a Basto radiante, cheio de projectos, de esperanças de vida regalada, com muito pinto e sonecas tranquilas. ( ... )"
Já Camilo, o feliz criador da burlesca e interesseira personagem do boticário de Basto, tinha morrido, quando o futuro patrono da minha Escola Preparatória engendrou este seu regresso ao Minho, depois de uma saída pouco airosa da capital nortenha: corria o ano de 1912 quando este livrinho encheu os escaparates das movimentadas livrarias da cidade de Afonso Henriques. Por então o autor tinha já lugar cativo entre uma geração de homens que muito trouxeram às letras e cultura em geral.
Com efeito, podemos ler no " site " do Agrupamento de Escolas João de Meira, entre outras coisas que indiciam um Grande, escolhido para continuar a obra de grande fôlego, iniciada pelo Enorme abade de Tagilde, Vimaranis Monumenta Historica: " Possuidor de larga cultura, a sua vocação literária manifestou-se quando, ainda estudante, principiou a colaborar em jornais académicos e de província, primeiro com versos bem trabalhados e depois em prosa, fácil e de vivo colorido. Em 1902 publicou Influências Estrangeiras em Eça de Queirós, curioso estudo revelando profundo conhecimento da obra do romancista, e mais tarde Eusébio Macário em Guimarães, à guisa de capítulos suplementares à Corja, de Camilo, e ainda Cartas de Camilo Castelo Branco a Francisco Martins Sarmento, com prefácio e notas. Cedo, porém, se manifestou a sua predilecção pelos estudos históricos e escreveu: Subsídios para a História Vimaranense; O Claustro da Colegiada de Guimarães e Estudos da Velha História Pátria - O Livro da Mumadona. "
Mais um vulto de que nos podemos orgulhar; mais um Grande Português.
Agora Santo também.
D. Nuno Álvares Pereira não se limitaria a ilustrar a história pátria com esta sua faceta guerreira e patriota. O alto exemplo que nos legou ficaria para sempre marcado pelo lado humano e caritativo que « Com a paz com Castela firmada a 31 de Outubro de 1411 » o permitiria « dedicar-se com maior intensidade às obras de misericórdia, criando casas de abrigo para doentes viúvas e orfãos. O seu amor ao próximo não conhecia raça ou crença, e assim acolheu nas suas terras, mouros e judeus, construindo Mesquitas e Sinagogas » ( « D. Nuno Álvares Pereira - Um Santo Para o Nosso Tempo », in Boletim da Fundação D. Manuel II .