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Enganos em tempos de coronavírus

por Samuel de Paiva Pires, em 31.03.20

O primeiro engano: a dicotomia entre salvar vidas vs. salvar a economia. Como escreveu há dias Steve Horwitz, os custos económicos são custos humanos e todos os custos humanos têm custos económicos. Qualquer das opções (manter a actividade económica a decorrer normalmente e aumentar o grau de propagação do vírus e os seus efeitos a longo prazo vs. quarentena e distanciamento social com a consequente redução na actividade económica, mas com controlo do vírus e relançamento da actividade económica a curto e médio prazo) tem custos económicos. A política é a arte do possível, pelo que quanto à tomada de decisão sobre políticas públicas, não só a primeira opção é moralmente superior como é também a que, numa análise custo-benefício, provavelmente será menos dispendiosa, segundo dois estudos (este e este) referidos por Cass Sunstein. Como é óbvio, requer um forte pacote estatal de estímulo à economia, que no caso de países detentores de moeda própria é mais fácil e rapidamente implementável, o que me leva ao próximo ponto.

O segundo engano: a ideia de que os países do norte da Europa são muito produtivos e frugais ao passo que os países do sul são pouco produtivos, gastadores e pedintes em relação aos do norte com os “eurobonds” e/ou a impressão de dinheiro pelo BCE. Esta narrativa popular tem feito escola até entre muitos cidadãos de países do sul, sendo visível uma quantidade não-negligenciável dos seus adeptos, muitos deles defensores também da estratégia de salvar a economia em detrimento de vidas humanas aflorada no ponto anterior. Para estes, que no ano de 2020, tendo já passado pela crise do euro, ainda não conseguiram perceber que a União Económica e Monetária tem falhas estruturais conducentes a um funcionamento perverso que privilegia os países do norte e prejudica os do sul, dificilmente haverá salvação. Acresce que o actual choque é simétrico, afecta todos os países, ao contrário do choque assimétrico da crise do euro, típico de uma união monetária com as características que enunciei noutro post. O importante a reter é que percebem tanto de uniões monetárias e política internacional como eu percebo de crochê. Se o país dependesse deles enquanto governantes, morreria boa parte da população e outra grande parte ficaria debilitada, o SNS ficaria arruinado e a retoma económica seria uma miragem à distância de várias décadas.

Na origem destas posições parece-me estar a incapacidade de encarar e lidar com uma problemática que provoca imensas mudanças em tantos sectores das nossas vidas e terá consequências que ainda não conseguimos vislumbrar na sua totalidade e probabilidade, embora não sejam inimagináveis. Muitas empresas irão fechar e muitas deveriam fazê-lo o mais rapidamente possível para não se sobreendividarem e desperdiçarem recursos financeiros e humanos em actividades que não serão viáveis durante bastante tempo (estou a pensar especialmente no sector do turismo), muito provavelmente teremos de nacionalizar empresas de sectores estratégicos (ocorre-me desde logo a TAP), a taxa de desemprego vai disparar, tendo o subsídio de desemprego e as políticas sociais de amparar grande parte da população enquanto esta se reconverte para outros sectores de actividade, não sendo de colocar de lado a possibilidade de implementação de medidas como o Rendimento Básico Incondicional. Quem mais rapidamente se adaptar e transformar em face da mudança, mais depressa conseguirá ultrapassar os efeitos negativos desta.

Já Edmund Burke salientava que “Todos temos de obedecer à grande lei da mudança. É a mais poderosa lei da Natureza, e porventura o meio da sua conservação,” e que “Um estado sem os meios de alguma mudança encontra-se sem os meios da sua conservação”, um eco daqueles ensinamentos de Maquiavel a respeito da capacidade de adaptação do príncipe, de quem afirma ser “preciso que ele tenha um ânimo disposto a virar-se consoante os ventos da fortuna e a variação das coisas lhe mandam.” Como Diogo Pires Aurélio sublinha a propósito da obra do florentino, “O hábito (…) molda uma maneira de agir e, nessa medida, reduz a capacidade de improvisação e adaptação.” E como a política é “por definição uma actividade que se defronta irremediavelmente com a novidade, uma vez que a mudança dos tempos é inevitável: ou se é capaz de os mudar ou há um outro que os muda, ou se triunfa ou se perde.”

