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Como escreve o António de Almeida, nos tempos que correm, com a liberdade ameaçada, convém ler ou reler aqueles dois livros. E eu aproveito para iniciar uma nova série, precisamente "Em nome da liberdade". Para começar, aqui deixo algumas passagens de Isaiah Berlin a respeito de um dos pais do utilitarismo, Helvétius, retiradas de Rousseau e outros cinco inimigos da liberdade (Gradiva, 2005):
«As motivações humanas são totalmente irrelevantes. Não interessa absolutamente nada se os indivíduos contribuem para a felicidade porque são benévolos e a aprovam ou por qualquer motivo particular egoísta, inferior, mesquinho. Não importa se os indivíduos impedem a felicidade humana porque são maus ou viciosos ou porque são ignorantes ou ingénuos idealistas - o mal que provocam será idêntico em ambos os casos, e igualmente o bem.» (p. 37)
«Uma coisa é clara: no tipo de universo descrito por Helvétius existe pouco ou nenhum espaço para a liberdade individual. No seu mundo, os indivíduos podem tornar-se felizes, mas a ideia de liberdade perde-se. Perde-se porque a liberdade para praticar o mal se perde, uma vez que todos os indivíduos são condicionados para praticarem apenas aquilo que é bom. Tornamo-nos uma espécie de animais treinados para perseguir apenas o que nos é útil. Nessa condição, a liberdade, se incluir qualquer permissão para agirmos livremente, a liberdade de fazer agora isto, depois aquilo, de podermos optar mesmo por nos destruirmos a nós próprios, se quisermos - esse tipo de liberdade será gradualmente eliminada por uma educação auspiciosa.» (p. 44)
(Sir Isaiah Berlin)
«Se os geómetras podem ser depóticos, porque não os filósofos? Se não desejamos livrar-nos das verdades da geometria, porquê livrar-nos da verdade dos filósofos? A natureza, e apenas ela, ensina aos filósofos os fins correctos dos homens. É verdade que a natureza fala sempre com muitas vozes diferentes. Ela disse a Espinosa que era um sistema lógico, mas a Leibniz que era uma aglomeração de almas. Disse a Diderot que o mundo era um mecanismo com cabos, roldanas e molas, enquanto que a Herder afirmou ser um todo orgânico vivo. A Montesquieu falou do infinito valor da diversidade; a Helvétius de uniformidade imutável. A Rousseau declarou ter sido corrompida pelas civilizações, as ciências e as artes; ao passo que a d'Alembert prometeu revelar os seus segredos. Condorcet e Paine perceberam que ela implanta direitos inalienáveis ao homem; a Bentham diz que isso é apenas «gritos sobre papel» - «disparates sobre andas». A Berkeley apresenta-se como a linguagem de Deus para o homem. A Holbach disse que Deus não existia e que as Igrejas eram conspirações. Pope, Shaftesbury e Rousseau vêem a natureza como uma harmonia maravilhosa. Hegel vê-a como um campo glorioso no qual grandes exércitos se reencontram na noite. Maistre vê-a como uma agonia de sangue, terror e auto-imolação.
O que é a natureza? O que significa ser «natural»? É uma boa questão. Leslie Stephen diz-nos que um viajante inglês do século XVIII, em Franla, comentou que era antinatural que os soldados se vestissem de azul, excepto, na verdade, a Artilharia ou a Blue Horse. É evidente que a natureza fala com muitas vozes diferentes e que se nos instruirmos através dela obteremos muitas lições antagónicas e não haverá qualquer solução definitiva nem sequer um seu esboço. Helvétius estava bastante seguro daquilo que a natureza lhe ensinava. Sabia que a natureza lhe dizia que a única coisa que o homem podia e deveria fazer era buscar o prazer e evitar a dor e sobre isto erigiu o sistema utilitário que, armado da melhor boa vontade, inspirado pelos motivos mais puros, dirigido como estava contra a injustiça, contra a ignorância, contra o poder arbitrário, contra todos os horrores de que o século XVIII ainda estava repleto, conduz directamente àquilo que é fundamentalmente um tipo de tirania tecnocrática. Substitui a tirania da ignorância, do medo, dos clérigos supersticiosos, dos soberanos arbitrários, de todos os papões combatidos pelo iluminismo do século XVIII por outra, uma tirania tecnológica, da razão, que é, contudo, igualmente contrária à liberdade, igualmente contrária à ideia de que uma das coisas mais valiosas na vida humana é a escolha pela escolha, não apenas do que é bom, mas a escolha enquanto tal. É contrária a isto e foi com essa formulação utilizada como justificação tanto para o Comunismo como para o Fascismo, para praticamente todos os decretos que procuraram limitar a liberdade humana e vivissectar a sociedade humana num todo único, contínuo e harmonioso, no qual se espera que os indivíduos sejam desprovidos de qualquer margem de iniciativa individual. É um sistema muito rígido e sólido; não há espaço para nos movermos no seu interior. Talvez consiga gerar felicidade; mas não é claro - não o era mesmo no século XVIII e seguramente não se tornou mais claro posteriormente - que a felicidade seja o único valor que o homem busca.» (pp. 46-48)