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Dia de Santa Marta! E de lá bem fundo da memória saltam imagens, muito vagas, indefinidas, de uma romaria, aqui, na Falperra, talvez a única a que me levaram ainda com algumas características da pitoresca romaria minhota de que falam os livros, e que Pedro Homem de Mello como ninguém cantou. Teria quatro, cinco anos (?), e recordo uma roda de raparigas e rapazes a cantar, acompanhados por garridas pandeiretas. Mais precisas são as memórias de minha mãe, ela sim que ainda viveu esses tempos de festança pegada. E conta: de como todos, homens e mulheres, vestiam as roupas domingueiras, graciosas, de cores alegres, a preceito, não faltando sequer o raminho de alfádega na orelha, a espalhar o seu fresco aroma. Uns e outros a serem transportados em festivos carros de bois. Era só o tempo para deles descer, e o folguedo começava. Então, as concertinas e cavaquinhos não descansavam, até que o sol se pusesse! Num dia de calor assim, a cada canto se ouvia apregoar a limonada fresca, muitas das vezes por vozes infantis, pois que a criançada aproveitava para arrecadar alguns tostões, logo trocados por rosquilhos e cavacas. E quantos namoros não começaram sob a protecção da Santa!... Cansados, mas felizes, iniciavam então o regresso a casa, com algumas promessas de novos encontros para breve, noutra romaria, que não haveria de tardar.
Falo-lhe, por exemplo, das tardes em que ia, com as amigas, lavar no rio, e como as aproveitavam bem.
Pergunta-me se me lembro do grande tanque de granito no quintal dos avós; que sim, e como gostava de dar à manivela na grande roda que fazia trabalhar a bomba da água para o encher...
" - Pois foi o teu avô que o mandou fazer, quando descobriu a maroteira ".
Duas a três horas sem electricidade, numa noite de muito vento e chuva, naquele tempo que se segue ao jantar, passado a ver televisão, a ler ou a navegar pela internet. De repente ficámos sem saber o que fazer.
Juntámo-nos na sala, mudos e quedos, até que o silêncio foi quebrado pela minha mãe: que até os 15/16 anos ( não soube precisar ), os seus serões eram assim- no Inverno, em que escurecia mais cedo, a minha avó cozinhava à luz de uma candeia presa num gancho que pendia do tecto. A mesma luz que alumiava o jantar e o arrumar da cozinha, enquanto os homens jogavam à sueca.
No final, o meu avô tirava a candeia e, à frente de todos, ia abrindo caminho até aos quartos. No móvel de cada um deles havia um castiçal de latão, com uma vela e fósforos que cada um acendia à luz da candeia, que o avô levava. Dava-lhes um tempo determinado para terem a vela acesa, até que ia de quarto em quarto verificar se todos a tinham apagado.
Até que um dia a electricidade chegou. Parece que a inauguração foi de arromba, com discurso do regedor, muito aplaudido.
A primeira compra dos avós foi um rádio, grande, que ainda cheguei a conhecer. Os vizinhos iam todos ouvir, principalmente quando havia jogos de hóquei em patins, desporto que parece ter gozado de muita popularidade naquela altura.
No momento em que a minha mãe contava que a avó quase colava o ouvido ao aparelho, antes d'o avô, mais viajado, lhe dizer não ser necessário, acenderam-se as luzes, e cada um de nós retomou a rotina de todas as noites, mas contente por ter ouvido mais uma das histórias que a minha mãe conta.
que, de figueira em figueira, os levou todos ", disse o Duardo da Quininha quando o meu avô comentava com a minha avó o facto de, já em fins de Setembro, terem desaparecido, misteriosamente, os poucos figos que havia ainda nas duas figueiras.
" Nunca o viu? é um pássaro muito grande, que adora figos...", acrescentou, enquanto os meus avós, divertidos, imaginavam quem seria o " passarão "...
venta. Quando em noites assim, de vento forte, a minha avó sempre contava à minha mãe e tios, pequenos que eram, histórias que os punham com os cabelos em pé, e com medo de irem dormir sozinhos, e com a luz apagada: era a altura preferida pelo lobisomem para sair à rua, ou para o também lendário corredor vaguear sem destino pela aldeia, tornando seu escravo todo o ser humano que lhe aparecesse. O melhor mesmo seria pôr traves nas portas, náo fosse o diabo teçê-las. E, no fim, iam dormir todos juntos, por via dos pesadelos.