Nos tempos relativamente estáveis das últimas décadas, se quiserem, de normalidade, com mudanças relativamente moderadas, a economia tomou precedência sobre a política. Mas não vivemos tempos normais e os quadros mentais da cartilha neo-liberal não servem para estes tempos. E saliento a palavra cartilha, porque os nossos aprendizes de neo-liberais deviam ler mais um dos pais do neo-liberalismo, Friedrich Hayek, de cujo Law, Legislation and Liberty deixo um excerto:

The basic principle of a free society, that the coercive powers of government are restricted to the enforcement of universal rules of just conduct, and cannot be used for the achievement of particular purposes, though essential to the normal working of such a society, may yet have to be temporarily suspended when the long-run preservation of that order is itself threatened. Though normally the individuals need be concerned only with their own concrete aims, and in pursuing them will best serve the common welfare, there may temporarily arise circumstances when the preservation of the overall order becomes the overruling common purpose, and when in consequence the spontaneous order, on a local or national scale, must for a time be converted into an organization. When an external enemy threatens, when rebellion or lawless violence has broken out, or a natural catastrophe requires quick action by whatever means can be secured, powers of compulsory organization, which normally nobody possesses, must be granted to somebody. Like an animal in flight from mortal danger society may in such situations have to suspend temporarily even vital functions on which in the long run its existence depends if it is to escape destruction.

publicado às 20:50

In Memoriam - Sir Roger Scruton (1944-2020)

por Samuel de Paiva Pires, em 12.01.20

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Há 8 anos tive o privilégio de assistir a uma conferência de Sir Roger Scruton, em Lisboa, dedicada essencialmente à temática do Estado-nação como resposta às crises que vamos vivendo e em que o filósofo britânico não deixou de tecer críticas ao processo de integração europeia, um tema recorrente nas suas reflexões e a que dedicou parte de um dos livros que mais o deu a conhecer em Portugal, As Vantagens do Pessimismo. Diria até que se Nigel Farage, Boris Johnson e Dominic Cummings foram os principais artífices do Brexit na praxis política, Scruton terá sido quem mais fez por esta causa no plano das ideias, especialmente atendendo à sua apaixonada defesa de uma certa ideia de Inglaterra que tantas vezes lhe causou dissabores ao longo da sua tumultuosa carreira académica. Da conferência em Lisboa, guardo a memória não só do seu brilhantismo intelectual, mas da sua simpatia e genuíno gosto pelo debate de ideias, numa tarde em que se dispôs a partilhar as suas reflexões com uma dúzia de académicos portugueses, alguns dos quais, aliás, se têm dedicado a estudar o seu pensamento - como é, de resto, o meu caso, figurando Scruton como um dos autores conservadores cujas ideias sobre os conceitos de tradição, razão e mudança analisei na minha tese de doutoramento.

Tratando-se de um herdeiro de Burke e de Hegel, de um crítico do liberalismo mas que coincide parcialmente com autores como Hayek (outro herdeiro de Burke) no que à teoria social concerne, Scruton é um dos pensadores contemporâneos responsáveis por desconstruir o mito de que ser conservador é igual a ser-se imobilista. Só um incauto poderia ser surpreendido pela sua afirmação tipicamente burkeana, em How to be a Conservative, de que o “desejo de conservar é compatível com toda a forma de mudança, desde que a mudança também seja continuidade”. Dificilmente se pode concordar com tudo no seu pensamento - é, também, o meu caso -, ainda para mais tratando-se de um autor tão prolífico, mas é impossível lermos Scruton e não nos sentirmos desafiados e estimulados a reflectir sobre os mais diversos temas. A minha evolução intelectual é parcialmente devedora do seu trabalho, que me permitiu compreender melhor as falhas do liberalismo e as potencialidades do conservadorismo, quer na teoria quer na acção política. A sua morte, hoje, aos 75 anos, é uma notícia triste e representa uma perda inestimável para a reflexão política dos conservadores - bem como dos seus adversários, alguns dos quais analisados em Fools, Frauds and Firebrands, uma das suas obras mais polémicas e cuja primeira edição, em 1985, com o título Thinkers of the New Left, lhe valeu o repúdio de boa parte da academia britânica. Afinal, numa época de ortodoxias e dogmatismos vários, à esquerda e à direita, a sua moderação foi quase sempre vista como herética. Partiu prematuramente, mas o seu trabalho e as suas ideias continuarão a florescer e a resistir ao teste do tempo.  

