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...não falarei de bandeiras do passado, nem dos vários Camões idealizados ou de antepassados que hipoteticamente estejam na dimensão metafísica em que estiverem, para Portugal talvez olhem decepcionados por nestes tempos tudo aparentemente se reduzir a uma equipa de futebol colocada no centro das atenções gerais, cumprindo-se assim a trilogia deixada pelo reconhecidamente genial António Ferro: Fado, Futebol e Fátima. É mentira? Olhem à vossa volta e concluam acerca da justeza da tríade. Mudam-se os regimes e os nomes, mas no fundo, naquele subconsciente colectivo, o essencial permanece.
Há quem mereça um simples reconhecimento apenas pelo exercício de um serviço, neste caso, uma equipa de profissionais das mais diversas categorias.
O antigo Hospital do Ultramar, unidade fundada em 1902 por iniciativa de D. Carlos I, continua como desde sempre situado nas imediações da Cordoaria, logo, naquele antigo fora de portas que garantia uma certa distância relativa ao bulício de uma capital outrora mais fartamente povoada de gentes e atreita às várias pestes que durante séculos a assolaram. É um sucessor do lazareto em que os recentemente chegados do vasto, supostamente tórrido e misterioso sul que a por vezes a demasiadamente fértil imaginação popular garantia como incubador de febres e maleitas de toda a ordem, sendo então os recém-chegados colocados numa espécie de purgatório a que se dava o nome de quarentena. O próprio imperador D. Pedro II do Brasil ali insistiu em permanecer durante o período legalmente estipulado, mostrando assim quem era.
Durante anos, tal como aconteceu com o imponente edifício daquele que efemeramente foi o Ministério do Ultramar de que o Estado Maior das Forças Armadas também se apropriou, os meus pais colaboraram para a ampliação do conjunto de edifícios que ainda hoje formam aquele Hospital. Mensalmente era descontada uma certa quantia dos seus salários de funcionários ultramarinos, desta forma contribuíndo para um bem comum a ser utilizado por quem, de férias ou não, a Lisboa um dia talvez demandasse. Dinheiro bem utilizado, há que dizê-lo, confirmando-se assim a necessidade de um criterioso caderno de encargos nos quais os contribuintes sentissem o dever que a existência de um Estado impõe.
Visitei pela primeira vez estas instalações logo nos primeiros dias de Setembro de 1974. Acompanhado pelos pais e irmãos, tínhamos levantado as obrigatórias guias de vacinas no alto do Restelo, no então Ministério da Coordenação Interterritorial, nome mais ou menos envergonhado mas pomposo e insusceptível de enganar até os mais incautos que continuavam a chamá-lo pela sua original denominação tão vulgarizada como ainda é o Terreiro do Paço ou o Rossio.
Recebemos no Instituto de Medicina Tropical as cadernetas que ainda hoje conservamos e deste edifício contíguo ao hospital, seguimos para as então modernas e bem arejadas instalações daquele que foi o Hospital do Ultramar, decoradas aqui e ali com motivos que faziam e nalguns locais daquele espaço ainda fazem a ligação pluricontinental de territórios sob a secular soberania dos governos de Lisboa. A verdade é quem agora visite esta unidade do SNS, ali deparará com as históricas muitas e desvairadas gentes que ironicamente continuam a dar uma certa razão de ser ao nome que ostentou até ao curioso dia 5 de Outubro de 1974: de utentes a funcionários de todas as categorias, ali circulam naturais ou descendentes de moçambicanos, angolanos, goeses, guineenses, são-tomenses, cabo-verdianos, brasileiros, timorenses e sabe-se lá de que mais plagas deste mundo. Enfim, somos todos portugueses.
Toda a família tem desde então e pelas mais diversas razões utilizado aquelas instalações ao longo destas quatro décadas. Os meus pais lá estiveram internados, tal como os meus irmãos ali foram operados. Eu próprio descaradamente declarei residir em Caxias, ficando então dentro da área de acção do H.E.M. A verdade é que dali retenho a melhor das impressões, pois muito para além das instalações já denotarem a necessidade de obras mais ou menos urgentes, é um hospital admiravelmente equipado com todo o tipo de moderna maquinaria de assistência a quem lá forçosamente tenha de ir, como, sobretudo, de uma plêiade de trabalhadores, todos eles relativamente anónimos e alheios às televisões e que é inexcedível em competência e dedicação: médicos, pessoal de enfermagem e auxiliares - não esquecendo aqueles que praticamente são invisíveis como os analistas e tantos outros cuja existência desconhecemos -, o contingente de trabalhadoras das limpezas, todos eles formam uma abnegada equipa. O hospital rebaptizado de Egas Moniz - e muito justamente, pois a personalidade desempenhou não apenas as hoje geralmente ignoradas funções de político em relativo part-time, relevando-se sobretudo na memória popular a figura de médico e Prémio Nobel -, funciona como um conjunto, onde cada um cumpre a sua função.