" - Vais à feira, Lucinda?
- A ver se merco dois pratos e duas malgas, porque ontem o Vitória perdeu, e o meu home chegou a casa tão zangado, que partiu a louça..."
A mesma Lucinda que, quando - e era frequente - pressentia que o seu homem vinha bêbedo, corria a esconder-se debaixo da cama,com receio da costumada violência. Depois de a procurar, e chamar, em vão, ia, a chorar, a casa da minha avó: " Ai Sr'Aninhas que a minha Lucinda desapareceu..." ; a minha avó, que já sabia do que a casa gastava, acalmava-o, dizendo-lhe que ela devia ter ido a algum lugar, e que quando chegasse a casa já lá estaria, por certo... ; o homem lá ia, e acabavam a noite pacíficamente, até à próxima derrota do Vitória, ou a próxima bebedeira...
Umas voltinhas nos carros eléctricos e voltamos cedo ". E a minha avó deixou. Não sei se demoraram muito na festa, na vila vizinha, mas que voltaram de lá namorados, voltaram; certamente com o olhar de quem tinha visto passarinho verde. E S. Pedro sem a fama de casamenteiro dos outros Santos Populares...
Pergunta o Mike, quando abaixo digo que o velho pastor partilhava o leito de folhelho com o pequeno aprendiz de guardador de cabras.
Folhas secas de milho, cortadas em finas tiras, eram , até os meus oito/ nove anos, o enchimento do colchão.
Tenho uma vaga ideia de todo o processamento por que passavam até servirem de aconchego ao nosso sono, mas, para que soubesse bem do que falava, questionei, como sempre acontece em situações similares, a minha mãe, que, além de ter confirmado as fases de que me lembrava, me recordou outras.
Feita a desfolhada, e seguindo o princípio de que nada se perde, lavavam-se, no rio da aldeia, cuidadosamente, as frágeis folhas que até aí envolviam o milho, e colocavam-se, imediatamente a secar debaixo do sol, que por essa altura já brilhava em dose generosa.
Depois de secas eram então desfiadas e entregues a mulheres que se tinham especializado no encher dos colchões.
A intervalos esse folhelho era retirado,e repetia-se a operação de lavagem e enchimento, até que nova colheita do cereal permitisse a sua renovação.
madrugada ainda, alumiado o caminho pela candeia alimentada por petróleo, a tia avó Maria a caminho da igreja, longe que ela ficava.
A essa hora, já a irmã, minha avó, havia muito tratava de cozer o pão, a tempo de quem ia trabalhar o ter já pronto para, lá na Venda, acompanhar a aguardente mata-bicho com que cada um começava o dia.
De cada vez a tia Maria batia na janela da casa do forno, a dar os Bons Dias, e quando a irmã dizia ser ela tola, que àquela hora deveria estar em casa, que deveria estar a fazer companhia à mãe , respondia: vou rezar por vós, já que não podeis ir...
diz o Manuel. Eu cá até desconfio que as terá inventado muitas vezes, para ir à botica olhar o seu Joaquim. Lembre-se que as mulheres nunca " davam ponto sem nó ". Minha mãe dixit :)
A ver se lhe comprava rifas para ajudar na reconstrução da igreja de S. Martinho de Sande.
Pela idade aparente e forma como falou, imaginei tratar-se de uma amiga de infância.
Depois foi o assistir, e nela participar também, pois que queria satisfazer a curiosidade, à conversa entre amigas que andaram juntas na Escola Primária há mais de sessenta anos, e continuaram essa amizade na juventude. Separadas geograficamente pelos respectivos casamentos
Amiga de quem ouvira falar muitas vezes, mas não conhecia.
Fiquei a saber que era uma das muitas que, feita a 3ª Classe, se dedicaram à tecelagem de peças de tecido de algodão, em tear manual, na casa de cada uma delas, mas para uma fábrica da cidade, que lhes fornecia a linha de algodão.
-" Lembras-te de quando fugias à tua mãe, para ires enrolar fio nas canelas para minha casa? "
-" E quando íamos para o monte da Senhora da Saúde, apanhar os picos dos pinheiros para acendermos o lume? "
E por momentos foi como se tivesse vivido " o tempo delas "...