Nesta hora, e para terminar, permitam-me relembrar o que creio ser uma das passagens mais emblemáticas de How to be a Conservative e que resume a sua posição moderada a respeito do papel do Estado. Para Scruton, e em tradução livre da minha lavra, este

é, ou deve ser, tanto menos do que os socialistas requerem, e mais do que os liberais clássicos permitem. O Estado tem um objectivo, que é proteger a sociedade civil dos seus inimigos externos e das suas desordens internas. Não pode ser meramente o Estado ‘night watchman’ defendido por Robert Nozick, visto que a sociedade civil depende de relações que devem ser renovadas e, nas circunstâncias modernas, estas relações não podem ser renovadas sem a provisão colectiva do bem-estar. Por outro lado, o Estado não pode ser o fornecedor e regulador universal proposto pelos igualitários, visto que o valor e o compromisso emergem das associações autónomas, que florescem apenas se puderem crescer de baixo. Ademais, o Estado só pode redistribuir riqueza se a riqueza for criada e a riqueza é criada por aqueles que esperam ter uma parte dela.”

Descanse em paz, Sir Roger Scruton.

publicado às 21:45

O anarco-capitalismo contraria o liberalismo clássico

por Samuel de Paiva Pires, em 15.09.16

O título deste post está errado. Deveria ser "Why Hayek and Not Mises". Em primeiro lugar, porque ao contrário do que Mises pensava, a propriedade privada não é suficiente, per se, para definir o liberalismo e o conceito de liberdade - se o fosse, o liberalismo não seria uma teoria política. E porque o anarco-capitalista Hans-Hermann Hoppe compila uma série de citações de Hayek com o intuito de mostrar que este era um social-democrata moderado, acabando, na verdade, por mostrar que Hayek era um liberal clássico que compreendia que a liberdade não pode ser apenas encarada na sua dimensão negativa, devendo ser combinada com a dimensão positiva, que é algo que está na base do Estado contemporâneo nas sociedades ocidentais. Ou seja, Hayek era um realista, ao passo que Rothbard, Hoppe e a restante trupe anarco-capitalista viveram ou continuam a viver no seu mundinho ideal da utopia libertária.

publicado às 22:04

Tradição e progresso em Hayek

por Samuel de Paiva Pires, em 02.09.15

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Friedrich Hayek, Law, The Political Order of a Free People, vol. 3 de Law, Legislation and Liberty:

 

Tradition is not something constant but the product of a process of selection guided not by reason but by success. It changes but can rarely be deliberately changed. Cultural selection is not a rational process; it is not guided by but it creates reason.

(...)

We do not really understand how it maintains the order of actions on which the co-ordination of the activities of many millions depends. And since we owe the order of our society to a tradition of rules which we only imperfectly understand, all progress must be based on tradition. We must build on tradition and can only tinker with its products. It is only by recognizing the conflict between a given rule and the rest of our moral beliefs that we can justify our rejection of an established rule. Even the success of an innovation by a rule-breaker, and the trust of those who follow him, has to be bought by the esteem he has earned by the scrupulous observation of most of the existing rules. To become legitimized, the new rules have to obtain the approval of society at large - not by a formal vote, but by gradually spreading acceptance. And though we must constantly re-examine our rules and be prepared to question every single one of them, we can always do so only in terms of their consistency of compatibility with the rest of the system from the angle of their effectiveness in contributing to the formation of the same kind of overall order of actions which all the other rules serve. There is thus certainly room for improvement, but we cannot redesign but only further evolve what we do not fully comprehend.

(...)

