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Os gregos não escreviam necrológios.

por Ana Rodrigues Bidarra, em 27.05.13

Se querem que vos diga, queria que fosse diferente. Queria que o passar dos dias fosse menos apressado e o tempo mais generoso, menos exigente.

 

 Atrasando a escrita destas primeiras palavras, pensei escrever, na minha estreia, um texto altissonante, repleto de considerações cáusticas sobre o anedótico quotidiano de modo a aguçar o apetite destruidor das hostes cibernéticas.

 Deixo os pensamentos e a acutilância quedos, por ora. 

 

Que o meu primeiro post não seja uma adaga, antes uma sentida homenagem ao pai do Samuel, nas palavras de Herberto Hélder, que regressa hoje às livrarias.

 

 

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,

quando alguém morria perguntavam apenas:

tinha paixão?

quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:

se tinha paixão pelas coisas gerais,

água,

música,

pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,

pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,

paixão pela paixão,

tinha?

e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,

se posso morrer gregamente,

que paixão?

os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,

os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,

homens e mulheres perdem a aura

na usura,

na política,

no comércio,

na indústria,

dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,

trémulos objectos entrando e saindo

dos dez tão poucos dedos para tantos

objectos do mundo

e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,

pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,

e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,

palavra soprada a que forno com que fôlego,

que alguém perguntasse: tinha paixão?

afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,

ponham muito alto a música e que eu dance,

fluido, infindável, apanhado por toda a luz antiga e moderna,

os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão

e eu me perdesse nela

a paixão grega.”

 

- Herberto Hélder.

 

Obrigada Samuel, por partilhares connosco as paixões do senhor teu pai. Que descanse em paz.

publicado às 15:49






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