A casa do Arturinho
cedo me habituei a conviver com toda a gente; todos nos conhecíamos, e foi nessa altura que conheci pessoas boas, almas simples e amigas; refiro-me concretamente a pessoas que já não estão entre nós, e que eram família, não pelo sangue, mas no carinho e amizade com que sempre nos brindaram . Hoje pensei muito em três dessas pessoas, e falei delas com a minha mãe, que acrescentou pormenores comoventes dessas vidas.- por exemplo fiquei a saber que o Luizinho, uma pessoa de quem todos gostavam, que vivia do que lhe davam - roupa, comida...- , e cujo sorriso tão sincero e inocente- sempre a dizer " É vida! É vida! ", era nele o espelho de uma alma pura, com o dinheiro que lhe iam dando juntou o necessário para mandar dizer uma missa quando morreu outra pessoa filha de um deus ainda menor- Está no céu! - concluiu a minha mãe.
Outra pessoa boa, de quem já falei aqui, era o SrArmindo. Como gostava de descer aquelas escadas de madeira tosca para falar com o SrArmindo!
A terceira pessoa era o Arturinho: a viver com uma irmã também já idosa, numa casinha muito perto da minha avó materna, todas as crianças que frequentavam a , muito próxima, Escola Primária o adoravam. Presenteava-nos muitas vezes com sacholinhas ( pequeninas enxadas ) que fazia com bocados de aço que usava para fazer os garfos que vendia na feira.
Um dia rico em recordações, este...
diz o Diogo, na caixa de comentários. Não tenho dúvidas, face ao que vou ouvindo de pessoas que viveram nesses anos muito difíceis.
Há dias, íamos a passar por um local cheio de casas- tipo-maison, e disse a minha mãe- " - Olha, aqui era onde nos Domingos à tarde fazíamos os nossos bailaricos; juntávamo-nos algumas raparigas e rapazes, alguns deles lançavam mão dos cavaquinhos, e era uma alegria pegada...". Passava-se isto nos princípios dos anos cinquenta, quando por aqui a pobreza era mais do que muita, e o que valia era que a palavra solidariedade não era " dita da boca para fora".
Hoje, honestamente, não sei se teríamos o valor que tinham então.
Mas desta vida árdua ressalta a heroicidade de uma Mulher, da minha mãe.
Morava a cinquenta metros da Escola Primária, mas não lhe foi permitido ir além da Terceira Classe: os pais precisavam que ajudasse em casa e na Venda, enquanto a minha avó cozia fornada de broa, atrás de fornada...
Algum tempo passado, e com muitos irmãos homens, competia-lhe a ela ir lavar ao rio, e quando o meu avô começou a fabricar talheres, muitas vezes lhe coube levá-los à cidade, na camioneta que apanhava na vila mais próxima, não tão próxima assim...
Quando casou, começou por ajudar na economia doméstica cozinhando petiscos, como antes fizera na Venda da avó, e criando galinhas, coelhos e porcos que vendia na feira.Até que decidiu trabalhar com o meu pai. Começou aí uma odisseia que ainda perdura.
Levantava-se muito cedo, por mor de abrir a fábrica aos trabalhadores ; no Inverno, quando o frio era muito, e eles chegavam enregelados, mandava acender as brasas que enchiam alguns bidões, enquanto lhes fazia café bem quente. Habituaram-se a ver nela uma amiga, que nunca esqueciam no aniversário, altura em que a minha mãe lhes fazia sempre um lanche, boa cozinheira que sempre foi...
Ainda hoje, antigos trabalhadores, que saíram porque emigrararam, ou porque se reformaram, vêm, amiúde, visitá-la, e não raro despedem-se com os olhos cheios de lágrimas...
Em 2007 foi-lhe diagnosticado um cancro. No dia 11 de Dezembro desse ano retiraram-lhe meio pulmão, mas um mês depois lá estava no seu posto de sempre.
Continua a ser a Mulher do Leme, quer no trabalho, quer na família...
Dizia, ainda ontem, que não ia resistir a escrever qualquer coisita, por pouco que fosse :).
Porque estou indignada! Chove, e, numa deslocação à vila vizinha vi, a passar ao longe, um deficiente mal vestido e descalço- indignação imediata, dizendo a mim mesma que esse homem tem as mesmas capacidades de sofrer que esses políticos que se empanturram de benesses à custa dos filhos de deuses menores que, não obstante as promessas feitas há 34 anos já, continuam a proliferar, Luís.