That progress may be faster than we like, and that we might be better able to digest it if it were slower, I will not deny. But unfortunately, progress cannnot be dosed, (nor, for that matter, economic growth!) All we can do is to create conditions favourable to it and then hope for the best. It may be stimulated or damped by policy, but nobody can predict the precise effects of such measures; to pretend to know the desirable direction of progress seems to me to be the extreme of hubris. Guided progress would not be progress. 

publicado às 09:29

Tragam as pipocas

por Samuel de Paiva Pires, em 22.12.14

Carlos Abreu Amorim afirma que já não é liberal, as reacções entre alguns liberais e até pessoas de outros quadrantes político-ideológicos não se fizeram esperar, mas talvez o melhor mesmo seja ler este texto de Rui A. de onde se pode retirar uma ilação que não fica necessariamente patente no mesmo, mas que há já algum tempo venho afirmando: público e privado, Estado e mercado, são duas faces de uma mesma moeda, pelo que nem tudo o que é público é bom ou mau, tal como nem tudo o que é privado. Como diria Montaigne, bem e mal coexistem nas nossas vidas. O mundo - e a condição humana - é um bocadinho mais complicado e menos ingénuo do que o preto e branco e tudo ou nada que muitas almas ditas liberais tendem a ver. Por outras palavras, menos Rothbard e mais Hayek só faria bem a muita gente. 

publicado às 10:44

Uma direita ignorante

por Samuel de Paiva Pires, em 18.06.14

Uma direita dita liberal que teima em insistir que o liberalismo rejeita a tradição, sem conceptualizar a noção de tradição a que se refere - ficando implícito que é todo e qualquer tipo de tradição -, não é uma direita liberal. É uma direita dita liberal que não leu um dos seus autores supostamente predilectos, Friedrich Hayek, e, portanto, desconhece que a noção de tradição subjaz ao próprio mercado livre e está intrinsecamente ligada ao conceito de ordem espontânea. Se, efectivamente, o liberalismo rejeitasse toda e qualquer tradição, dado que o liberalismo é, ele próprio, uma tradição, que contém em si várias tradições, então o liberalismo rejeitar-se-ia a si próprio - em face disto, conservadores e esquerdistas só se podem rir de certos patuscos liberais. Em suma, estamos em presença de uma direita ignorante.

publicado às 10:36

Quando os piores chegam ao topo

por Samuel de Paiva Pires, em 15.12.13

Por alguma razão, as observações de Moisey Ostrogorsky e Robert Michels, a respeito do funcionamento dos partidos políticos, tornaram-se clássicas. Ontem, como hoje, os partidos funcionam, em larga medida, como estes assinalaram.

 

Mas talvez tenha sido Hayek a resumir bem o funcionamento dos partidos, com o título que deu a um dos capítulos d'O Caminho para a Servidão: "Why the worst get on top." E talvez não seja surpreendente que um capítulo e um livro dedicado a analisar regimes totalitários seja particularmente certeiro quanto ao funcionamento de certas agremiações políticas cá do burgo, ou não vejamos, frequentemente, políticos e/ou aspirantes a tal a "escolher entre o desprezo por normas morais comuns e o falhanço”, razão pela qual “os inescrupulosos e desinibidos tendem a ser mais bem sucedidos (…)." É este tipo de líderes políticos que procura formar grupos uniformes baseados em baixos "padrões morais e intelectuais onde os instintos e gostos mais primitivos e “comuns” prevalecem", assim conseguindo obter "o apoio dos dóceis e crédulos, que não têm fortes convicções próprias mas estão preparados para aceitar um sistema de valores já pronto, conquanto seja martelado aos seus ouvidos suficientemente alto e com frequência." E é este tipo de grupos que, ao invés de procurar realizar um programa positivo, prefere a tarefa, muito mais fácil, de fundamentar a sua acção num programa negativo, ou seja, na oposição a um inimigo comum, "que parece ser um ingrediente essencial em qualquer credo que pretenda manter um grupo solidamente unido (…)."