Médicos competentes. Enfermeiros competentes. Pessoal auxiliar competente e as instalações escrupulosamente asseadas, é o que qualquer um que ali, por uma ou outra razão tenha de se instalar por uns tempos, verificará por experiência própria. Balelas político-eleitorais esquecidas numa qualquer valeta da memória, aparentemente no H.E.M. nada falha: rotineira mudança quotidiana da roupa de cama, distribuição de pijamas lavados todos os dias, alimentação abundante - bem confeccionada, variada e adequada a cada paciente - medicamentos ministrados a horas, a vigilância constante sobre os involuntários e circunstanciais internados. Vinte e poucos dias e tudo isto com um custo que os mais desmiolados ainda ousam declarar como exorbitante: uma marginal taxinha moderadora, mais ou menos equivalente ao preço de um repasto num restaurante vulgar.
Apenas verifiquei duas zonas nebulosas onde existem falhas: em utentes que tudo consideram como direito adquirido e alguns deles abusivamente grosseiros e prepotentes, para não dizer pior, em relação ao pessoal feminino que consideram estar ao seu inteiro dispor, ousando aqueles aventurarem-se em dichotes dignos da mais refinada tasca..
O outro sector que falha? Quando há sensivelmente um ano de lá saí e me desloquei de imediato às instalações da gestão hospital, deparei com uma funcionária sentada diante de um computador. Dizendo ao que vinha, solicitei-lhe o livro de reclamações, sublinhando que ali ia, não para protestar por qualquer razão que só ao diabo diria respeito, mas para escrever um louvor à eficiência e extraordinária gentileza da equipa que mantém o Hospital Egas Moniz em pleno funcionamento.
O livro estava mesmo ao seu alcance, mas durante perto de vinte minutos a senhora permaneceu calmamente sentada e de costas voltadas, teclando sei eu lá o quê.
Percebendo o que estava em causa, da saleta saí, talvez desta forma evitando-lhe "timacas e milandos" ou salvando o seu posto de trabalho. Seria impossível agradecer tudo o que por mim tinham feito, sem deixar como nota de rodapé a aparente falta de eficácia do sector da burocracia, por feliz acaso, o menos importante.
Pouco importa, bem sei que quem de mim tratou sabe que nem todos são ingratos.
É este o 10 de Junho que também interessa comemorar, recordando aquele dizer do meu pai: "foram os impostos mais úteis que paguei em toda a minha vida".
O meu pai entrou no S. Francisco Xavier por volta das 11 da manhã e de lá saiu precisamente à meia noite. Exames, uma interminável espera e as costumeiras andanças de bolandas de um lado para o outro. A sala de espera é um autêntico depósito de manias, um passatempo para os imaginários doentes e para uns infelizes que muito a contragosto ali penam um dia inteiro. Ouvem-se coisas interessantes, desde cretinices como ..."ficamos aqui à espera horas e horas, porque aparecem sempre uns doutores e passam logo à frente!", e ..."adeviam de ser todos demitidos", até ao cruzamento de conversas telemóveis. No entanto, ali descobrimos um mundo até então ignorado, surgindo de hora a hora doenças estranhas, difíceis de entender pelo mais especializado médico do planeta Terra. Para nem sequer falarmos dos maravilhosos nomes que vão surgindo, todos eles a sugerir a beleza pura, juventude a rodos, infâncias desgarradas: Juvelina, Utelinda, Olinda - recorda-me sempre um dos navios da Batalha de Riachuelo -, Felicidade e Deolinda, foram algumas das beldades que por lá passaram.
Uma senhora queixava-se da sua úrsula nervosa, rebatendo os argumentos de outra paciente. Algum tempo depois surgiu um homem obeso, inchadíssimo e vermelho, reclamando da sua infeliz situação de alcoólico invertebrado. A páginas tantas, confidenciava outra senhora à sua vizinha, as agruras que passava com a sua espandilose.
Nada disto é de grandes cuidados, se compararmos com aquilo que aflige o tal homem que reclamava contra a "passagem dos doutores à frente dos demais". Sabem do que se queixava este infeliz?
Das terríveis tormentas que duas hérnias fiscais lhe faziam passar todos os dias.
Treze horas no S. Francisco Xavier. Uma maravilha.
"A pessoa é a medida e o fim de toda a actividade humana e a política tem de estar ao serviço da sua inteira realização."
Francisco Sá Carneiro
"MUITO se fala hoje de 'cortar', cortar'. Em despesas, claro. Quero dar um testemunho que a minha família viveu nos últimos seis meses. E o testemunho é o da importância do sector público da Saúde. Quando acontecem acidentes com consequências muito graves e se pergunta aos médicos, a resposta é: hospital público. Escrevo estas palavras com todo o respeito pelo sector privado da Saúde. Mas esta é a verdade - pelos equipamentos mas também pela reputação e experiência de muitas unidades que integram o sector público da Saúde.
SEMPRE fui favorável a uma presença insubstituível do Estado nessa área. E, depois deste tempo, ainda mais reforcei esse entendimento. Sei o que recebemos, sei como agem, tratando todos bem e por igual. Não ponho em dúvida que, nos privados, se trate bem e se procure tratar todos com humanidade. Sei, também por experiência minha, da minha família e de amigos. Mas é diferente. Logo à partida é bem diferente. E, por mim, falo do que passámos, do que vimos, do que ouvimos. Portugal tem todas estas decisões pela frente. Mais uma vez, sublinhe-se, trata-se de redefinir as funções do Estado. Não se fez antes, agora tem mesmo de ser. Para refazermos este país. Para construirmos um país equilibrado, progressivo, racional, poupado, lógico, justo."
Pedro Santana Lopes, no "Sol"