Ainda a tempo: fins dos anos sessenta, inícios dos setenta, nesta mesma terra, tantas vezes calcorreada, nunca vi nada igual- não havia luxos, mas não assisti a miséria igual. Conta a minha mãe que viu disso durante a 2ª Guerra Mundial e ainda nos anos cinquenta. Concluo que estamos a regredir...
vimos que alguém fazia fogueiras com as folhas de tília caídas- que as noites têm sido ventosas-, não para se aquecer, que frio não fazia, mas para tornar " mais limpo " o paul.
Distraí-me do facto de achar encanto neste tapete castanho, para lembrar ( que seria de mim sem as minhas memórias? ) as vezes que fui, com as irmãs e primas mais velhas, apanhar folha para amaciar a cama dos porcos, evitando-lhes assim o contacto, doloroso, com o tojo, aquela planta espinhosa de flor amarela.
A tornar mais rica esta evocação, juntam-se então as memórias da minha mãe: " Chegávamos a pegar-nos à bulha, porque cada uma de nós queria ajuntar a maior quantidade de folha possível ".
Sabia agora da importância que estes quadrados irregulares, que o vento lançava ao chão, tiveram no passado; tanta, que podia ser motivo de peqquenas desavenças.
Que, ao Sábado de manhã, quando a disponibilidade era maior, a minha mãe cozia a broa.
O longo processo começava-o muito cedo: antes do mais, aquecer bem o forno, com a lenha já pronta de véspera; seguia-se o peneirar da farinha, normalmente de milho e centeio, para a masseira, a que juntava água quente e um poucochinho de sal. Depois, de mangas arregaçadas, punha toda a sua força no acto, cansativo, de amassar Juntava um pouco de fermento, um pedaço de massa da semana anterior, que entretanto azedara, e deixava esta mistura descansar umas horas, a fim de levedar.
Enquanto isso, o forno já quente precisava de ser " limpo": retirada das brasas maiores, para que não queimasse o pão, com a ajuda de um gancho encabado num pau comprido.
Embolava então uma porção de massa na emboladoira- uma gamela de madeira- , na qual fazia uma cruz, e metia-a no forno já rubro. Depois de, com a ajuda de uma comprida pá de madeira, meter todas as broas no forno, era altura de o fechar com os restos de massa. Horas depois estavam prontas para serem retiradas, com a mesma pá, sendo que essa fornada haveria de dar para a semana toda, depois de se distribuirem algumas broas pelos vizinhos e familiares.
em granito, com portas e janelas verdes, com muitos quartos, porque era grande a prole.
Descendia de uma família de moleiros e padeiros, e quando casou com o avô, carpinteiro que trabalhava então no Teatro Circo de Braga, começaram a construi-la, e aí montaram uma padaria, onde a avó iria dar continuidade ao negócio familiar.
Alguns anos passados, e já com três filhos, o avô rumou ao Brasil, onde trabalhou numa fábrica de tabaco na Baía. Enquanto isso a avó, uma mulher cheia de garra, criou uma mercearia, onde, além do pão de trigo e das broas que cozia, vendia azeite, café e bacalhau. Era a Venda da avó, onde eu comi as primeiras bolachas Maria...
Na altura da II Guerra, quando os alimentos eram racionados, o meu avô, que entretanto regressara, e era " um Homem bom" nunca deixou que nenhum vizinho passasse fome, mesmo quando não tinha com que pagar: como dizia a avó, " tinha os seus protegidos".
A minha mãe e tios dizem o melhor possível desse avô, de quem não guardo lembrança, pois que morreu cedo.
A avó viveu ainda por muitos anos, sempre a trabalhar na Venda. Nos seus últimos tempos, já eram os próprios clientes que se serviam: "Srª Aninhas vou levar um litro de azeite; assento no livro e pago no próximo mês". Sentada num banco a avó acenava com a cabeça: "Está bem".
Quando, há tempos, fui em busca da minha Escola Primária, para a fotografar, passei pelo lugar onde estava a casa, mas agora estava lá outra, bem diferente; e pensei "ainda bem que o nosso amigo pintor a fixou naquela aguarela".