 

Infelizmente, Platão tinha razão quando dizia que o preço a pagar pela indiferença dos homens bons em relação aos assuntos públicos é serem governados pelos homens maus ou inferiores. Mas, também infelizmente, parece que os primeiros rareiam, ao passo que os segundos abundam, pelo que não deixa de ser sedutora a ideia de nos resguardarmos na vita contemplativa. Seja como for, há que continuar a seguir Virgílio, não cedendo ao mal, mas prosseguindo cada vez mais corajosamente contra ele.

publicado às 23:17

Os disparates de Mário Soares

por Samuel de Paiva Pires, em 15.10.13

Mário Soares: "No entanto, há poucos dias fui, porque se tratava do filme excecional sobre Hannah Arendt, de quem sou, há muitos anos, um fã e da qual tenho muitos livros".

Tradução: "li muito pouco ou nada dela".

 

Afinal, o mesmo Mário Soares quis trazer Hayek a Portugal aquando da atribuição ao economista austríaco do Prémio Nobel da Economia. Entretanto alguém lhe terá dito que tipo de ideias eram defendidas por Hayek. 

publicado às 12:38

E é só para dizer que me provoca bocejos e um enorme fastio, não só porque a comunicação social e o país político parecem não ter mais nada sobre que falar, mas também, e especialmente, porque Portugal foi e continua a ser corrompido e desgovernado de formas e feitios que, na sua larga maioria, são ainda desconhecidos pela generalidade dos portugueses e são os mesmos que agora se armam em virgens impolutas e ofendidas a respeito dos Swaps que são os principais responsáveis por estes e pelo descalabro repulsivo que é o estado a que chegámos. Enquanto uns pobres de espírito se entretêm a brincar aos pobrezinhos, outros vão-se entretendo a empobrecer-nos material e espiritualmente brincando aos politicozinhos. Estão todos bem uns para os outros neste regime de paz podre que, paradoxalmente, tanto dá razão à luta de classes de Marx como ao diagnóstico de Hayek quanto à perversão do ideal democrático operada pelos políticos e coligações de interesses organizados. Mas são todos anjos e santos e é tudo em nome do interesse nacional, claro está.

publicado às 21:09

Os piquetes de greve deveriam ser proibidos (republicado)

por Samuel de Paiva Pires, em 27.06.13

Hoje é um bom dia para relembrar um post que publiquei aquando da última Greve Geral, a propósito da existência de piquetes de greve, que aqui republico na íntegra:

 

 

 (A minha cara se algum piquete de greve se atravessar no meu caminho em qualquer transporte público que eu consiga apanhar amanhã/hoje)

 

Dia de greve pretensamente geral é sempre um bom dia para relembrar os efeitos nefastos do sindicalismo salientados por Oakeshott e Hayek, e é também um dia de greve tão bom como qualquer outro para os portugueses libertarem a tensão acumulada com a crise e aviarem uns quantos piquetes de greve, que são apenas mais um repulsivo anacronismo sem lugar numa sociedade verdadeiramente democrática. Lembro que o o Art.º 57.º da Constituição da República Portuguesa apenas consagra o direito à greve, não fazendo qualquer menção a piquetes. Já o Art.º 21.º consagra o direito de resistência: "Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública."

 

Ou seja, o direito à greve não pressupõe piquetes de greve, e dado que a nossa liberdade acaba onde começa a dos outros, os que o desejem podem fazer greve à vontade, mas a partir do momento em que tentam impedir violentamente os que não querem fazer greve de trabalhar, legitimam moralmente que estes recorram também à violência para reparar a injustiça que lhes tentam impor. Ou não seja o trabalho de cada um uma componente primeira da sua propriedade privada e esfera de liberdade individual, as quais devem ser protegidas pelo estado da interferência de terceiros. Se este não o faz, resta aos próprios fazê-lo. 

 

E aqui ficam duas passagens de Hayek, numa tradução livre minha:

 

«Os presente poderes coercivos dos sindicatos fundamentam-se principalmente no uso de métodos que não seriam tolerados para qualquer outra finalidade e que se opõem à protecção da esfera privada do indivíduo. Em primeiro lugar, os sindicatos dependem – numa extensão muito maior do que é comummente reconhecido – do uso de piquetes como um instrumento de intimidação. Que mesmo os chamados piquetes "pacíficos" são severamente coercivos e a apologia que destes é feita constitui um privilégio concedido por causa do seu suposto objectivo legítimo é demonstrado pelo facto de que estes podem ser e são usados por pessoas que não são trabalhadores para forçar os outros a formar uma união que eles irão controlar, e que também pode ser utilizada para fins puramente políticos ou para dar expressão à animosidade contra uma pessoa impopular. A aura de legitimidade que lhes é conferida porque os objectivos são muitas vezes aprovados não pode alterar o facto de representarem uma espécie de pressão organizada sobre os indivíduos que numa sociedade livre não deve ser permitida a qualquer agência privada.»

 

(…)

 

«O requisito essencial é que a verdadeira liberdade de associação seja assegurada e que a coerção seja tratada como igualmente ilegítima quer seja empregue a favor ou contra a organização, pelo empregador ou pelos funcionários. O princípio de que o fim não justifica os meios e que os objectivos dos sindicatos não justificam a sua isenção das regras gerais do direito deve ser rigorosamente aplicado. Hoje isto significa, em primeiro lugar, que todos os piquetes devem ser proibidos, uma vez que são não só a causa principal e habitual de violência, mas mesmo nas suas formas mais pacíficas são um meio de coerção.»

publicado às 13:25

114.º aniversário do nascimento de Friedrich Hayek

por Samuel de Paiva Pires, em 08.05.13

 

No dia do 114.º aniversário do nascimento de Friedrich Hayek, o Gabinete de Estudos Gonçalo Begonha teve a simpatia de divulgar a minha dissertação de mestrado dedicada ao pensamento de um dos mais importantes liberais clássicos de todos os tempos. 

publicado às 23:04

Parece que há quem não só nunca tenha lido Hayek como desconheça as contradições deste e o veja como um Papa infalível, pareça não ter lido grande coisa para além de meia dúzia de economistas e pseudo-filósofos e, pior, seja tolhido pelo dogmatismo e fanatismo redutores que fazem com que se classifique como socialismo qualquer tipo de políticas sociais, a safety net a que o próprio Hayek se refere e da qual usufruiu. O Estado Social é uma criação anti-socialista, originada por quem realisticamente percebia o que é o rastilho das revoluções e quem é que tende a ser tolhido pelo comunismo, mas para perceber isto é preciso realmente ler um bocadinho mais que meia dúzia de coisas. Talvez um dia certos liberais, especialmente os desprovidos de subtileza e intelecto para compreender o poder, percebam como é ideológica e politicamente suicida este tipo de dogmatismo. 

 

P.S.: Aqui fica o essencial sobre Bismarck.

publicado às 10:20

E ainda ninguém gritou "ultra-neo-liberal-fássista!"

por Samuel de Paiva Pires, em 14.03.13

Estranhos tempos estes em que até Adriano Moreira e Viriato Soromenho-Marques citam e defendem Hayek, invocando-o contra os seus pretensos discípulos que desgovernam a União Europeia. Talvez se os pretensos discípulos começassem a lê-lo e a tentar compreendê-lo percebessem muitos dos erros que têm cometido. E se os que vociferam constantemente contra o neo-liberalismo fizessem o mesmo, talvez o debate público pudesse ter um pouco mais de qualidade.

publicado às 15:51

Hayek no ciclo de conferências Política e Pensamento

por Samuel de Paiva Pires, em 03.03.13

Amanhã, pelas 18:30, na Livraria Ferin em Lisboa, no âmbito do ciclo de conferências Política e Pensamento, dirigido pelo deputado José Ribeiro e Castro, o André Azevedo Alves apresentará o livro O Caminho para a Servidão, a célebre obra de F. A. Hayek.

publicado às 22:42

Eu prefiro retornar a Burke, Oakeshott ou Scruton, para moderar excessos de racionalismo e forçar-me a olhar mais para a realidade e menos para os dogmas ideológicos. Simultaneamente, e para bem da minha sanidade intelectual, não deixo de me religar ao ponto de referência liberal, que encontra em Hayek um saudável realismo. Talvez por isto mesmo, Hayek é um dos autores mais vilipendiados por muitos dos ditos liberais. Nestes tempos em que muitos continuam a clamar pela destruição do Estado Social per se, sem qualificar aquilo a que se referem quando falam em Estado Social, esquecendo-se das raízes liberais e anti-socialistas do Estado Social, e deixando ainda de lado aquilo que a coberto do manto do Estado Social é o que está em larga medida na origem da crise que vamos vivendo, talvez por cegueira ideológica, obsessão, fetiche ou, no caso de alguns, por usufruírem ou pretenderem usufruir directamente das sinecuras do regime - há aspirantes a conselheiros de príncipe que não se dão conta das figuras que fazem -, vale bem a pena voltar a Hayek, no caso, a The Constitution of Liberty:



«Unlike socialism, the conception of the welfare state has no precise meaning. The phrase is sometimes used to describe any state that "concerns" itself in any manner with problems other than those of the maintenance of law and order. But, though a few theorists have demanded that the activities of government should be limited to the maintenance of law and order, such a stand cannot be justified by the principle of liberty. Only the coercive measures of government need be strictly limited. We have already seen (in chap. xv) that there is undeniably a wide field for non-coercive activities of government and that there is a clear need for financing them by taxation.

 

Indeed, no government in modern times has ever confined itself to the "individualist minimum" which has occasionally been described, nor has such confinement of governmental activity been advocated by the "orthodox" classical economists. All modern governments have made provision for the indigent, unfortunate, and disabled and have concerned themselves with questions of health and the dissemination of knowledge. There is no reason why the volume of these pure service activities should not increase with the general growth of wealth. There are common needs that can be satisfied only by collective action and which can be thus provided for without restricting individual liberty. It can hardly be denied that, as we grow richer, that minimum of sustenance which the community has always provided for those not able to look after themselves, and which can be provided outside the market, will gradually rise, or that government may, usefully and without doing any harm, assist or even lead in such endeavors. There is little reason why the government should not also play some role, or even take the initiative, in such areas as social insurance and education, or temporarily subsidize certain experimental developments. Our problem here is not so much the aims as the methods of government action.

 

References are often made to those modest and innocent aims of governmental activity to show how unreasonable is any opposition to the welfare state as such. But, once the rigid position that government should not concern itself at all with such matters is abandoned - a position which is defensible but has little to do with freedom - the defenders of liberty commonly discover that the program of the welfare state comprises a great deal more that is represented as equally legitimate and unobjectionable. If, for instance, they admit that they have no objection to pure-food laws, this is taken to imply that they should not object to any government activity directed toward a desirable end. Those who attempt to delimit the functions of government in terms of aims rather than methods thus regularly find themselves in the position of having to oppose state action which appears to have only desirable consequences or of having to admit that they have no general rule on which to base their objections to measures which, though effective for particular purposes, would in their aggregate effect destroy a free society. Though the position that the state should have nothing to do with matters not related to the maintenance of law and order may seem logical so long as we think of the state solely as a coercive apparatus, we must recognize that, as a service agency, it may assist without harm in the achievement of desirable aims which perhaps could not be achieved otherwise. The reason why many of the new welfare activities of government are a threat to freedom, then, is that, though they are presented as mere service activities, they really constitute an exercise of the coercive powers of government and rest on its claiming exclusive rights in certain fields.»

publicado às 03:15

Já dizia Hayek que "social" é a suprema palavra doninha

por Samuel de Paiva Pires, em 05.12.12

Há por aí muita gente que gosta de enaltecer o "sector da economia social". Ainda que mal pergunte, se tomarmos como verdadeira esta denominação, será que alguma alma caridosa pode explicar-me então o que é a economia não social ou asocial?

publicado às 00:04

A liberdade do erro

por João Pinto Bastos, em 01.12.12

Samuel De Paiva Pires, pertinente como sempre, fez alusão a um artigo de José Pacheco Pereira em que o sábio da Marmeleira afirma, preto no branco, que o Governo português é hayekiano cá dentro. Hayekiano? Concretamente em quê? No aumento de impostos? Na asfixia da economia privada? No inchamento do Leviatã? Pacheco tem a obrigação de saber que o espectáculo de incompetência a que estamos sujeitos nada tem a ver com Hayek. Rigorosamente nada. Os rótulos ideológicos não interessam nada, o que importa é, isso sim, a práxis política, isto é a acção política quotidiana. Quando muito isto assemelha-se mais a uma variante lusa de uma espécie que eu julgava em vias de extinção: o modo de governação à Calígula. O despotismo começa sempre assim: aumento de impostos e esmagamento do indivíduo. Em todas as épocas e em todos os lugares.

publicado às 14:06

Do sentido da vida

por Samuel de Paiva Pires, em 24.10.12

Se Hayek tem razão quando considera que a vida não tem outro propósito para além da sua própria existência, então Camus terá razão em considerar o suicídio como o único problema filosófico verdadeiramente sério. Nestes estranhos tempos em que vivemos, o "perigo de todo os perigos", como assinalou Nietzsche, é "nada mais ter sentido." E talvez seja por a vida não ter sentido que, segundo Oscar Wilde, a maioria de nós limita-se a existir, não vivendo. Se assim é, só podemos escapar ao absurdo da existência da vida pelo suicídio ou pela esperança, como Camus aponta. Não lhe escapando, somos compelidos no sentido da revolta, que surge "do espectáculo do irracional a par com uma condição injusta e incompreensível." "Eu revolto-me, logo existo", escreveu o filósofo francês. Alguns dirão que calar a revolta será sinal de maturidade. A mim afigura-se-me antes como um suicídio do pensamento. E eu ainda prefiro continuar a viver, mesmo que tenha que me submeter para sobreviver. Até um dia.

publicado às 01:39

Krugman is overrated

por Samuel de Paiva Pires, em 13.08.12

 

(imagem daqui)

 

John Phelan, na Standpoint:

 

«When Friedrich von Hayek became a Nobel Laureate in economics in 1974 he said: "The Nobel Prize confers on an individual an authority which in economics no man ought to possess." The truth of this is demonstrated daily by the case of Paul Krugman.

 

Krugman and his supporters whip out his Nobel Memorial Prize in Economic Sciences like a Top Trump of Diego Maradona. It is awarded annually — so why the special fuss about a prize Krugman won four years ago? His Nobel is being used to intimidate opponents. Any opposition to Krugman with his Nobel Prize is opposition to science itself.

 

Why Krugman generates so much opposition isn't hard to fathom. From his perch in the New York Times he says one ridiculous thing after another. (...)

 

As for that Nobel Prize, Paul Krugman won it for his work on international trade patterns, not his crackpot Keynesianism. Sir Paul McCartney won an Ivor Novello award for writing "Yesterday". That doesn't mean sentimental schlock like "Mull of Kintyre" is worth listening to.»

publicado às 15:00

Da impossibilidade epistemológica do socialismo

por Samuel de Paiva Pires, em 09.08.12

Da minha dissertação de mestrado, Do conceito de liberdade em Friedrich A. Hayek, p. 61:

 

Uma economia socialista, ao acabar com o sistema de preços, impossibilita o processo que permite tornar explícito o conhecimento prático disperso, visto que os preços incorporam um conhecimento holístico, sistémico, “desconhecido e incognoscível por qualquer um dos elementos do sistema do mercado, mas dado a todos estes através da operação do próprio mercado”. Não existe qualquer outra forma de organização da economia que consiga rivalizar com o mercado enquanto gerador de conhecimento, já que é o único mecanismo que consegue utilizar eficazmente o conhecimento prático disperso tornando-o holístico – e é este conhecimento que é destruído quando se tenta planear ou corrigir os processos de funcionamento do mercado.


É por isto que quando Hayek fala da impossibilidade prática de uma economia socialista, não se refere apenas a obstáculos que possam um dia ser removidos ou à sua ineficiência mas também, e principalmente, à impossibilidade epistemológica do socialismo funcionar, ou seja, à incapacidade de qualquer ordem social utilizar efectivamente o conhecimento prático dos seus cidadãos sem o mercado livre, o que tem como consequências o cálculo caótico, a barbarização da vida social, a impossibilidade dos indivíduos saberem como dirigir as suas actividades e uma regressão no stock de conhecimento prático e na capacidade de inovação e mudança que assenta na função de descoberta baseada na tentativa e erro – é o sistema de preços que “facilita os processos de aprendizagem e descoberta que denominamos por cálculo económico e concorrência no mercado”.

publicado às 10:47






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